JORNALISMO, VERDADE E ÉTICA; DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA E CONFUSÃO INFORMATIVA

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Rogério Christofoletti
Jornalista, mestre em Lingüística e professor de Legislação e Ética em Jornalismo na Universidade do Vale do Itajaí (Univali), em Santa Catarina, Brasil. O autor é doutorando em Jornalismo na Universidade de São Paulo (USP).

Este texto foi apresentado durante o 6º Congresso Brasileiro de Jornalistas Científicos, em maio de 2000 em Florianópolis (SC).

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Em nenhuma outra função profissional, o vínculo com o princípio da verdade é tão estreito quanto no Jornalismo. Se na Medicina o valor fundamental é a vida, se na Engenharia é a precisão, no campo jornalístico, a noção que distingue o que é verdadeiro daquilo que não o é se coloca como o caráter de fundo da atuação profissional.

Evidentemente, existem outros valores que permeiam a filosofia de base do jornalismo - como a precisão e a correção - mas nenhuma destas matrizes assume tanta importância quanto a verdade. Admite-se até que se peque contra estes critérios ou que se esbarre neles. No entanto, a verdade dos fatos e das situações precisa ser mantida inalterada nos relatos de cunho jornalístico sob pena de se descaracterizar como tal.

A noção tradicional de verdade é aquela que tenta traçar uma adequada correspondência entre uma coisa e sua idéia ou entre linguagem e mundo. Quando fatos do mundo real convergem para suas projeções no mundo lingüístico-discursivo, abre-se caminho para admitir a verdade de algo ou alguém. Grosso modo, é assim que se dá a sistemática de distinção e funcionamento de verdades e mentiras. Entretanto, esta engenharia de atestados encontra maior complexidade no processo de informação, na produção de narrativas que recortam a realidade, enfim, no trabalho cotidiano do jornalista. É nestas atividades que o profissional vai se deparar com as dificuldades de manter seus relatos próximos dos fatos correspondentes, vai se preocupar com a correção e a procedência das informações que lhe foram transmitidas e vai se voltar para o entendimento dos sentidos ali envolvidos.

A relevância destas reflexões acerca da verdade e do fazer jornalístico ganham contornos mais nítidos quando as informações referidas influenciam de maneira direta e decisiva na vida de seus receptores, como é o caso dos informes econômicos, políticos, que envolvem valores morais e religiosos ou ainda se referem à saúde e à ciência.

* * *

A maioria dos meios de comunicação que desenvolve um trabalho de divulgação científica ainda está presa a um conceito de verdade que contribui para a desinformação do público consumidor de notícias. Esta "verdade" subjacente às notas e matérias tem sempre um caráter latente de absolutismo, de vigor inconteste, de impossibilidade de erro. Assim, o que a ciência aponta como resultados de suas pesquisas sempre é um reflexo de uma verdade absoluta, incorruptível, inabalável. Pelo menos até a publicação de pesquisas que apresentem uma nova realidade.

Embora esta orientação pareça semelhante ao caminho apontado por Popper pela condição de refutabilidade de uma teoria científica, o jornalismo de divulgação ainda não avançou até este patamar na discussão epistemológica. Ele está ligado ainda ao princípio de verificabilidade, dos lógicos neopositivistas do Círculo de Viena.

Cabe aqui relembrar brevemente a evolução deste debate sobre a validade científica: até as duas primeiras décadas deste século, a ciência e seus postulados tinham status de dogmas, e os seres vivos estariam sujeitos às leis físicas e não poderiam escapar das verdades científicas. O fazer científico era marcado por um racionalismo envolvente e integrador das diversas áreas da pesquisa. Quando, em 1926, Werner Heisenberg formula o Princípio da Incerteza, nem mesmo os cientistas que partilhavam com ele de seus resultados admitem tal irracionalismo, tal instabilidade no fazer científico. A proposição – nunca se pode determinar com exatidão a posição e a velocidade de uma partícula – abala os pilares da ciência absoluta, das verdades pétreas e do dogmatismo racional. Uma fissura de discórdia se alastra na comunidade científica, dividindo correntes e aprofundando abismos entre cientistas.

Os filósofos que formavam o chamado Círculo de Viena – Carnap, Waismann, Schlick – lançaram o que foi conhecido como o Princípio de Verificabilidade. Isto é, só é verdadeiro o que é passível de ser verificado, demonstrado, sustentado matemática e logicamente. O aparte dos logicistas de Viena no debate científico produz um refluxo do empirismo e do formalismo no fazer científico.

Karl Popper inverte o eixo da discussão e defende que os cientistas não devem estar preocupados com a justificação de suas teorias, mas sim com o levantamento de contra-teorias que se oponham às primeiras. Assim, o que determina a validade de uma tese é a sua condição de refutabilidade, e só a resistência de uma teoria às suas refutações faz verdadeiro o seu discurso científico. A confirmação de uma tese passa da verificação empírica de seus resultados para a sua sobrevivência no embate discursivo na comunidade científica.

Hoje, a orientação do jornalismo que se pretende científico não acompanha o pensamento de Popper tão de perto, já que ainda está mais atrelado à verificabilidade das conclusões lançadas pelos cientistas em suas notas à imprensa. O que vale para editores e jornalistas – em meio à decisão do que vai ser publicado ou não – são os resultados alcançados pelos pesquisadores, mesmo que eles sejam contraditórios aos obtidos em testes similares, publicados recentemente. Importa aos jornalistas a publicização das conclusões, quaisquer sejam estas.

O problema que quero chamar a atenção nesta discussão não está nesta tendência liberalizante de publicação. A questão é a falta de compromisso do jornalismo científico com a contextualização dos resultados no momento de sua publicação. O que chama a atenção é a despreocupação dos jornalistas em informar ao público que influências tais resultados podem ter no debate acadêmico, o que significam para a discussão, que contribuições trazem para o cotidiano do leitor, que peso estas conclusões adquirem no processo de busca da verdade/validade científica.

Sem esta preocupação com a contextualização das informações, o público fica sujeito à torrente informativa de estudos e pesquisas realizados pela comunidade acadêmica, sem critérios de triagem sobre o que realmente é válido e passível de assimilação. Como não há critérios mais rigorosos por parte dos jornalistas na escolha do que vai ser publicizado, a atenção e preocupação com esta seleção das notícias se dilui também na hora de seu consumo. Como nem a imprensa nem o público podem confirmar os resultados dos estudos, os informes dos cientistas ganham tonalidades de verdades incorruptíveis, inabaláveis momentaneamente. Como já foram verificadas pelos pesquisadores, as teses já venceram a etapa protocolar de se mostrarem sustentáveis e, portanto, podem ser levadas a sério pelos meios de comunicação e disseminadas pela sociedade consumidora de informação. Não existe a preocupação por parte da imprensa de contrapor as teses, de contrastar os pontos de vista, de chocar as teorias para que o público tenha uma noção mais global do assunto, para que tenha um sentido mais amplo do contexto. Para que o leitor, ouvinte ou telespectador possa escolher uma tese para acreditar, para validar em seu juízo.

Esta falta de critério – ou melhor, a falta de clareza no critério – para publicação permite a disseminação que provoca a desinformação. Assim, o leitor encontra nos jornais notas como as abaixo, colhidas apenas num veículo para exemplificar:

Pesquisadores da Universidade de Califórnia concluíram que o air bag pode causar danos aos olhos. Estudo publicado no Journal of Ophthalmic Surgery and Lasers aponta danos que variaram de ferimentos na órbita dos olhos a sérias rupturas no globo ocular, que resultaram em cegueira. Mais de 30 crianças já morreram quando o air bag dos carros em que estavam inflou-se após a colisão. (Mais!, Folha de S.Paulo, 6 de abril de 1997)

Assistir TV tem efeitos positivos na leitura, indica uma pesquisa da Universidade de Leiden (Holanda). Mas isso só ocorre se parte da programação for legendada, como na TV holandesa. A leitura das legendas estimula a rápida conversão das letras em palavras e a sua compreensão veloz. Cerca de mil crianças foram estudadas.(Mais!, Folha de S.Paulo, 1 de agosto de 1993)

Pesquisadores da Pensilvânia encontraram evidências de que um gole diário de bebida alcoólica previne perturbações na velhice. O estudo com 2000 pares de homens gêmeos conduzido durante 20 anos mostrou que aqueles que bebiam com moderação preservavam melhor as capacidades de raciocínio e aprendizagem. (Mais!, Folha de S.Paulo, 1 de agosto de 1993)

Beber moderadamente faz bem à saúde, diz estudo da Universidade Harvard publicado nos Arquivos de Medicina Interna. Os cientistas estudaram 22 mil homens por mais de dez anos e constataram que aqueles que tomavam de dois a quatro copos de bebida por dia tiveram 28% de chance de morrer no período. Quando tomavam de quatro a seis copos por semana, o risco diminuiu para 21%. Para os que tomavam dois ou mais copos por dia, o risco de morrer foi 51%. (Mais!, Folha de S.Paulo, 19 de janeiro de 1997)

As conclusões geralmente contradizem as teses que se reforçavam anteriormente de que "usar air bags é um procedimento de segurança", de que "assistir a televisão desestimula a leitura" e de que "o álcool provoca dependência química, fragiliza o corpo e, em excesso, pode levar à morte". Diante dos discursos contrários, o leitor fica sem saber o que pensar, como agir, em que acreditar. O público fica frente a frente com as teorias, mergulhado em seus resultados e impossibilitado de tirar suas próprias conclusões.

Não é o caso de dizer que o leitor fica sozinho, desamparado, entregue à "manipulação" que os meios de comunicação fazem com as informações. Entretanto, é preciso lembrar e tornar nítido novamente o compromisso tácito da imprensa e de seus profissionais de sempre bem informar. Se de um lado, o público tem o direito de ser informado, de outro, o jornalista tem o dever de informar. Mas este compromisso de responsabilidade social só é exercitado na plenitude quando a informação recebe um tratamento adequado, é repassada de forma criteriosa, tem vínculos que contribuem para a sua contextualização. Sem o estabelecimento de alguns elos com a sua realidade sócio-histórica, a informação fica solta no imaginário das pessoas, gratuita, passível de uma absorção despreocupada, apenas de forma acumulativa. Aquela notícia é mais uma entre outras tantas. Quando vier uma segunda informação – e mesmo que esta contradiga a primeira -, descarta-se a primeira, substituindo-a pela seguinte. Sempre de forma maquinal e inconsciente.

Este processo de confusão informativa (que não passa de desinformação) ganha maiores dimensões e alcance nestes tempos em que se vive uma explosão informativa. Esta inflação dos signos e seu constante bombardeamento sobre os consumidores de notícias contribuem para uma situação caótica: ninguém consegue assimilar todos os informes, tem-se dificuldade inclusive de discernir as prioridades e, por conseqüência, o consumo destas informações se dá sempre de forma apressada, irreflexiva, automatizada. O público comum tem agora acesso a uma infinidade de fontes de informação que lançam signos que se sobrepõem, se contradizem, se desdizem, e pouco auxiliam numa melhor compreensão dos fatos. O caso recente dos produtos transgênicos é sintomático e demonstra o nível de desinformação a que o público fica submetido, em meio ao tiroteio de afirmações prós e contras. O consumidor de notícias, que também consome alimentos, fica sem saber como agir: se adquire os produtos modificados geneticamente ou se os repele, consumindo apenas os orgânicos. Nesta situação exemplar, o trabalho do jornalista de ciência pouco ou nada contribuiu para a tomada de uma decisão da vida cotidiana do receptor, que está tão desinformado quanto aquele que não acompanha o assunto pelos meios de comunicação.

Os produtos do jornalismo de divulgação científica tornam-se elementos de uma estrutura que envolve os receptores. Ou seja, a ciência expressa nas notícias e reportagens funciona muito mais como um discurso totalizante (LYOTARD, 1981) do que um conjunto de atividades racionais e empíricas de busca de respostas para as questões da humanidade.

É importante repetir, a questão principal da discussão que proponho é a falta de uma preocupação maior da imprensa de divulgação científica em contextualizar os fatos, com a seleção das informações no sentido de auxiliar – de forma bem pragmática e concreta – o receptor. Sem esta orientação clara de interferir positivamente no dia-a-dia do cidadão comum, trazendo informações úteis, os jornalistas científicos perdem um foco importante de sua atuação profissional. Sem isso, a ciência e seu desenvolvimento, seus estudos e seus resultados são observados pelo prisma da curiosidade, do exotismo, da superficialidade, do sensacionalismo, do bizarrismo. Sem um sentido de utilidade e de necessidade informacional, o jornalismo científico tende a divulgar da mesma forma notícias tão díspares na importância real (o interesse público) e na conseqüência que estas trazem (repercussão). Os exemplos abaixo ilustram esta tendência uniformizante das notas científicas. Apesar de tratadas de forma semelhante, as notas adquirem relevância incomparáveis, se se pensar nos reflexos que provocam na vida humana:

No começo de fevereiro de 1997, estudo publicado na revista da Associação Médica Americana (Jama) mostrou que, apesar dos esforços realizados pelas autoridades sanitárias para introduzir hábitos alimentares saudáveis, o número de mortes por problemas cardíacos não se deveu a uma mudança nesses hábitos, mas a uma melhoria das técnicas médicas. O estudo, realizado durante a década de 80, mostrou que nesses anos se evitaram cerca de 70% das mortes de pacientes devido a um diagnóstico precoce e tratamento adequado. (Mais! Folha de S.Paulo, 23 de fevereiro de 1997)

Pesquisadores do Centro Nacional de Dados Climáticos, na Carolina do Norte, afirmam que correr sob a chuva é o melhor modo de manter-se mais seco sem guarda-chuvas. Eles pesaram as roupas de um voluntário que havia corrido e andado sob a chuva. As roupas do corredor haviam absorvido 40% menos de água. (Mais! Folha de S.Paulo, janeiro de 1998)

Mas para além da publicação de notas que pouco (ou nada) contribuem para a evolução das técnicas e da sobrevivência da humanidade, o jornalismo científico pode cumprir seu papel de divulgação de dados e resultados de pesquisa que orientam o seu público. As notas, recolhidas e expressas abaixo, são exemplares de um trabalho como este:

Estudo feito pela Universidade Estadual de Nova York concluiu que o consumo de frutas e vegetais diminui o risco de uma mulher desenvolver câncer no seio. A substância responsável por esse efeito é a vitamina C. (Mais!, Folha de S.Paulo, 21 de junho 1992)

Estudo publicado no Journal of the AMERICAN Medical Association, em agosto de 1997, indica que o alcoolismo e o uso de drogas ilícitas aumentam riscos de morte violenta. Para usuários, o risco de homicídio é 12 vezes maior que o de não usuários, e o de suicídio, 16,6 vezes. Morar com um usuário de drogas aumenta em 11,3 vezes as chances de um não usuário morrer violentamente. No caso do álcool, chance aumenta 1,7 vez. (Mais!, Folha de S.Paulo, 24 de agosto de 1997)

Fumantes grávidas podem afetar o comportamento do feto apenas pensando em fumar, sugere estudo do Centro de Pesquisas de Comportamento Fetal da Universidade da Rainha (Austrália). Os pesquisadores observaram aumento significativo nos movimentos do feto, especialmente movimentos bruscos, quando mulheres falavam em cigarro. Segundo eles, isso não significa que falar ou pensar em cigarros seja perigoso, mas sim que mulheres induzem mudanças no corpo passadas ao feto. (Mais!, Folha de S.Paulo, 31 de março de 1996)

Entretanto, que tipo de jornalismo realizam os profissionais de divulgação científica que publicam teses que reforçam a discriminação racial, os preconceitos, o etnocentrismo? Eles estão a serviço de quem? Suas notas informam? Suas reportagens contribuem para qual sociedade? Para quais valores sociais? Tais matérias auxiliam em que dimensão da atividade humana? Qual a utilidade disso?

A revista britânica Nature, de 13 de janeiro, trouxe um artigo em que homens mais altos tendem a gerar mais filhos que homens alguns centímetros mais baixos. Os dados foram obtidos dos registros médicos de 3201 poloneses entre 25 e 60 anos. Homens sem filhos dessa amostra revelaram-se em média 3 cm mais baixos que os pais de pelo menos um filho. (Mais!, Folha de S.Paulo, 30 de janeiro de 2000)

A revista The New England Journal of Medicine , de 4 de njunho de 1992, traz estudo que conclui quer existem causas genéticas do fato de que a mortalidade infantil é maior em negros do que em brancos. Pesquisadores do Centro de Controle de Doenças, dos EUA, mostraram que entre filhos de pais com formação universitária, a mortalidade infantil é significativamente maior (1,02% contra 0,54%). Isso porque os bebês negros nascem com maior freqüência com deficiência de peso. (Mais!, Folha de S.Paulo, 30 de janeiro de 2000)

É claro que não se faz aqui a defesa de uma equivalência dos conceitos de verdade e de utilidade. Não se trata de pensar a verdade enquanto algo meramente utilitário, instrumental, aplicativo. Também não é o caso de seguir a direção sinalizada pelo filósofo americano Richard Rorty: suspendermos a obsessão pela verdade. Antes de tudo, é necessário que o jornalismo científico reflita sobre os conceitos que lhe dão base, que lhe sustentam. Pensar sobre a noção de verdade – o que ela é, o que representa, como pode ser buscada, como deve ser explicitada – é fundamental para construir um jornalismo comprometido com o seu público, interessado na evolução de uma sociedade que busca respostas para suas questões e consciente de seu papel nesta trajetória de construção e reconstrução histórica.

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Referências Bibliográficas:

HAWKING, Stephen. Uma breve história do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 1993

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. São Paulo: José Olympio, 1981

MAGGE, Bryan. As idéias de Popper. São Paulo: Cultrix, 1981

NIETZSCHE, Friedrich W. Verdade e Mentira no sentido extra-moral. In: Obras Incompletas - Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999 

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