GLOBALIZAÇÃO, REGIONALIZAÇÃO E A NOVA ORDEM MUNDIAL

archivo del portal de recursos para estudiantes
robertexto.com

ligação do origem

José Osvaldo de Meira Penna
[Conferência pronunciada em dezembro, 1999, no Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio, Brasil]

IMPRIMIR

 

A globalização é um fato. É o fenômeno mais evidente da modernidade, um processo que já conta com meio milênio de duração, uma evolução irreversível resultante dos descobrimentos e extraordinários avanços tecnológicos da humanidade a partir do período da Renascença. Podemos datar a globalização, se quiserem, dos fins do século XV quando portugueses e espanhóis se lançaram "por mares nunca dantes navegados", enquanto Copérnico e Galileu propunham uma teoria heliocêntrica que confirmava a redondeza da Terra e estendia infinitamente os limites do Universo. Desde então, o processo tem avançado a passos de gigante.

 Podemos, no entanto, recuar mais ainda. No Cristianismo encontramos, pela primeira vez bem definida, a tese da unidade da espécie humana. Quando anunciam os Evangelhos que a missão dos apóstolos é de estender a “Boa Nova” até os limites do universo e quando, em suas Epístolas, declara São Paulo que não há judeu, nem grego, nem escravo, nem senhor, nem homem, nem mulher, circunciso ou incircunciso, bárbaro ou scita – “pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Galatas 3:28 e Colossenses 3:11) – está, na realidade, pregando a superação de toda religião nacional, como eram ainda as crenças pagãs e o próprio Judaísmo, em favor de uma fé de âmbito católico no sentido literal do termo (do grego kath holon, “em geral” ou “universal”). O Cristianismo pode ser definido como uma religião “universal” nesse significado estrito. A Igreja católica nunca pretendeu o contrário, ainda que alguns padres, mal informados, condenem hoje a “globalização”. A idéia, aliás, brotou no próprio Estoicismo dos primeiros séculos de nossa era em Roma – então no apogeu de sua glória e poder. Quando o Imperador Marco Aurélio meditou a frase célebre: “Diz o poeta, cara Cidade de Cecrops; mas não dirias, Cara Cidade de Zeus?”, queria indicar a dualidade das Cidades, a nacional e a universal. Caracala, pouco depois, estenderia a cidadania romana a todos os habitantes livres do Império e Agostinho formularia transcendentalmente a mesma imagem na Cidade de Deus, que se sobrepõe às várias cidades terrenas.

O processo histórico de expansão planetária vale-se de um longínquo testemunho concreto quando, por volta da época de Trajano em princípios do segundo século de nossa era, as vanguardas de uma legião romana surpreenderam na longínqua Bactriana – ou seja, no que é hoje o Turcomenistão e norte do Afeganistão, abaixo do Hindu Kush – unidades avançadas do exército chinês. O fato é que, naquela única vez antes da modernidade, o Império Romano, o Ocidente, e o Império Chinês da dinastia Han, o Oriente, cobriam sua máxima extensão a ponto de se tocarem. Dois episódios notáveis permaneceram desse momentoso encontro. Através de um reino grego remanescente das conquistas de Alexandre, na Bactriana, que se havia convertido ao Budismo, a influência da estatuária grega se fez sentir sobre a arte budista da China e do Japão – contribuindo para a própria ligação da Índia, onde nascera a doutrina do Buda Gautama, com a Ásia Oriental onde prosperou essa religião. O Tibet é um laço comum entre a China e despencaram nas Grandes Invasões, derrubando o Império Romano a partir do quarto século de nossa era. Sob a liderança de Átila, os próprios hunos entraram na carniça. Em suma, o mundo já se globalizava muito antes de saber em que consiste a globalização. Outros fenômenos históricos contribuíram para o movimento planetário, como a expansão dos polinésios pelo Pacífico e dos wiquingues pelo Atlântico Norte, ambos em direção à América do Norte, tudo isso séculos antes da viagem de Colombo.

O grande fator de união da Eurásia foi, no entanto, representado pela conquista mongol. No século XIII, os vários impérios edificados pelos descendentes de Genghiz Khan, dominando da China até o Oriente Médio e da Mongólia até a Rússia, criaram condições que permitiram ao mercador veneziano Marco Polo atingir Kambalig, isto é, Peking (Beidjing). Antes dele, um monge franciscano, Giovanni da Piano Carpini, visitou a corte do Grande Khan para convencê-lo, em nome do Papa, a abster-se de invadir a Europa e a aliar-se com os Cruzados para uma ofensiva conjunta contra os mahometanos. Bagdad seria, pouco depois, destruída. Contudo, a conquista definitiva de um mundo ecumênico só principiou com os Grandes Descobrimentos, marcados por quatro etapas relevantes: a viagem de Colombo, dado como havendo “oficialmente” descoberto a América; a de Vasco da Gama que abriu o caminho da Índia e se prolongou, subsequentemente, com a chegada dos primeiros missionários e comerciantes europeus à China e ao Japão; a “descoberta” do Brasil por Pedro Alvares Cabral que associou nosso país ao movimento marítimo de extensão global da civilização européia; e a circunavegação do planeta pela esquadra de Fernão de Magalhães. Daí para a frente, o movimento se acentuou até culminar no século XIX. Em relação à China,. capítulos importantes foram a embaixada levada a efeito por Lord Macartney à corte do último grande imperador da dinastia mandchú em Peking (1794), embaixada que fracassou mas foi seguida, poucos anos depois, pela abertura forçada dos portos chineses após a chamada “guerra do ópio”, sendo Hong-Kong e Xanghai fundadas na ocasião. O outro capítulo foi a viagem do comodoro Perry que, em 1853, obteve sob a ameaça de seus canhões a abertura do Japão, desencadeando a “Restauração Meiji” – com a modernização sob a liderança do Mikado. A colonização da África, também no século XIX, e o acabamento da exploração do planeta em nosso próprio século (Polo Norte, Polo Sul, Monte Everest, Amazônia) terminam o que poderíamos denominar a “globalização geográfica” do mundo.

 

A idéia de “um Mundo Só”, em termos políticos, tem uma longa história. Ela é marcada pelo ensaio de Kant, de 1784, sob o título “Idéia para uma História Universal do Ponto de Vista Cosmopolita”. E, em 1919, o Presidente Wilson apoia a idéia de fundação da Liga das Nações que não se torna universal porque o próprio Senado americano se recusa a ratificar o Pacto que cria a organização. Em 1940, o candidato republicano contra a reeleição de Roosevelt, Wendell Wilkie, lança o slogan “Um Só Mundo”. Mas é o próprio Roosevelt que, com Churchill, concebem a Organização das Nações Unidas na Carta do Atlântico de Janeiro de 1942. A esta aderem, antes do fim da guerra, 46 nações “aliadas”, entre as quais o Brasil. Não me estenderei em relação à ONU, arremedo talvez prematuro de um governo mundial, sendo seu fim precípuo o de manter a paz e a segurança internacional, evitando novas guerras. Esses objetivos só têm sido parcial e confusamente alcançados pela Organização – que se justifica, entretanto, como cenáculo de debates na expressão dos anseios da opinião pública mundial.

Um ponto importante merece, a esta altura, ser destacado. Contrariamente à falsa idéia que prosperou entre nós, particularmente na Esquerda, não foi Karl Marx um adversário mas um entusiástico propugnador da idéia de globalização. No Manifesto Comunista de 1848, Mar e Engels declaram taxativamente: “Mediante a exploração do mercado mundial, a burguesia tem dado um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Com grande mágoa dos reacionários, ela puxou de sob os pés da indústria a base nacional onde se sustentava. As antigas indústrias nacionais foram destruídas ou estão sendo continuamente destruídas. São suplantadas por outras indústrias cuja introdução se converte em questão vital para todas as nações civilizadas; por indústrias que já não empregam matéria prima indígena mas matérias-primas oriundas das regiões mais longínquas do mundo; indústrias cujos produtos não só se consomem no próprio país mas em todas as partes do mundo. No lugar das antigas necessidades, satisfeitas com produtos nacionais, surgem necessidades novas que reclamam, para sua satisfação, produtos dos países mais afastados e dos clientes mais diversos. No lugar do antigo isolamento e da autarquia das regiões e nações, se estabelece um intercâmbio universal, uma interdependência universal das nações. E isso se refere tanto à produção material quanto à intelectual. A produção intelectual de uma nação se converte em patrimônio comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis; e a partir das numerosas literaturas nacionais e locais se forma uma literatura universal”. Chamo particularmente a atenção par as frases sublinhadas. Marx obviamente considera irreversíveis globalização e interdependência. Em várias outras obras e nos artigos que escreveu para jornais ingleses e americanos essa mesma idéia de internacionalização da economia, acompanhada pela globalização da cultura, são enfatizadas pelo fundador do comunismo, idéia que é desenvolvida por seus epígonos até o final do século. Os termos  são inconfundíveis. Marx concedia seus méritos à "classe burguesa", embora o fenômeno nada devesse ao preconceito de "luta de classes".

Em suma, o que muitos marxistas tupiniquins ignoram é que o velho guru barbudo era globalista, entusiasticamente globalista, pois acreditava que só uma economia capitalista madura criaria as condições indispensáveis à revolução proletária. A prova da ignorância está numa polêmica ocorrida em 1998, entre dois eminentes cartolas do PT, os deputados José Genoíno e Sandra Starling, líder do partido na Câmara. Por coincidência, comemorava-se, então, o sesquicentenário do Manifesto de Marx/Engels. Refiro-me a esse episódio para demonstrar quanta bossalidade ainda cerca as manifestações da intelectuária de Esquerda em nossa terra. Desconhecendo com toda evidência os escritos de seu mestre, Sandra Starling deblaterou contra a globalização, considerando-a contraditoriamente como um mito, uma ilusão falsa, uma perspectiva errônea e, ao mesmo tempo, uma realidade apocalíptica cujos efeitos perversos passou a enumerar em tons histéricos. Seu colega Genoíno, mais genuinamente marxista, compreendeu as implicações das teses de Marx para uma interpretação correta do que se passa hoje no mundo.

O estupendo paradoxo é que as profecias de Marx, que se esboroaram totalmente no que diz respeito à sua tese do triunfo inevitável do socialismo sob o efeito das Leis Férreas da História - revelaram-se uma antecipação realista no que diz respeito à universalização da Cultura ocidental. A luminosa realidade no texto básico do Marxismo é que é ela atribuída, justamente, à burguesia capitalista. O paradoxo é que seja exatamente a globalização o que hoje detestam os esquerdistas, não em termos de um arrazoado econômico e social, mas por força de irresistíveis paixões nacionalistas.

A interdependência inevitável das nações é o que “a artilharia pesada” do Manifesto de 1848 anuncia, com a qual o capitalismo está “destroçando as Muralhas da China”, forçando assim, nas próprias palavras de Marx, “a capitulação do intenso e obstinado ódio dos bárbaros contra os estrangeiros”. Mas, me pergunto então: quem são hoje “os bárbaros mais obstinados”? Não seriam os de Cuba e da Coréia do Norte, os dos dois últimos baluartes da reação vermelha - os mais isolados, os mais economicamente “independentes” e os mais miseráveis? A extrema ternura e cega adoração que os esquerdistas de todo o mundo, particularmente brasileiros, que somos tão emotivos, dedicam a personalidades como o do “queridíssimo Fidel” (como assim a ele se endereçou o ex-cardeal arcebispo de São Paulo), não possui explicação racional. Irracional, na verdade, é a curiosa simpatia que, em nossos meios de comunicação, despertam personalidades exóticas do tipo de Fidel, Saddam Hussein e Slobodan Milosevitch – talvez porque se posicionem como machões ou heróicos Davids que ousam desafiar o Grande Satã do Tio Sam.

 

Outro exemplo é a criação, num nível mais sofisticado e francamente acadêmico, de um curioso revisionismo em matéria de história pátria. Subitamente, ao invés de vilão, surge Francisco Solano Lopez como herói da luta contra a Dependência e a Globalização. O Paraguai daquela época, de Francia e Solano Lopez, havia, efetivamente, alcançado um prodigioso estágio de crescimento autárquico e fora transformado, por seus três ditadores sucessivos, numa espécie de Prússia sul-americana, solitária, orgulhosa e agressivamente auto-suficiente: uma verdadeira autarquia com um certo vezo teocrático jesuítico. Na interpretação marxista com que os neo-historicistas patrícios pretendem exaltar essas figuras, longe de ser responsável pela guerra total que o arruinou em meados do século passado, o Paraguai, produto do coletivismo jesuítico das Missões de Guaira, foi vitima do Imperialismo britânico, agindo por intermédio do sub-imperialismo brasileiro. Que objetivos esses “imperialismos” procuravam alcançar, eis o que esses brilhantes e ilibados pesquisadores jamais condescendem a nos explicar. Mas enfim: deixai-os sonhar em suas grotescas fantasias autárquicas...

Marx não previra, contudo, o papel monstruoso do Estado. Pensara que fosse apenas o Comitê Diretor da burguesia – destinado à supressão pelo proletariado, uma vez vitoriosa a Revolução. Ora, é precisamente esse Estado, cujo crescimento patológico os liberais procuram deter, o que se transformou no patrimônio de uma Nomenklatura egoísta que sobrevive pela fraude sob o rótulo de defesa da “justiça social”... A verdade é que nenhum dos grandes maîtres à penser da primeira metade do século havia pensado na problemática do Estado-nação soberano, quando essa questão crucial forçosamente se levanta ao falarmos de Globalização. Um único economista da época, quase absolutamente desconhecido, previu e preveniu quanto aos aspectos ominosos do problema. Foi Friedrich Hayek que, em 1944, publicou um livrinho sob o título “O Caminho da Servidão”, para provar que o crescimento do Estado interventor e o controle crescente da economia pelos políticos e os burocratas conduziria, inevitavelmente, ao Totalitarismo, esse mesmo contra os quais os Aliados ocidentais estavam então combatendo.

Depois do colapso do comunismo no Annus Mirabilis de 1989, alguns liberais acreditaram que suas idéias haviam definitivamente triunfado. A própria história alcançara seu fim. Esqueceram que não somente a história nunca, presumivelmente, terá fim mas que as contradições entre os homens vivendo em sociedade, embora podendo mudar de aspecto, jamais cessarão. Passaram-se dez anos. A crise financeira na Ásia e na nação que, paradoxalmente, fora o sustentáculo máximo do Marxismo, ressuscitaram o cadáver da Ideologia que, na mente das Viúvas inconsoláveis da Praça Vermelha, se transformou, como anunciava o Manifesto, num espectro. Mas um espectro que, não a nós, liberais, mas a eles sobressalta. A crise é financeira. Ela atinge valores abstratos, câmbio, investimentos, meios de pagamento que, por força da automação e da Informática, provocam desemprego exatamente nos países cujos governos não souberam manobrar adequadamente as regras do mercado competitivo. A própria crise e o sucesso recente de partidos cor-de-rosa na França, Inglaterra e Alemanha, reacendeu-lhes as esperanças utópicas. O “pensamento desiderativo” (wishful thinking) pode manifestar-se de maneiras surpreendentes: desde o grito do notório ressentido, “A Crise é o Muro de Berlim do Capitalismo!”, até a distorção mais sutil como quando a imprensa brasileira anuncia a vitória dos democratas nas eleições americanas ao passo que, na verdade, ocorreu apenas uma pequena redução da absoluta maioria republicana na Câmara, sem afetar seu triunfo no Senado e em 32 dos 50 governos estaduais dos USA.

A extraordinária capacidade dos intelectuais de estilo neo-burro, como os chamava Gustavo Franco, de se auto-iludirem, pode ser aquilatada por três fatos decisivos que procuram ignorar. O primeiro é que a economia do grande bicho-papão, os USA, se encontra em franca e inédita prosperidade, criando três milhões de empregos e absorvendo dois milhões de imigrantes por ano, precisamente no momento em que as economias semi-socializadas da Europa registam altos índices de desemprego, em conjunção com a presença de uma pesada massa indesejável de clandestinos árabes, africanos, turcos, iugoslavos e refugiados políticos, vegetando na economia informal.

            Numa incoerência semelhante parecem incorrer os que associam globalização e neoliberalismo como expressões "pósmodernas" da intervenção do demônio na história. Mas será que se dão conta do que aconteceria se, por ato ou boato de algum arcanjo ou espírito sobrenatural - encarnações tardias das masturbações mentais de Rousseau - pudesse o Brasil trancar-se dentro de suas fronteiras como autarquia absoluta, terreno fértil para a ideologia jingo-chauvinista que tanto prezam? Pois, que é o Brasil senão um dos produtos mais autênticos, num mercado aberto de coisas, de idéias e de pessoas, da extensão global dos conhecimentos, dos transportes, das comunicações e do comércio que se desenvolve desde 1500? Que é o Brasil, em outros termos, senão um dos mais belos expoentes da globalização? Do exterior, do mundo global vieram portugueses, africanos e outros imigrantes, entre os quais, presumo, os ancestrais daqueles que me estão lendo. Do exterior vieram, e continuam sendo importados os apetrechos tecnológicos que permitem ao Brasil ser hoje uma potência média em desenvolvimento, todos repito: aviões, automóveis, telefones e eletricidade, canhões, fuzis, tanques e navios, computadores e aparelhos de televisão, medicina, remédios, higiene, técnicas de controle da natalidade e tratamento odontológico, economia industrial, sistema monetário de troca, capitais e investimentos diversos, modelos de regimes políticos, constituições e ideologias. Vieram, em suma, língua, livros, filosofia, religião, quase toda a cultura e conselhos de bom senso... que outra coisa mais desejam? A globalização pode nos conduzir a um planeta sem fronteiras. Pode integrar-nos em áreas mais extensas de convivência pacífica - como está acontecendo na Europa e, timidamente, com nossos vizinhos platinos, graças a Deus! E ela exige uma língua comum, como foi, outrora, o latim e depois o francês.

É possível, entretanto, que um único governo mundial venha ainda a ser, como pensam os angustiados, um sonho prematuro ou, pelo contrário, um pesadelo horroroso. Todavia, é mister que haja instituições, tanto nacionais quanto internacionais, que combatam fenômenos que, esses também, não conhecem fronteiras. as epidemias, as catástrofes ecológicas, a criminalidade em geral, pública e privada. Ninguém falou, por enquanto, num único governo mundial. Mas que há necessidade de uma nova "organização internacional" - isto é, "entre as nações" - eis que não se trata de uma utopia, mas de um Grande Projeto bem-vindo pelas pessoas de bom senso. Afinal de contas, estamos terminando um século atormentado em que milhões de seres humanos morreram e continuam morrendo, estupidamente, em guerras mundiais, guerras regionais, guerras civis e guerrilhas, pelo efeito perverso das ideologias que nos desgraçaram e que, todas elas, pregavam a exaltação grosseira dos símbolos do coletivismo fechado.

            As ciências sociais raramente se têm associado com a filosofia política e a historiografia para estudar o fenômeno desse massacre coletivo, resultante de regimes totalitários e tiranias personalistas. Há um número considerável de livros publicados sobre o Holocausto judaico da IIa Guerra Mundial; sobre a criminalidade no mundo; sobre os males do colonialismo e outros no gênero. O professor R.J. Rummel, cientista político da Universidade de Hawai, se distingue pelo trabalho gigantesco e obsessivo que tem realizado, com a publicação de já quatro livros sobre os genocídios ou o que ele chama os "democídios" de nossa centúria. Esta, como se sabe, é notória por haver avançado a cultura humana no salto mais espantoso do conhecimento científico e desenvolvimento tecnológico e econômico, mas também de ser responsável pelo morticínio inédito na história da Humanidade. Rummel não está tanto interessado nas mortes em conflitos bélicos que qualificaríamos de "normais" - como os oito milhões de soldados mortos diretamente em combate na Ia Guerra Mundial. Sua pesquisa se dirige ao massacre puro e simples de civis, prisioneiros de guerra, refugiados em trânsito, mortos em campos de concentração e de outros modos eliminados, numa variedade de formas que deixa os diversos torturadores e inquisidores da Idade Média como suaves sadistas em comparação. O número de mortes por violência coletiva em nosso século atinge facilmente 200 milhões. Rummel calcula em 170 milhões apenas os mortos em democídios, excluindo os soldados na guerra. Ele estabelece uma lista dos mega-assassinos que é a seguinte, com as respectivas cifras de sua vítimas (em milhões): URSS (62); China comunista (35) com mais 3,5 no período da guerra civil e guerrilha; Alemanha nazista (21); China nacionalista e período de anarquias militar(11); Japão (6); Cambódia (2); Turquia (1,8); Vietnam (1,7); Polônia e Tchecoeslováqauia (1,6 no episódio da expulsão dos alemães em 1944/45); Paquistão (1,5); Iugoslávia (um milhão) tanto por parte dos Titoístas quanto Croatas e Sérvios; Coréia do Norte (1,6) e México (1,4) no período da Revolução mexicana. Alguns outros episódios foram, infelizmente, esquecidos pelo eminente historiador detetive: os milhões resultantes dos regimes comunistas da Etiópia (Menguistu) e Angola; assim como os milhões resultantes da partilha do sub-continente indiano, inclusive constantes conflitos comunais. Cifras de algumas centenas de milhares de vítimas poderiam também ser registadas em "la violência" na Colombia e nas guerras coloniais da Inglaterra e de Portugal. A tese que as democracias não fazem guerras, nem cometem "democídios" é desmentida pela Guerra da África do Sul do princípio do século em que, pela primeira vez, o sistema de campos de concentração foi inventado pelos ingleses. Episódios polêmicos que deixaram seqüelas, como a guerra de independência da Argélia e a atual revolta dos Fundamentalistas (que já causaram mais mortes do que a luta contra os franceses); a Guerra Civil espanhola e várias guerras tribais na África não possuem tampouco dados exatos de perdas e genocídios. Sempre em tais estudos é difícil evitar parcialidades, preconceitos ideológicos, silêncios deliberados e muita hipocrisia. É evidente que os Aliados cometeram democídios nos bombardeios da 2ª Guerra Mundial e também causaram perdas terríveis em sua tentativa de contenção do comunismo na Coréia e no Vietnam. Menciono esses últimos casos porque me parece uma escandalosa hipocrisia o governo inglês deter agora o general Pinochet, por haver eliminado três mil comunistas, quando foi responsável por centenas de milhares de mortes em seu próprio esforço de resistência ao totalitarismo no período da Guerra Fria.

 

Na reestruturação global da humanidade talvez esteja certo o japonês Kenichi Ohmae quando, em sua obra The End of the Nation State, antecipa a redução do Estado-nação tradicional a grupos regionais, estruturados em torno de centros de crescimento econômico - como por exemplo o que abrange hoje o Japão, a Coréia do Sul, Taiwan e o litoral da China continental; ou aquele que engloba o Sul do Brasil, o Uruguai e a província de Buenos Aires, como núcleo atuante do Mercosul. Pode ser também que seja substituído por grandes áreas culturais como antecipa Samuel Huntington, o grande filósofo político e professor em Harvard – e, neste caso, o mundo do século XXI comportaria quatro grandes blocos, o Ocidental, o Asiático oriental, o Islâmico e o Russo. Não creio, porém, que tal compartimentação seja viável.

Nunca prosperou um ideal de abertura globalizante, nem entre a extrema esquerda leninista, nem entre a extrema direita, de linha-dura nacionalista. Mas o fechamento autárquico, no gênero do que hoje impera no Irã, Afeganistão, Cuba, Birmânia ou Coréia do Norte - só persiste como ilusão de viabilidade entre aqueles tresloucados que, sob várias bandeiras, vários partidos e vários líderes totalitários, barbudos ou não, pretenderam manter suas nações no estágio, primitivo e provinciano de seus respectivas modelos botocudos. É um beco sem saída. A própria dinâmica do desenvolvimento tecnológico se encarregará de condenar essa solução: os Nehanderthal e Aiatolás de qualquer índole paleolítica jamais impedirão a travessia global das ondas eletromagnéticas. O mundo é hoje um só. É a grande realidade de que nos damos conta neste final de milênio de progresso inédito na história da humanidade. E ainda bem!

Ao levantar essas questões, desejo solicitar a atenção para a evolução “dialética” que a semântica ideológica sofreu desde o fim da Guerra Fria e a derrubada do Império soviético. Historicamente, a Globalização, como problemática, está associada a uma série de outros fenômenos paralelos, de natureza filosófica, que contribuíram para o resultado de modo independente. Há pouco mais de 300 anos, Locke falou em tolerância religiosa e liberdade aplicada ao sistema político, assim como ao direito de propriedade. Em 1776, coincidindo com a proclamação da Independência das colônias britânicas da América do Norte, Adam Smith publicou seu Inquérito sobre as Origens da Riqueza das Nações, estendendo a idéia de um mundo sem fronteiras e de liberdade ao campo econômico, com o propósito de criticar o mercantilismo então dominante. O Mercantilismo se sustentava sobre a soberania do monarca absolutista sobre o patrimônio de toda a nação. Firmada pouco tempo depois, a Constituição dos Estados Unidos confirmou a idéia da viabilidade de uma sociedade livre e aberta ao mundo, com a absorção de homens de todas as raças, religiões e procedências, e pluribus unum – ainda que o princípio momentoso fosse durar dois séculos para, progressivamente, beneficiar os homens de cor e as mulheres. Em 1789, a Revolução Francesa reproclamava as mesmas idéias, com maior ênfase e através de um trauma emocional que repercutiria em todo o mundo. O trinômio Liberdade, Igualdade e Fraternidade firmavam uma doutrina não só suscetível de aplicação global, mas comportando a necessidade implícita de sua universalização. É evidente, contudo, que os três princípios são autônomos e podem entrar em conflito. O conflito não tardou, aliás, a manifestar-se quando a República, firmando-se pelo princípio das nacionalidades, transferiria a idéia de soberania, antes personalizada no monarca absoluto e concreto, para o Estado abstrato.

O Estado nacional soberano surgiu, precisamente, no século XVIII – mesmo que sob formas e regimes diversos, republicano ou de monarquia constitucional, parlamentarista ou presidencialista. A idéia de soberania fora transplantada, por volta dos séculos XV e XVI, do Papado para as várias monarquias nacionais que se constituíam. Os reis passaram a reivindicar um caráter semi-divino ou de intermediários entre a divindade e seus respectivos povos. Maquiavel, Bodin , Bossuet e, em certo sentido Hobbes (Hobbes, na realidade, estava antecipando o domínio do individualismo e transformando a idéia de Estado, seu Leviathan, num conceito meramente instrumental), concederam aos reis o privilégio de receberem sua dignidade “pela Graça de Deus”. Mesmo o general Franco, em pleno século XX, considerou-se “caudillo de España pela Gracia de Diós”. Como rei “cristianíssimo”, Luís XIV, no apogeu da idéia de soberania monárquica, preferiu traduzí-la através dos símbolos da mitologia helenística e do heliocentrismo copernicano, fazendo-se qualificar de “Rei Sol”.

Com o triunfo do republicanismo, foi a noção atribuída ao próprio Estado-nacional e criada uma ideologia ad-hoc. Sua essência consiste em atribuir à nação, nossa “Pátria”, uma dignidade de natureza celestial que, para servir seu soberano prussiano, Hegel deliberadamente coroou como a própria expressão do Geist, o Espírito universal – só que, em face de nossa “pátria” nacional soberana, devem necessariamente surgir outras nações inimigas contra as quais devemos eventualmente entrar em guerra. Morrer e matar pela Pátria passou a ser um dos mais altos ideais do homem. Os massacres inomináveis de nosso século, nas duas guerras mundiais, foi no que deu o Gott mit uns, o Deutschland über alles in der Welt, a France éternelle em cujo benefício deve a terra ser fertilizado, de modo que “un sang impur abreuve nos sillons”, o Dieu et mon Droit, o My country, right or wrong e o “Pátria amada, idolatrada, salve, salve” em virtude de cujo culto “verás que um filho teu não foge à luta, nem teme quem te adora a própria morte!”...

 

A antítese dialética adquiriu cada vez mais uma conotação maniqueísta: “nós” representamos o Bem e a Verdade, “eles” o Mal e a mentira. A fusão dos aspectos contraditórios da Revolução foi tentada por Napoleão. Mas para alcançar seus fins, l´Empereur e suas águias utilizaram a dinâmica agressiva do Imperialismo francês e a rebordosa causada, que se estendeu à América Latina, e em nosso próprio século à Ásia e África, insuflou um espírito belicoso cujas consequências ominosas não tardaram a ser percebidas. As várias doutrinas se transformaram em “Ideologias” e estas possuem um conteúdo emocional que se polarizou em uma direita e uma esquerda. Havia necessidades de projetar todos os ressentimentos, todos os ódios e invejas em bodes expiatórios apropriados. No início desse desenvolvimento, o Liberalismo foi considerado de esquerda, como eram os whigs ingleses em relação aos conservadores tories. Em seguida, a dicotomia passou a distinguir os coletivistas do Socialismo, de esquerda, e os coletivistas do Nacionalismo, arregimentados à direita. Duas ideologias ad-hoc destinadas a gerar, artificialmente, a “religião civil” que Rousseau propora como substituto para um Cristianismo em deliquescência.

 No segundo estágio da evolução, que culmina em agosto de 1914 quando arrebenta a primeira Grande Guerra, socialismo e nacionalismo entram num relacionamento ambíguo que provoca outra guerra mundial e inacreditáveis genocídios. Se, na Alemanha e em outros países europeus, o “fascismo” procura fundir internamente as duas ideologias, ou os dois irmãos inimigos naquilo que, mais apropriadamente, se deveria qualificar como “nacional-socialismo”, da contradição tampouco escapa a “extrema esquerda” comunista. O Estalinismo e o Maoísmo em nada mais consistem, de fato, do que na expressão conjunta das duas tendências, configurando respectivamente um nacionalismo fascista russo e um nacionalismo fascista chinês. A Guerra Civil espanhola (1936/1939), em sua trágica brutalidade e complexidade, representa o episódio final e paradigmático do confronto ideológico característico de nosso século. É a pre-estréia da IIª Guerra Mundial e lembro-me das emoções que suscitou na minha mocidade. A reversão das expectativas ideológicas se processa a um nível subterrâneo entre 1947 e 1989, isto é, no período da Guerra Fria que resulta, precisamente, da resistência às ambições imperiais da Rússia soviética que se valia da Idéia-Força da Esquerda.

Entretanto, contra esse coletivismo tribal primitivo levantou-se, pouco a pouco, uma nova visão destinada a por no centro das cogitações o indivíduo, o homem livre e responsável. Ou seja, nós mesmos, donos de nosso nariz. No princípio do desenvolvimento dessa nova Weltanschauung, o Liberalismo, “liberalismo antigo”, “liberalismo clássico” ou primeiro liberalismo, como tem sido chamado, foi considerado revolucionário e contra ele resistiram obstinadamente, como continuam resistindo, os conservadores, os absolutistas e os nacionalistas. Tocqueville foi o primeiro sociólogo e filósofo político – que considero dos maiores – a antecipar a ruptura do trinômio da Revolução Francesa, diagnosticando a inevitável antítese que se iria criar entre o Liberalismo, de um lado, a Fraternidade patriótica e o Igualitarismo do programa de 89, do outro. Na visão de Tocqueville, expressa em sua obra máxima “De la Démocratie en Amérique”, os EEUU sobrepujaram a colisão que comprometeu a Revolução Francesa porque, em sua comunidade étnica européia, as condições já eram as mais igualitárias possíveis. A comunidade das Treze Colônias constituía uma população de classe média, relativamente homogênea, que conseguira afastar o problema da “instituição peculiar”, a Escravidão, com a presença da etnia africana assim como dos remanescentes da população indígena original. A questão, porém, permanecia e iria provocar, em meados do século XIX, o sangrento enfrentamento da Guerra Civil. Na primeira etapa, só uma contradição fora solucionada. O final se registou nos anos 50 a 70 de nosso próprio século, no que poderíamos chamar a Segunda Revolução Americana, que culminou eliminando, definitivamente, a discriminação tanto em termos de raça quanto de sexo. A Campanha dos Direitos Civis assegura, na verdade, o cumprimento derradeiro daquele texto básico da Declaração da Independência que proclama terem sido os homens criados iguais, com seus direitos fundamentais à vida, à liberdade e à procura da felicidade. Ora, a satisfação do ideário original da nação americana assegura, e só ele podia assegurar, o surgimento da América como campeã da Liberdade. Uma das mais prodigiosas realizações de Tocqueville foi haver previsto, precisamente como o fez ao final de sua obra, que as duas grandes potências do século seguinte seriam a América, paladina da liberdade, e a Rússia, campeã do despotismo. A característica fundamental da comunidade americana, legitimada pelo jus soli, é como já salientamos a abertura total aos homens de todas as raças, religiões e nacionalidades.

            Isso nos conduz a concluir que a importância do resultado obtido na evolução da sociedade multirracial americana foi, justamente, elevar o indivíduo como sujeito fundamental do direito, um sujeito livre e, perante a lei, igual a qualquer outro. Considerai que é essa a condição sine qua non para o surgimento eventual de um mundo ecumênico. Sem que exista um regime em que os indivíduos sejam livres, independentemente de sexo, raça, religião e cultura, como produtores e consumidores numa economia de mercado, não é possível imaginarmos a realização da Fraternidade universal, prometida nos Evangelhos e consignada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

Notai que muito poucos países já hoje cumprem as condições necessárias ao ambiente da sociedade global. Além dos Estados Unidos, essas nações são o Brasil, a Austrália e, em termos mais restritos, o Canadá (onde perdura a problemática do Québec francófono). O milagre da África do Sul pode criar um quinto membro dessa comunidade de nações que conseguiram transcender as inatas restrições e discriminações contra membros de grupos étnicos estranhos ao nosso. É como se o que outrora se qualificava como o Novo Mundo houvesse gerado uma cultura já potencialmente globalizada, ao contrário dos regionalismos e nacionalismos de base étnica, em vigor no Velho Mundo euroasiático.

 

Na Ásia, a persistência dos ímpetos autárquicos, discriminatórios e endogâmicos se revela pela frequência de embates sangrentos entre castas e comunidades étnicas ou religiosas diversas. A hostilidade intratável entre a Índia e o Paquistão, que causou perto de um milhão de mortos no momento da Independência e nas várias guerras subsequentes, contrasta com a doutrina de ahimsa, “não-violência”, pregada por Gandhi. A Indonésia sofre, no momento, de conflitos internos da mesma natureza entre a maioria muçulmana e as minorias chinesa (em grande parte budista) e cristã. A perseguição às minorias cristãs é notória na China e em muitos países árabes sob governos fundamentalistas islâmicos. A Malásia se separou de Singapura precisamente pela incapacidade de suas duas etnias dominantes, os malaios islamizados e os chineses, de conviverem pacificamente. Os conflitos internos que ameaçam a integridade da China, no Tibet e no Turquestão, provêm de contenciosos da mesma natureza. Na Europa, o grande exemplo contemporâneo dessa situação de distonia é a Iugoslávia. O Estado multinacional se desintegrou em guerra civil em virtude das discórdias entre os sérvios ortodoxos, outrora hegemônicos, os católicos da Croácia e Eslovênia, e os muçulmanos da Bósnia e Kôssovo.

A superação dos conflitos nacionais que ensanguentaram a Europa desde o surgimento do Princípio das Nacionalidades, implícito no espírito da Revolução Francesa, se deu através do movimento de integração econômica que culminou com a constituição do Mercado Comum, o qual se encaminhou, rapidamente, para uma integração também política. O estímulo para esse processo surgiu, logo depois da IIª Guerra Mundial, pela consciência de franceses e alemães que não podiam prosseguir na sequência de vendetas e revanchismos que assolavam todo o continente. De Gaulle e Adenauer foram os eminentes protagonistas de tal curso de singular sabedoria política. Não nos esqueçamos, porém, que o instrumento prático para o sucesso do movimento se revelou residir na solidariedade econômica. A integração da CEE se iniciou, sabiamente, pela comunidade do carvão e do aço entre as duas nações centrais, França e Alemanha. Não há dúvida que nosso próprio Mercosul encontrou seu modelo na comunidade da Europa ocidental. Esperamos que em nosso Cone-Sul seja definitivamente eliminada a hostilidade artificial que, durante 150 anos, prejudicou o relacionamento entre Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai.

Paralelamente a tal processo integrativo se regista um outro, oriundo de tradições históricas ainda mais antigas. É o que provoca o impulso pela autonomia de entidades regionais ou provincianas, cuja identidade pode ser determinada pela religião, a língua ou certas peculiaridades étnicas. Os exemplos mais salientes são o da Grã-Bretanha e da Espanha. A tradição histórica unificadora e centralizadora de Castela cedeu, finalmente, em grande parte graças ao rei João Carlos e ainda como reação ao trauma da Guerra Civil, à iniciativa de conceder autonomia à Catalunha e ao País Basco. Do mesmo modo, a Escócia obteve o direito de constituir seu próprio Parlamento, com o privilégio de criar uma legislação própria. O País de Gales está reivindicando um regime semelhante. Minorias fanáticas recorrem ao terrorismo ao enfrentarem as resistências da população mais moderada na Irlanda do Norte e no País Basco. Na Itália, o Norte próspero e industrial se ressente de ser governado pelos políticos semi-mafiosos de Nápoles e Sicília. A desintegração do Império soviético, sucessor do tzarismo, obedece a um mesmo processo histórico. No caso, o que se passou com a URSS se assemelha tanto a esse processo de regionalização, quanto ao que ocorreu com os Impérios coloniais europeus, após o término da IIª Guerra Mundial, por força do princípio das nacionalidades. A legitimidade de tais movimentos regionalistas só se estabelece, todavia, quando não recorrem à força: é inaceitável a pretensão do IRA de integrar o Ulster à Irlanda quando a maioria protestante e anglófona da população dessa província prefere manter seus laços com o Reino Unido. Na França, a Córsega sofre do mesmo separatismo da bomba e da metralha. Na própria URSS, o processo não foi indolor, como vimos no episódio da secessão da Che´snya e dos conflitos que dividiram a região do Cáucaso, afetando a Geórgia, a Armênia e o Azerbeidjão.

 A situação mais triste é a da África. A estrutura basicamente tribal do continente ao sul do Sahara entra em colisão com a idéia de nacionalidade, introduzida pela organização colonial de origem inglesa, francesa, belga e portuguesa. Dois casos particulares são instrutivos; o da Nigéria que tem conhecido uma convivência difícil entre suas grandes tribos, os Haussás islamizados do Norte do país, os Igbôs do Sudeste, que sofreram o impacto dos missionários protestantes e formam uma etnia excepcionalmente dinâmica, e os Iorubás, da Nigéria sul ocidental. E a triste sorte de Angola que resulta da combinação de fatores tribais, contaminados pela ideologia marxista trazida por cubanos, alemães orientais e russos.

De um modo geral, podemos resumir esse aspecto da problemática que estamos estudando pela ação contraditória de forças centrífugas e forças centrípetas. As primeiras “balcanizaram” a Europa oriental e o antigo Império espanhol da América. As segundas, mantiveram a unidade das grandes potências modernas, atuais ou emergentes, como os Estados Unidos, a China e o Brasil. Nas Nações Unidas, que já abrigam hoje umas 170 nações – não sei se é isso mesmo, já perdi a conta! – convivem uma variedade de estruturas nacionais de origem, poder econômico e militar, e de significado demográfico e cultural extremamente diversos, criando uma enorme confusão que torna tão ineficaz a Organização como modelo de um futuro Governo mundial.

 

De meu ponto de vista, a conclusão que podemos retirar da breve análise realizada acima, na perspectiva deste final de século, é que a estrutura inflexível do Estado-nação soberano tornou-se, obviamente, obsoleta. Mas vejam bem! O que considero obsoleto é o conceito de soberania. É difícil imaginarmos a sobrevivência de mini-estados como alguns que vamos encontrar na Polinésia, na África ocidental e na América Central e do Sul. A tradição dos símbolos da Pátria, criada em 1789 como conclusão do processo de declínio do Absolutismo monárquico patrimonialista e em obediência à tese da “religião civil” da proposta de Rouseeau, alcançou o final de sua utilidade. Passaportes, alfândegas, hinos nacionais, bandeiras, tropas desfilando em ordem unida para “apresentar armas” a líderes nacionais ou estrangeiros – todos esses elementos da simbologia nacionalista podem persistir em alguns países em que o processo histórico de integração é multissecular e glorificado por eventos de sentido quase místico. Seria o caso do nacionalismo francês, por exemplo, cujas raízes podem ser encontradas na epopéia de Joana d´Arc. O General De Gaulle ainda era muito cioso de todos esses apetrechos, mas assim mesmo sua visão era bastante larga para imaginar uma “Europa do Mediterrâneo aos Urais”...

Mas o mimetismo modernizante que leva o Burundi a se constituir em nacionalidade autônoma, através de métodos artificiais, acaba provocando tragédias como o genocídio da etnia Tutsi. O mesmo espetáculo lamentável está sendo registado em várias outras partes do mundo. Afinal de contas, as duas Guerras mundiais do século XX podem ser explicadas pelos instintos tribais que se tornam grotescamente agressivos quando uma ideologia grosseira, de natureza coletivista, se serve de outra tendência natural do homem, a de repúdio ao diferente, ao estranho, ao forasteiro, ao “outro” cuja cor de pele, conformação craniana ou língua são diversas das nossas, para tentar consolidar-se. Quando se fala, talvez com certa ingenuidade, no Fim das Ideologias, o que se propõe é um ambiente de convivência tolerante entre pessoas individualizadas, independentemente de sua religião, cor ou sexo. Sem tolerância, a própria democracia pluralista não faz sentido. Insisto, por isso, no sentido que o individualismo faz parte integrante da estrutura da sociedade liberal em processo de globalização.

Na nova perspectiva universal, surge então a questão mais difícil do relacionamento entre o econômico e o político (ou cultural e religioso). Verificamos que os dois fatores em geral colaboraram para a extensão progressivamente mais ampla da consciência ecumênica. Piano Carpini viajou até a Ásia Oriental por motivos políticos de base religiosa. Marco Polo por motivos puramente comerciais. Colombo descobriu a América e Vasco da Gama o caminho das Índias pela combinação dos dois impulsos. Na própria economia, porém, a evolução se processa pela substituição de uma visão patrimonialista e mercantilista fechada, como a que ainda dominava o Ocidente e o Oriente no século XVIII, e o horizonte do mercado aberto universal que anima os mais audazes e lúcidos descobridores, colonizadores e investidores. Ao pesquisar e aconselhar uma economia aberta, se estava Adam Smith referindo tanto a um mercado interno, quanto a um mercado externo, inerente à noção de livre-cambismo.

É fato, de qualquer forma, que o comércio parece haver exercido uma influência prioritária na abertura para o relacionamento pacífico entre os povos. O relacionamento entre tribos, mesmo no ambiente primitivo da floresta amazônica, se faz inicialmente pela troca pacífica de objetos, antes do que pela desforra bélica. A famosa tese do Senhor e do Escravo, que Hegel propôs e tanto influenciou Marx na elaboração de sua teoria da Luta de Classes, perde de vista que o comércio pode, em última análise, abrandar a agressividade inata do Homo Sapiens. Esta, que é uma espécie carnívora, ao mesmo tempo gregária e belicosa, é também uma espécie racional como Hobbes vislumbrou, capaz de concluir o Contrato Social por interesse comum a longo prazo. O exemplo mais evidente do processo de racionalização é a instituição da Escravidão. Originariamente, os prisioneiros de guerra era normalmente trucidados e, às vezes, comidos em festim canibalesco, para lhes absorver as virtudes secretas. Suas mulheres eram estupradas ou igualmente mortas. A preservação do prisioneiro nas guerras tribais, para a venda como escravo, constituiu, nesse sentido, um progresso da racionalidade sobre o instinto. Eventualmente, se descobrirá que o empregado livre, trabalhando contra pagamento, é mais eficiente na produção. O que se pode dizer é que os instintos tribais permanecem, mesmo na Europa e na Ásia civilizadas, de modo que um sérvio tenha tanta repugnância em aceitar a convivência com um albanês quanto um malaio com um chinês. O relacionamento econômico no mercado possui a virtude de transcender tais preconceitos étnicos e, pela sua própria despersonalização, conduzir à abertura do mercado na amplidão global que hoje se manifesta. Se possuo um Computador americano com um Monitor fabricado em Tijuana, no México, um No-break brasileiro e o Fax da Panasonic japonesa, fabricado na China, não preciso saber se os fabricantes de tais produtos são católicos, budistas, brancos, ameríndios, monárquicos, poligâmicos ou comunistas. Nada nisso importa. Afinal de contas, contrariamente aos preconceitos propagandísticos da Esquerda brasileira, o Mercado “neoliberal” não come criancinhas, nem executa “limpezas étnicas” nos territórios respectivos de produtores e clientes. Criancinhas, para dizer a verdade e em que pesem as angústias fidelistas do Senador Roberto Freire, estão sendo comidas pelos camponeses da Coréia do Norte porque estão morrendo de fome, eis que seu governo maoísta tem mania de grandeza e fabrica mísseis intercontinentais, ao invés de permitir as técnicas eficientes da agricultura em regime de propriedade privada. A autarquia não funciona, ponto final.

As considerações precedentes levantam a questão de saber se a liberdade política, que é pressuposto da democracia, depende ou não da liberdade econômica – e se ambas exigem ou não o processo de globalização do mercado. A questão é controvertida. Hayek tornou-se o mais eminente economista da segunda metade do século ao argumentar, como já assinalamos, que a intervenção do Estado na economia, através de todas as formas constrangedoras, desde as mais brandas do socialismo democrático, até as mais ferozes do comunismo estaliniano ou maoísta, conduz irremediavelmente à servidão totalitária. Outros alegam, com razão, que o processo de conquista da liberdade política ocorreu na Europa ocidental e se estendeu, posteriormente, a outros continentes, sem que isso implicasse a existência de um mercado livre no âmbito interno e no externo. Não nos esqueçamos que um mercado interno livre pode, amiude, conviver com uma legislação protecionista como foi, em certa época, o caso de muitas nações entre as hoje mais desenvolvidas, inclusive os Estados Unidos. A Grã-Bretanha foi a primeira a pregar o livre-cambismo porque já era rica e dominava os mares. Mas acontece que o Japão pode ser uma democracia e alegar a existência de uma economia capitalista quando, na verdade, continua sendo um dos países mais fechados do mundo. O japonês não compra produtos estrangeiros, não porque esses produtos sofrem acréscimos de preço pela taxação aduaneira, mas porque prefere comprar o que é japonês. A introversão nipônica cria um problema para seu inter-relacionamento humano com o estrangeiro, revelando-se um sério obstáculo ao processo “mental” de globalização. E a crise por que passa atualmente o Império já é sintoma dessa dificuldade.

 

Ora, é também verdade que uma ditadura pode, excepcionalmente, conduzir à abertura econômica segundo os princípios da Escola Austríaca ou da de Chicago. Foi o caso do Chile à época de Pinochet – esse mesmo Chile que é hoje o país com os mais altos índices de desenvolvimento da América do Sul e um daqueles em que melhor parece consolidada a democracia. É o caso da China de Deng Xiaoping, procurando a convivência entre os “dois sistemas, um só país”. A própria Cuba fidelista está fazendo tímidas tentativas nessa área, através do turismo, sem abandonar o draconiano poder ditatorial do El Comandante. A questão da possibilidade de convivência indefinida de um Estado Nacional soberano de modelo clássico, ideologicamente legitimado e provido de alfândegas, câmbio controlado e domínio estatal sobre o comércio internacional (o Trade), com o Liberalismo, me parece, contudo, duvidosa. Mais cedo ou mais tarde, uma economia nacional estatizada e fechada entra em conflito com as exigências da competição internacional. O modelo da prosperidade dos libertários acaba sendo contagioso, ele deita por terra qualquer Cortina de Ferro (ou de Fumaça...), Muralha da China ou Muro da Vergonha.

Os nacionalistas econômicos não parecem se dar conta que o que funciona em âmbito do comércio internacional sempre foi o mercado de livre concorrência. Quem se fecha em autarquia deve estar disposto a pagar um preço elevadíssimo. Se Cuba está na miséria, não é por causa do “bloqueio” norte-americano - que na realidade não existe, pois bloqueio comporta estritamente o uso da força naval – nem mesmo do simples embargo que sofre, semelhante àquele que, durante décadas e inclusive pelo Brasil, foi usado para forçar a África do Sul a abandonar sua política de apartheid. Mesmo durante os 70 anos em que o comunismo dominou a União Soviéticas, ela foi obrigada a comerciar e competir com as outras nações no mercado mundial que, por definição, é livre porque não pode ser controlado por ninguém. Foi o insucesso da URSS nessa competição o que finalmente obrigou os líderes do Kremlin a abandonar seu sistema que, além de injusto e despótico, era pavorosamente ineficiente.

Um outro aspecto, e não menos importante, da matéria sobre a qual nos estamos debruçando diz respeito à questão da extensão universal dos princípios jurídicos que sustentam a democracia. Num artigo recente na FOLHA DE S.PAULO (6.6.99), Roberto Campos refere-se às intuições de Henry Kissinger, o “Mago da Realpolitik,” que ele elogia como talvez um dos primeiros formuladores da teoria do novo equilíbrio de poder. Essa teoria está, na verdade, concedendo aos Estados Unidos o papel de uma espécie de Gendarme do mundo global. A idéia de imposição de uma “justiça global” tem sido estimulada, recentemente, pelos horrores das guerras civis na Iugoslávia. As operações americanas contra Gadafi, Noriega, Saddam Hussein, o Sudão, o Afeganistão e a Sérvia, confirmam a auto-proclamada intenção dos EUA de se transformarem em justiceiros globais. A tese que o Juiz e o Policial configuram a estrutura básica da sociedade americana foi proposta pelo sociólogo liberal francês Michel Crozier, na obra Le Mal Américain. O episódio da “Guerra de Kôssovo” possui entre muitas originalidades – inclusive a de haver sido o primeiro conflito bélico da história em que um dos contendores não perdeu um único soldado em combate! – a de revelar o Presidente dos EUA como capitão inconteste de uma turma de policiais, fortemente armados e interessados em impor o respeito universal pelos direitos humanos quando abertamente desafiados por um regime criminoso. Interesse nacional egoísta em ampliar seu território ou conquistar novas fontes de recursos naturais não foi, com certeza, a motivação de nenhum dos membros da OTAN que participaram da operação. Trata-se, na verdade, da aplicação local mais evidente de um princípio em virtude do qual os Aliados ocidentais se empenharam na IIª Guerra Mundial. A violação maciça de tais direitos por uma gangue atrabiliária e agressiva (como foi interpretado o Partido Nazista) ameaça a segurança coletiva dos demais cidadãos pacíficos, mundo afora, requerendo, consequentemente, tais medidas extraordinárias de represália. Se a Primeira Guerra Mundial pode ainda ser descrita como um confronto clássico entre grupos nacionais, concorrendo na disputa de recursos escassos, ou como a expressão normal da “política por outros meios” de Clauzevitz, com extraversão da Libido dominandi, já a Segunda se apresenta melhor não só como um contencioso ideológico, mas como uma vasta operação repressiva, destinada a manter os Direitos do Homem tais como definidos na Magna Carta inglesa, na Declaração de Independência americana e na mesma Declaração da Revolução francesa.

De onde se deduz que o fenômeno que estamos estudando deve incluir, como coluna essencial do edifício da Ordem Internacional em construção, a Globalização da Justiça. O Tribunal de Nuremberg se transforma agora no Tribunal de Haia. Tudo isso merece efusivos aplausos. Anuncia um aspecto admirável dessa superação da idéia de soberania do Estado Nação, implícita no Liberalismo globalizado deste final de século. Acontece, porém, que a maneira de por em prática a tese deve ser cuidadosamente pensada. É mister evitar aberrações jurídicas como a detenção de Pinochet na Inglaterra, que viola uma série de outros princípios bem definidos como o da não-retroatividade das leis, respeito às imunidades diplomáticas e dos ex-chefes de Estado em visita, e área de jurisdição para aplicação da lei. A idéia de julgar e punir os líderes inimigos num Tribunal internacional confirma a presunção e consolida o propósito de criar uma Justiça internacional, em qual caso se transformaria a OTAN numa espécie de Força policial que usaria a aviação de bombardeio como arma predileta, para impor as decisões que os dirigentes do Grupo dos Sete consideram necessárias, por irresistível pressão da opinião pública internacional.

Disso se pode concluir que os Exércitos nacionais estão condenados. As Forças Aliadas operam agora como polícias militares sob o comando do Poder hegemônico e quanto mais cedo viermos a participar desse Conselho mundial, melhor. A Força militar, exercida sob o amparo de decisões da ONU, será sempre parte de uma Força internacional que visa a fazer respeitar a Carta. Permito-me, nesse ponto, opinar no sentido que a tentativa diplomática do Brasil de obter um assento permanente, com direito a veto, no Conselho de Segurança da ONU é ocioso e tolo. O Conselho de Segurança deverá, sem dúvida, reformular suas constituição se a ONU desejar um dia ser mais eficiente em sua ação internacional. Bem melhor contudo faríamos se reivindicássemos, desde logo, e tão pronto quanto possível após a superação de nossa atual “crise” econômica e financeira, um lugar na cúpola do G-7, que passaria então a ser o G-8. Já possuímos um PIB e um peso geopolítico superior a alguns dos membros desse Grupo atualmente hegemônico, além de podermos agir como representando um continente inteiro – o que tornaria lícita nossa pretensão. E assim também deveríamos, no meu entender, em face da perspectiva militar que se desenha, admitir um projeto que comportasse a extensão da Organização do Tratado do Atlântico Norte ao Atlântico Sul, de maneira que viéssemos eventualmente a pertencer a essa nova OTA, assegurando a paz e a segurança neste cone sul do planeta. Para isso seria necessário, porém, que os dirigentes do Itamaraty abandonassem a diplomacia da avestruz, que há décadas define sua timidez e preguiça, para pensar em termos globais, numa visão mais larga e desprovida de preconceitos e ressentimentos.

Chego assim à conclusão que a verdadeira crise histérica que afeta nossa Esquerda, agora fortemente reforçada pelas fantasmagóricas preocupações da Direita, de índole paranóica, com a Amazônia, a ‘biomassa” das florestas tropicais, a privatização das estatais, a entrada na bolsa de capitais estrangeiros ditos “especulativos”, a concessão a bancos estrangeiros do direito de operarem no Brasil, e outros duendes do mesmo estilo, comporta o desejo romântico e reacionário de conservar um controle autárquico da economia, como expressão de uma imagem inconsciente, inspirado na visão paradisíaca do velho Brasil dos sobrados e banguês coloniais. Coincide aliás, e em parte se explica, pelo interesse não muito lícito da Nomenklatura tupiniquim de preservar seus “direitos adquiridos”...

Por que o Brasil, com uma tradição absolutamente oposta e condições propícias à abertura, teria de se manter trancado no Autismo nacionalista? Já somos um povo multirracial, formado por imigrantes. Nossa tradição mais legítima é de abertura, de cordialidade e tolerância. O único handicap que sofremos é o da língua, um idioma até certo ponto confidencial. O cidadão do futuro deve, porém, ser pelo menos bilíngue. Na medida em que optamos por conservar a estrutura do patrimonialismo num regime autárquico, ficaremos forçosamente privados das benesses e do desenvolvimento que a globalização aberta proporciona. Que o processo de transição de um sistema para o outro provoque crises e sofrimentos, ocasionais e localizados, não tenho dúvidas. Mas me pergunto se há alternativas. Mesmo a China, a potência que por sua velha tradição histórica e condições demográficas, geográficas e riqueza em recursos naturais, se poderia permitir a sobrevivência em regime fechado de autarquia econômica, política e cultural, está se preparando aos poucos para aderir ao mundo moderno. O slogan é “uma nação, dois sistemas”. Episódios como o massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial pode ser diabólico, mas representaria apenas uma interrupção transitória num desenvolvimento irreversível para as Portas Abertas, desenvolvimento que, em obediência à mais antiga tradição chinesa, deve ser lento e prudente.

 

A obra de Popper, “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”, e a não menos importante “Les deux Sources de la Morale et de la Religion”, de Bergson, fixaram há mais de meio século as condições filosóficas de uma sociedade livre em âmbito internacional. Despencar-se em acusações falsas, injuriosas, caluniosas e cretinas contra um pseudo “neoliberalismo”, como se fosse um bicho-papão, é apenas sinal de ignorância crassa, fanatismo ideológico, neo-bobismo ou desesperado recurso astucioso de quem deseja apenas conservar privilégios egoístas.

Uma definição admirável do que deverá ser a organização mundial no próximo século foi, em abril último, oferecida pelo Presidente da República tcheca, Vaclav Havel, perante o Parlamento canadense em Ottawa. Desejo concluir meu argumento citando alguns pensamentos desse que, não somente é um dos heróis da luta contra o totalitarismo e a ocupação estrangeira em sua pátria, mas um grande intelectual, escritor e teatrólogo, digno de confiança geral não só por seu passado mas pela posição que ocupa. A visita de Havel ao Canadá coincidiu com o início dos bombardeios da OTAN contra a Iugoslávia, sendo que a República tcheca se tornou recentemente membro dessa aliança militar, juntamente com seus vizinhos, a Polônia e a Hungria. Em sua oração, o Presidente tcheco acentua várias vezes que a guerra contra a Iugoslávia representa um marco na história das relações internacionais por ser a primeira vez que o casus belli era a intenção de fazer respeitar direitos humanos – não tendo os membros da OTAN qualquer interesse econômico, de petróleo ou outro, nem qualquer ambição territorial contra a Sérvia. Havel insistiu na idéia, não obstante a relutância da maioria da opinião pública de seu país em aceitar a necessidade dos bombardeios para impor o respeito a tais direitos. O principal trecho da oração do chefe de estado tcheco pode, contudo, servir de conclusão a nosso próprio arrazoado neste ensaio.

“Tudo indica que a glória do Estado-nação como culminância de todas as comunidades nacionais na história já passou de seu ponto mais elevado”, disse o Presidente. “ Parece que os esforços esclarecidos de gerações de democratas, a experiência terrível de duas guerras mundiais e a evolução da civilização finalmente obrigou a humanidade a reconbhecer que os seres humanos são mais importantes do que o Estado”. O Estado, explicou Vaclav Havel, era considerado o mais alto valor terrestre, na verdade o único em nome do qual era permissível matar e em favor do qual se considerava lícito que as pessoas oferecessem sua própria vida. Num mundo que se globaliza, entretanto, “todos nossos destinos individuais se estão fundindo num único destino – de tal modo que é o mundo, quer estejamos ou não satisfeitos com isso, que deverá carregar a responsabilidade de tudo que ocorre. Em tal mundo, o ídolo da soberania estatal se deverá inevitavelmente dissolver”. Havel não nega a necessidade da existência do Estado, mas prevê que ele se transformará numa entidade muito mais simples, menos poderosa e mais civilizada, uma mera unidade administrativa numa organização planetária mais complexa, com múltiplos degraus, regionais e transnacionais de expressão. Quanto mais depressa os povos sobrepujarem a idéia soberana do “interesse nacional”, afirmou o grande político theco - em favor do conceito de direitos humanos universais melhor será para os interesses universais comuns de todos os povos da terra. Seguindo as intuições do Presidente da República tcheca também creio que o mundo do século XXI – no caso da Humanidade ser bem sucedida no enfrentamento dos perigos que ela fabricou (concocted) para si própria – será um mundo de cooperação mais íntima e mais equitativa entre entidades, principalmente supranacionais, envolvendo continentes inteiros. Havel concluiu seu discurso com a afirmação de que “enquanto é o Estado uma criação humana, os seres humanos são criação de Deus”.

O fato é que, ao final, não podemos conceber como se desenhará o futuro político da humanidade no próximo século. Ninguém sabe, aliás. O futuro depende das decisões individuais dos bilhões de habitantes deste planeta e essas decisões são imprevisíveis. Vislumbramos apenas que a racionalidade, o bom senso e a tradição do Ocidente, ao qual pertencemos, indica a necessidade de uma cooperação e intercâmbio pacífico cada vez mais intenso, diversificado e de âmbito cada vez mais vasto. Não obstante, a criação de blocos econômicos e culturais, integrados numa Ordem Internacional global, é uma possibilidade como degrau na hierarquia de poder mundial previsto. Os problemas de ecologia, a camada de ozônio, a chuva ácida, a destruição das florestas tropicais, a alimentação de uma população mundial em expansão explosiva e reclamos gerais de eliminação da pobreza, além das exigências de combate a fenômenos como o crime organizado, as drogas e o terrorismo, bem como o aparecimento, local e ocasional, de tiranos de vezo agressivo – impõem, certamente, um crescente entrosamento dos dirigentes das potências mais poderosas, o que poderá conduzir, por força mesmo da lógica do poder, à procura de uma organização política supra-nacional.

Não acredito que essa organização futura conduza ao Imperialismo. A estrutura do Estado-nação provavelmente perdurará no próximo século mas o que está perempto é o conceito de soberania. O Imperialismo, como modelo que encontrou sua formulação historicista nas antecipação tresloucadas de filosofia da história de Spengler e, até certo ponto, na de Toynbee; a mesma que Lênine também antecipou, para seus próprios fins oportunistas na sua definição, baseada em Marx e na realidade européia de princípios do século XIX – não é mais viável num mundo regido pela Lei (the rule of law) da organização internacional. E nesse ponto podemos salientar que a tradição do direito consuetudinário anglo-saxão é muito mais flexível e adaptável ao âmbito da globalização do que o modelo do direito romano.

. Não acredito, tampouco, na hipótese de Samuel Huntington, o grande cientista político de Harvard que prevê a consolidação de vários blocos, circundando pólos econômicos-culturais como o Ocidental, o Chinês, o Russo, o do Islam. Esses blocos são, a meu ver, vulneráveis ao fenômeno global irreversível da própria globalização das comunciações. No artigo acima citado, Roberto Campos também assinala que os problemas da transição da situação de dominação dos Estados Unidos para a que ele qualifica de “hegemonia contestável... navegando entre os escolhos do idealismo de estilo wilsoniano, com seu tom excessivamente moralista, e do isolacionismo que privaria o mundo ocidental de uma liderança substancialmente benigna – são problemas positivos. Sua intuição me parece correta.

Em conclusão: o temor do crescimento da potência hegemônica até o ponto de implantação imperialista– no caso atual, os Estados Unidos da América, como uma espécie de nova Roma em projeção da “visão binocular da história” da tese toynbeana – me parece injustificado. Isso, pela razões mesmas da novidade constituída pela emergência do individualismo liberal moderno, sob um Estado de direito. Acredito, otimisticamente, que a fórmula do Imperialismo clássico foi superada pelas condições atuais da internacionalização da democracia liberal que pressupõe a descentralização e atomização do Poder concentrado no Estado. Estamos realmente diante de uma novus ordo saeclorum tal como foi formulada pelos Pais Fundadores americanos e comentada por Hannah Arendt em sua obra On Revolution. Estamos, em suma, caminhando para uma organização hierárquica, de tipo Confederação global, através dos “estados”, regiões ou províncias federadas, dos Estados-nação privados de soberania e das grandes Comunidades econômico-políticas de tipo CEE, NAFTA ou Mercosul.

Nessa hipótese, a Revolução liberal globalizante seria mesmo o termo final da Revolução Mundial. Iniciada como paradigma espiritual pelo Cristianismo (com sugestões proféticas anteriores em Isaías), ela encontra sua primeira expressão concreta na Reforma protestante e nas grandes utopias do Humanismo e Iluminismo da Idade das Luzes.

 

© José Luis Gómez-Martínez
Nota: Esta versión electrónica se provee únicamente con fines educativos. Cualquier reproducción destinada a otros fines, deberá obtener los permisos que en cada caso correspondan.

voltar   |     topo