DISCURSO SOBRE A ORIGEM DA DESIGUALDADE

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Jean-Jacques Rousseau

DISCURSO SOBRE ESTA QUESTÃO PROPOSTA PELA ACADEMIA DE DIJON: QUAL É A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS,  E SE É AUTORIZADA PELA LEI NATURAL

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO

BIOGRAFIA DO AUTOR

DEDICATÓRIA À Repúlica de Genebra

PREFÁCIO

DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

PRIMEIRA PARTE

SEGUNDA PARTE

ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS

NOTAS


APRESENTAÇÃO

Nélson Jahr Garcia, (in memoriam)

     Rousseau, com os seus companheiros enciclopedistas e da maçonaria, nos ensinou a respeitar o ser humano, amar a natureza e a sentir paixão pela liberdade. Foi devido a essa influência, pelo menos em parte, que lutamos contra o jugo português, proclamamos a República, enfrentamos a ditadura do Estado Novo e o regime militar. Aprendemos também a defender as florestas, os animais, a vida enfim.
     Em "Sobre a origem da desigualdade", Rousseau mostra o caminho histórico percorrido pelo ser humano, passando do estado de natureza para o estado civilizado. Discute as contradições e antagonismos que permearam esse processo e defende a volta ao estado natural, sob novas formas.
     Suas concepções sobre o Direito Natural, no Prefácio, são brilhantes.
     A conclusão final nos leva a pensar e, espero, a agir um dia:
     "Essa distinção determina suficientemente o que se deve pensar, nesse sentido, da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei da natureza, de qualquer maneira que a definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o necessário".
     Liberdade também se aprende, com Rousseau o caminho é mais breve.
 

BIOGRAFIA DO AUTOR
Jean-Jacques Rousseau nasceu em Genebra no ano de 1712 e morreu no de 1778.
     Dotado de excepcionais qualidades de inteligência e imaginação, foi ele um dos maiores escritores e filósofos do seu tempo. Em suas obras, defende a idéia da volta à natureza, a excelência natural do homem, a necessidade do contrato social para garantir os direitos da coletividade. Seu estilo, apaixonado e eloqüente, tornou-se um dos mais poderosos instrumentos de agitação e propaganda das idéias que haviam de constituir, mais tarde, o imenso cabedal teórico da Grande Revolução de 1789-93. Ao lado de Diderot, D'Alembert e tantos outros nomes insignes que elevaram, naquela época, o pensamento científico e literário da França, foi Rousseau um dos mais preciosos colaboradores do movimento enciclopedista. Das suas numerosas obras, podem citar-se, dentre as mais notáveis: Júlia ou A Nova Heloísa (1761), romance epistolar, cheio de grande sentimentalidade e amor à natureza; O Contrato Social (1762), onde a vida social é considerada sobre a base de um contrato em que cada contratante condiciona sua liberdade ao bem da comunidade, procurando proceder sempre de acordo com as aspirações da maioria; Emílio ou Da Educação (1762), romance filosófico, no qual, partindo do princípio de que "o homem é naturalmente bom" e má a educação dada pela sociedade, preconiza "uma educação negativa como a melhor, ou antes, como a única boa"; As Confissões, obra publicada após a morte do autor (1781-1788), e que é uma autobiografia sob todos os pontos-de-vista notável.
     Quanto ao Discurso, aqui editado, composto em 1753 para responder à questão proposta pela Academia de Dijon, isto é: A Origem da Desigualdade entre os Homens, era a obra de Rousseau, como ele próprio informa nas suas Confissões, que o seu genial contemporâneo Diderot mais apreciava. Eis aí o melhor elogio que se poderia fazer da presente edição.

 

DISCURSO SOBRE ESTA QUESTÃO PROPOSTA PELA ACADEMIA DE DIJON: QUAL É A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS, E SE É AUTORIZADA PELA LEI NATURAL


DEDICATÓRIA
À República de Genebra

MAGNIFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES,(1)
     Convencido de que só ao cidadão virtuoso cabe dar à sua pátria as honras que ela possa reconhecer, há trinta anos que trabalho para ter o mérito de vos oferecer uma homenagem pública; e essa feliz ocasião suprindo em parte o que meus esforços não puderam fazer, acreditei que me seria permitido consultar aqui o zelo que me anima, mais do que o direito que deveria autorizar-me. Tendo tido a felicidade de nascer entre vós, como poderia eu meditar sobre a igualdade que a natureza pôs entre os homens e sobre a desigualdade que eles instituíram, sem pensar na profunda sabedoria com a qual uma e outra, felizmente combinadas nesse Estado, concorrem, da maneira mais próxima da lei natural e mais favorável à sociedade, para a manutenção da ordem pública e para a felicidade dos particulares? Procurando as melhores máximas que o bom senso possa ditar sobre a constituição de um governo, fiquei tão impressionado ao vê-las todas em execução no vosso, que, mesmo sem ter nascido dentro dos vossos muros, achei que não poderia dispensar-me de oferecer este quadro da sociedade humana àquele de todos os povos que me parece possuir as maiores vantagens delas e ter melhor prevenido os seus abusos.
     Se eu tivesse de escolher o lugar do meu nascimento, teria escolhido uma sociedade de grandeza limitada pela extensão das faculdades humanas, isto é, pela possibilidade de ser bem governada, e onde, bastando-se cada qual ao seu mister, ninguém fosse constrangido a atribuir a outros as funções de que estivesse encarregado; um Estado em que, todos os particulares se conhecendo entre si, nem as manobras obscuras do vício, nem a modéstia da virtude pudessem subtrair-se aos olhares e ao julgamento do público, e em que esse doce hábito de se ver e de se conhecer fizesse do amor da pátria o amor dos cidadãos, em vez do da terra.
     Eu quisera nascer num país em que o soberano e o povo só pudessem ter um único e mesmo interesse, a fim de que todos os movimentos da máquina tendessem sempre unicamente à felicidade comum; como isso só poderia ser feito se o povo e o soberano fossem a mesma pessoa, resulta que eu quisera nascer sob um governo democrático, sabiamente moderado.
     Eu quisera viver e morrer livre, isto é, de tal modo submetido às leis que nem eu nem ninguém pudesse sacudir o honroso jugo, esse jugo salutar e doce, que as cabeças mais altivas carregam tanto mais docilmente quanto são feitas para não carregar nenhum outro.
     Eu quisera, pois, que ninguém, no Estado, pudesse dizer-se acima da lei, e que ninguém, fora dele, pudesse impor alguma que o Estado fosse obrigado a reconhecer; de fato, qualquer que possa ser a constituição de um governo, se neste se encontra um só homem que não esteja submetido à lei, todos os outros ficam necessariamente à discrição deste último: e, havendo um chefe nacional e outro estrangeiro, qualquer que seja a partilha da autoridade que possam fazer, é impossível que ambos sejam bem obedecidos e o Estado bem governado.
     Eu não quisera habitar uma república de nova instituição, por muito boas que fossem as leis que pudesse ter, de medo de que, constituído o governo de outra maneira, talvez, que não a exigida pelo momento, não convindo aos novos cidadãos, ou os cidadãos ao novo governo, ficasse o Estado sujeito a ser abalado e destruído quase desde o seu nascimento; porque a liberdade é como esses alimentos sólidos e suculentos, ou esses vinhos generosos, próprios para nutrir e fortificar os temperamentos robustos a eles habituados, mas que inutilizam, arruinam, embriagam os fracos e delicados, que a ele não estão afeitos. Os povos, uma vez acostumados a senhores, não podem mais passar sem eles. Se tentam sacudir o jugo, afastam-se tanto mais da liberdade quanto, tomando por ela uma licença desenfreada que lhe é oposta, suas revoluções os entregam quase sempre a sedutores que só fazem agravar as suas cadeias. O próprio povo romano, modelo de todos os povos livres, não foi capaz de se governar ao sair da opressão dos Tarquínios. Aviltado pela escravidão e os trabalhos ignominiosos que lhe foram impostos, não passava, primeiro, de uma estúpida populaça que foi preciso conduzir e governar com a maior sabedoria, a fim de que, acostumando-se pouco a pouco a respirar o ar salutar da liberdade, as almas enervadas, ou antes, embrutecidas pela tirania, adquirissem gradativamente a severidade de costumes e a altivez de coragem que as tornaram, finalmente, o mais respeitável dos povos. Eu teria, pois, procurado, como pátria, uma feliz e tranqüila república cuja antigüidade se perdesse de certo modo na noite dos tempos, que não tivesse experimentado senão golpes próprios para manifestar e consolidar nos seus habitantes a coragem e o amor da pátria, e onde os cidadãos, acostumados de longa data a uma sábia independência, fossem não somente livres, mas dignos de o ser.
     Eu quisera escolher para mim uma pátria desviada, por uma feliz impossibilidade, do feroz amor das conquistas e preservada, por uma posição ainda mais feliz, do temor de tornar-se a conquista de outro Estado; uma cidade livre, colocada entre muitos povos, nenhum dos quais tivesse interesse em invadi-la e cada um dos quais tivesse interesse em impedir que outros a invadissem; uma república, em uma palavra, que não fosse tentada pela ambição dos seus vizinhos e pudesse razoavelmente contar com o socorro destes quando necessário. Conclui-se daí que, em posição tão feliz, ela não teria que temer senão a si mesma, e que, se os seus cidadãos fossem exercitados nas armas, seria antes para entreter entre eles o ardor guerreiro e a altivez de coragem, que ficam tão bem à liberdade e que nutrem o gosto dela, do que pela necessidade de assegurar a própria defesa.
     Eu teria procurado um país no qual o direito de legislação fosse comum a todos os cidadãos; porque, quem melhor do que eles pode saber sob que condições lhes convém viver juntos em uma mesma sociedade? Mas, eu não aprovaria plebiscitos semelhantes aos de Roma, em que os chefes de Estado e os mais interessados na sua conservação eram excluídos das deliberações, das quais muitas vezes dependia sua salvação, e onde, por uma absurda inconseqüência, os magistrados eram privados dos direitos de que gozavam simples cidadãos.
     Ao contrário, eu quisera que, para suspender os projetos interesseiros e mal concebidos e as inovações perigosas que acabaram perdendo os atenienses, cada qual não tivesse o poder de propor novas leis segundo a sua fantasia; que esse direito coubesse apenas aos magistrados; que estes usassem dele com tanta circunspecção, o povo, por sua vez, fosse tão reservado em dar o seu consentimento a essas leis, e a sua promulgação só pudesse ser feita com tanta solenidade que, antes da constituição ser abalada, todos tivessem tempo para se convencer de que é sobretudo a grande antigüidade das leis que as torna santas e veneráveis, pois que o povo logo despreza as que vê mudar todos os dias e, pelo hábito de negligenciar os antigos usos, sob o pretexto de fazer melhores, são introduzidos muitas vezes grandes males para corrigir menores.
     Eu teria fugido principalmente de uma república na qual um povo, como necessariamente mal governado, acreditando poder passar sem magistrados ou lhes deixar apenas uma autoridade precária, imprudentemente se tivesse reservado a administração dos negócios civis e a execução de suas próprias leis: assim, deve ter sido a grosseira constituição dos primeiros governos ao saírem imediatamente do estado de natureza; e tal foi ainda um dos vícios que perderam a república de Atenas.
     Mas, eu teria escolhido aquela na qual os particulares, contentando-se em dar sanção às leis e em decidir pessoalmente, com o testemunho dos chefes, os mais importantes negócios públicos, estabelecessem tribunais respeitados, distinguissem cuidadosamente os seus diversos departamentos, elegessem todos os anos os mais capazes e os mais íntegros dentre os seus concidadãos para administrar a justiça e governar o Estado, e na qual, sendo a virtude dos magistrados testemunho da sabedoria do povo, uns e outros se honrassem mutuamente. De sorte que, se jamais funestos mal entendidos viessem perturbar a concórdia pública, até tempos de cegueira e de erros fossem marcados por testemunhos de moderação, de estima recíproca e de comum respeito às leis, presságios e garantias de reconciliação sincera e perpétua
     Tais são, MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES, as vantagens que eu teria procurado na pátria que tivesse escolhido. E, se a Providência a isso tivesse acrescentado ainda uma situação encantadora, um clima temperado, um país fértil e o aspecto mais delicioso que há sob o céu, eu não teria desejado, para cumular a minha felicidade, senão gozar de todos esses bens no seio dessa pátria feliz, vivendo pacificamente em uma doce sociedade com os meus concidadãos, exercendo para com eles, a seu exemplo, a humanidade, a amizade e todas as virtudes, e deixando, depois da minha morte, a memória de um homem de bem e de um honesto e virtuoso patriota.
     Se, menos feliz ou sábio tarde demais, fosse reduzido a acabar em outros climas uma doentia e abatida carreira, lastimando inutilmente o repouso e a paz das quais uma mocidade imprudente me tivesse privado, eu teria pelo menos nutrido em minha alma esses mesmos sentimentos de que não teria podido fazer uso em meu país; e, penetrado de uma afeição terna e desinteressada por meus concidadãos longínquos, eu lhes teria dirigido do fundo do coração, pouco mais ou menos o seguinte discurso:
     Meus queridos concidadãos, ou antes, meus irmãos, pois que os laços do sangue, assim como as leis, nos unem a quase todos, é-me agradável não pensar em vós sem pensar ao mesmo tempo em todos os bens de que gozais e cujo preço talvez nenhum de vós avalie tão bem como eu que os perdi. Quanto mais reflito sobre a vossa situação política e civil, menos posso imaginar que a natureza das coisas humanas possa comportar melhor. Em todos os outros governos, quando se trata de assegurar o maior bem do Estado, tudo se limita sempre a projetos em idéias e, quando muito, a simples possibilidades: quanto a vós, vossa felicidade está feita, é só gozá-la; e não tendes mais necessidade, para vos tornardes perfeitamente felizes, senão de saber vos contentar em o ser. Vossa soberania, adquirida ou reconquistada a ponta de espada, e conservada durante dois séculos à força de valor e de sabedoria, está enfim plena e universalmente reconhecida. Tratados honrosos fixam os vossos limites, asseguram os vossos direitos e solidificam o vosso repouso. Vossa constituição é excelente, ditada pela mais sublime razão e garantida por potências amigas e respeitáveis; vosso Estado é tranqüilo; não tendes guerras nem conquistadores que temer; não tendes outros senhores além das sábias leis que fizestes, administradas por íntegros magistrados da vossa escolha; não sois nem bastante ricos para vos enervardes pelo ócio e perderdes em vãs delícias o gesto da verdadeira felicidade e das sólidas virtudes, nem bastante pobres para terdes necessidade ainda de socorro estrangeiro que não vo-lo proporcione a vossa indústria; e essa liberdade preciosa, só mantida nas grandes nações à custa de impostos exorbitantes, quase nada vos custa conservar.
     Possa durar sempre, para a felicidade dos seus cidadãos e o exemplo dos povos, uma república tão sabiamente e com tanta felicidade constituída! Eis o único voto que vos resta fazer, e o único cuidado que vos resta tomar. Cabe-vos, doravante, não fazer a vossa felicidade, porque vossos ancestrais vos evitaram esse trabalho, mas torná-la durável pela sabedoria de bem aproveitá-la. É da vossa união perpétua, da vossa obediência às leis, do vosso respeito aos seus ministros que depende a vossa conservação. Se resta, entre vós, o menor germe de azedume ou de desconfiança, apressai-vos em destruí-lo, como fermento funesto de onde resultariam, cedo ou tarde, as vossas desgraças e a ruína do Estado. Conjuro-vos a penetrar todos no fundo do vosso coração e a consultar a voz secreta da vossa consciência. Alguém dentre vós conhece, no universo, corpo mais íntegro, mais esclarecido, mais respeitável do que o da vossa magistratura? Todos os seus membros não vos dão o exemplo da moderação, da simplicidade de costumes, do respeito às leis e da mais sincera reconciliação? Depositai, pois, sem reservas, em tão sábios chefes essa confiança salutar que a razão deve à virtude; pensai que eles são da vossa escolha, que a justificam, e que as honras devidas aos que constituístes em dignidade recaem necessariamente sobre vós mesmos. Nenhum de vós é tão pouco esclarecido para ignorar que onde cessam o vigor das leis e a autoridade dos seus defensores, não pode haver segurança nem liberdade para ninguém. De que se trata, pois, entre vós, se não de fazer de boa vontade e com justa confiança o que seríeis sempre obrigados a fazer por verdadeiro interesse, por dever e pela razão? Que uma culpável e funesta indiferença pela manutenção da constituição não vos faça jamais negligenciar, quando necessários, os sábios conselhos dos mais esclarecidos e dos mais zelosos dentre vós; mas, que a equidade, a moderação, a mais respeitosa firmeza continuem a regular todos os vossos passos, e a mostrar em vós, a todo o universo, o exemplo de um povo altivo e modesto, tão cioso da sua glória como da sua liberdade. Tende cuidado, principalmente, e este será meu último conselho, em não ouvir jamais interpretações sinistras e discursos envenenados, cujos motivos secretos são, muitas vezes, mais perigosos do que as ações que são o seu objeto. Toda uma casa desperta e se conserva em alarma aos primeiros gritos de um bom e fiel guarda que só late quando se aproximam os ladrões; mas, ninguém gosta da importunação desses animais barulhentos que perturbam sem cessar o repouso público e cujas advertências contínuas e fora de propósito não se fazem ouvir no momento em que são necessárias E vós, MAGNÍFICOS E MUITO HONRADOS SENHORES, vós, dignos e respeitáveis magistrados de um povo livre, permiti-me que vos ofereça, em particular, as minhas homenagens e os meus deveres. Se há no mundo uma ordem própria para ilustrar os que a ocupam, é sem dúvida aquela que dão os talentos e a virtude, aquela da qual vos tomastes dignos e à qual os vossos concidadãos vos elevaram. O seu próprio mérito acrescenta ainda ao vosso um novo brilho; e, escolhidos por homens capazes de governar para governá-los também, eu vos acho tão acima dos outros magistrados quanto um povo livre, e principalmente o que tendes a honra de conduzir, está, por suas luzes e por sua razão, acima da populaça dos outros Estados.
     
Que me seja permitido citar um exemplo do qual deveriam ficar melhores traços e que estará sempre presente no meu coração. É com a mais doce emoção que me vem sempre a lembrança do virtuoso cidadão de quem recebi a vida e que muitas vezes me entreteve a infância no respeito que vos era devido. Vejo-o ainda vivendo do trabalho de suas mãos e nutrindo sua alma com as verdades mais sublimes. Vejo Tácito, Plutarco, e Grotius, misturados diante dele com os instrumentos do seu ofício. Vejo ao seu lado um filho querido, recebendo com muito poucos frutos as ternas instruções do melhor dos pais. Mas, se os desregramentos de uma louca juventude me fizeram esquecer durante algum tempo tão sábias lições, tenho a felicidade de experimentar enfim que, se alguma tendência se tem para o vício, é difícil que uma educação na qual entra o coração seja perdida para sempre.
     Tais são, MAGNÍFICOS E MUITO HONRADOS SENHORES, os cidadãos e mesmo os simples habitantes nascidos no Estado que governais; tais são esses homens instruídos e sensatos, dos quais, sob o nome de operários e de povo, se fazem nas outras nações idéias tão baixas e tão falsas. Meu pai, confesso-o com alegria, não era distinguido entres os seus concidadãos: não era senão o que são todos; e, tal como era, não há província onde a sua sociedade não fosse procurada, cultivada, e mesmo com resultados, pela gente de bem. Não me compete, e, graças aos céus, não é necessário falar-vos das deferências que podem esperar de vós homens dessa têmpera, vossos iguais por educação assim como por direitos de natureza e de nascimento; vossos inferiores por vontade, pela preferência que devem ao vosso mérito, que lhe outorgaram, e pela qual lhes deveis, por vossa vez, uma espécie de reconhecimento. Soube com viva satisfação quanta doçura e condescendência combinais com a gravidade conveniente aos ministros das leis; quanto lhes retribuís em estima e atenção o que vos devem de obediência e respeito; conduta cheia de justiça e de sabedoria, própria para afastar cada vez mais a memória dos acontecimentos infelizes que é preciso esquecer para não mais os rever; conduta tanto mais judiciosa, quanto esse povo eqüitativo e generoso transforma em prazer o seu dever, quanto gosta naturalmente de vos honrar e quanto os mais ardentes em sustentar os seus direitos são os mais inclinados a respeitar os vossos.
     Não é de admirar que os chefes de uma sociedade civil amem a glória e a felicidade; mas, bem admirável é, para o repouso dos homens, que os que se consideram magistrados, ou antes, senhores de uma pátria mais santa e mais sublime testemunhem algum amor à pátria terrestre que os nutre. Quanto me é doce poder fazer em nosso favor uma exceção tão rara, e colocar na ordem dos nossos melhores cidadãos esses zelosos depositários dos dogmas sagrados autorizados pelas leis, esses veneráveis pastores das almas, cuja viva e doce eloquência leva tanto mais aos corações as máximas do Evangelho quanto começam sempre por praticá-las eles próprios! Toda a gente sabe com que sucesso a grande arte do púlpito é cultivada em Genebra. Mas, muito acostumados a ouvir falar de uma maneira e a fazer de outra, poucos sabem até que ponto o espírito do cristianismo, a santidade dos costumes, a severidade para consigo mesmo e a doçura para com os outros reinam no corpo dos nossos ministros. É possível que somente à cidade de Genebra seja dado patentear o exemplo edificante de tão perfeita união entre uma sociedade de teólogos e de homens de letras; é em grande, parte sobre a sua sabedoria e a sua moderação reconhecidas, sobre o seu zelo pela prosperidade do Estado, que eu fundo a esperança da sua eterna tranqüilidade; e noto, com um prazer misturado de espanto e respeito, o seu horror às máximas execráveis desses homens sagrados e bárbaros cuja história fornece mais de um exemplo e que, para sustentar os pretensos direitos de Deus, isto é, os seus interesses, eram tanto mais ávidos de sangue humano quanto, se gabavam de que o seu seria sempre respeitado.
     Poderia eu esquecer essa preciosa metade da república que faz a felicidade da outra, e cuja doçura e sabedoria aí mantêm a paz e os bons costumes? Amáveis e virtuosas cidadãs, a sorte do vosso sexo será sempre governar o nosso. Feliz quando o vosso casto pode; exercido apenas na união conjugal, só se fizer sentir para a glória do Estado e a felicidade pública! Assim é que as mulheres mandavam em Esparta, e assim é que mereceis mandar em Genebra.
     Que homem bárbaro poderia resistir à voz da honra e da razão na boca de uma terna esposa? e quem não desprezaria um luxo vão, ao ver o vosso traje simples e modesto, que, pelo brilho que de vós recebe, parece ser o mais favorável à beleza? Cabe-vos manter sempre, por vosso amável e inocente império, e por vosso espírito insinuante, o amor às leis no Estado e a concórdia entre os cidadãos; reunir, por meio de felizes casamentos, as famílias divididas, e principalmente corrigir, pela persuasiva doçura das vossas lições e pelas graças modestas da vossa convivência as extravagâncias que os nossos jovens vão buscar em outros países, de onde, em vez de tantas coisas úteis que poderiam aproveitar, só trazem, num tom pueril e com ares ridículos aprendidos entre as mulheres perdidas, a admiração a não ser que pretensas grandezas, frívolas compensações da servidão, que jamais valerão a augusta liberdade. Sede, pois, sempre o que sois, castas guardiãs dos costumes e doces liames da paz; e continuai a fazer valer, em todas as ocasiões, os direitos do coração e da natureza em proveito do dever e da virtude.
     Orgulho-me de não ser desmentido pelos acontecimentos, fundando sobre tais fiadores a esperança da felicidade comum dos cidadãos e da glória da república. Confesso que, com todas essas vantagens, ela não brilhará com esse brilho que deslumbra a maior parte dos olhos, cujo pueril e funesto gosto é o mais mortal inimigo da felicidade e da liberdade. Que uma mocidade dissoluta vá procurar alhures prazeres fáceis e longos arrependimentos; que a pretensa gente de gosto admire em outros lugares a grandeza dos palácios, a beleza das equipagens, os soberbos mobiliários, a pompa dos espetáculos, e todos os refinamentos da moleza e do luxo; em Genebra, só se encontrarão homens; mas, contudo, um tal espetáculo tem bem o seu preço, e aqueles que o procurarem valerão bem os admiradores do resto.
     Dignai-vos, todos, MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES, receber, com a mesma bondade, os respeitosos testemunhos do interesse que tomo pela vossa prosperidade comum. Se eu fosse bastante infeliz para ser acusado de algum transporte indiscreto nesta viva efusão do meu coração suplico-vos que o perdoeis à terna afeição de um verdadeiro patriota, e ao zelo ardente e legítimo de um homem que não almeja maior felicidade para si mesmo do que a de vos ver todos felizes. E sou, com o mais profundo respeito,
     
MAGNÍFICOS, MUITO HONRADOS E SOBERANOS SENHORES,
     Vosso humilíssimo e obedientíssimo servidor e concidadão,
     J.-J. Rousseau
 

PREFÁCIO

     O mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos me parece ser o do homem (2); e ouso dizer que só a inscrição do templo de Delfos continha um preceito mais importante e mais difícil do que todos os grossos livros dos moralistas. Considero, igualmente, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor, e, desgraçadamente para nós, como uma das mais espinhosas que os filósofos possam resolver: com efeito, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por conhecer os próprios homens? e como chegará o homem a se ver tal como o formou a natureza, através de todas essas transformações que a sucessão dos tempos e das coisas teve de produzir na sua constituição original, e a separar o que está no seu próprio natural do que as circunstâncias e o progresso acrescentaram ou modificaram em seu estado primitivo? Semelhante à estátua de Glauco, que o tempo, o mar e as tempestades tinham desfigurado tanto que se assemelhava menos a um deus do que a um animal feroz, a alma humana, alterada no seio da sociedade por mil causas sempre renascentes, pela aquisição de uma multidão de reconhecimentos e de erros, pelas mudanças verificadas na constituição dos corpos, e pelo choque contínuo das paixões, mudou por assim dizer de aparência, a ponto de ser quase irreconhecível, e nela só se encontra, em vez de um ser que age sempre por meio de princípios certos e invariáveis, em vez dessa celeste e majestosa simplicidade com a qual o seu autor a marcara, o disforme contraste da paixão que julga raciocinar e do entendimento em delírio.
     O que há de mais cruel ainda é que, como todos os progressos da espécie humana a afastam sem cessar de seu estado primitivo, quanto mais acumulamos novos conhecimentos, tanto mais nos privamos dos meios de adquirir o mais importante de todos, o qual consiste, num certo sentido, em que à força de estudar o homem é que nos tornamos incapazes de o conhecer.
     É fácil ver que é nessas mudanças sucessivas da constituição humana que é preciso procurar a primeira origem das diferenças que distinguem os homens, os quais, de comum acordo, são naturalmente tão iguais entre si quanto o eram os animais de cada espécie antes de diversas causas físicas terem introduzido em alguns as variedades que notamos. Efetivamente, não é concebível que essas primeiras mudanças, por quaisquer meios que se tenham realizado, tenham alterado, ao mesmo tempo, e da mesma maneira, todos os indivíduos da espécie; mas, tendo uns se aperfeiçoado ou deteriorado e adquirido diversas qualidades, boas ou más, que não eram inerentes à sua natureza, permaneceram os outros mais tempo em seu estado original; e tal foi, entre os homens, a primeira fonte da desigualdade, mais fácil de demonstrar assim, em geral, do que assinalar com precisão as suas verdadeiras causas.
     Que os meus leitores não imaginem, pois, que ouso me vangloriar de ter visto o que me parece tão difícil de ver. Comecei alguns raciocínios, arrisquei algumas conjecturas, menos na esperança de resolver a questão do que na intenção de a esclarecer e de a reduzir ao seu verdadeiro estado. Outros poderão facilmente ir mais longe no mesmo caminho, sem que seja fácil a ninguém chegar ao termo; porque não é empresa suave discernir o que há de originário e artificial na natureza atual do homem, e conhecer bem um estado que não existe mais, que talvez não tenha existido, que provavelmente não existirá nunca, e do qual é, contudo, necessário ter noções justas, para bem julgar do nosso estado presente. Seria preciso mesmo que tivesse mais filosofia do que se pensa quem pretendesse determinar as precauções que tomar para fazer sobre este assunto sólidas observações; e uma boa solução do problema seguinte não me pareceria indigno dos Aristóteles e dos Plínio do nosso século: Que experiências seriam necessárias para chegar a conhecer o homem natural? e quais são os meios de fazer essas experiências no seio da sociedade? Longe de empreender resolver esse problema, creio ter meditado bem o assunto para ousar responder de antemão que os maiores filósofos não serão muito bons para dirigir essas experiências, nem os mais poderosos soberanos para as fazer; não é razoável esperar esse concurso, principalmente com a perseverança, ou antes, a sucessão de luzes e de boa-vontade necessária de ambas as partes para conseguir o sucesso.
     Essas pesquisas tão difíceis de fazer, e nas quais pouco se tem pensado até aqui, são contudo os únicos meios que nos restam para afastar uma multidão de dificuldades que nos encobrem o conhecimento dos fundamentos reais da sociedade humana. Ê essa ignorância da natureza do homem que lança tanta incerteza e obscuridade sobre a verdadeira definição do direito natural: porque a idéia do direito, diz Burlamaqui, e mais ainda a do direito natural, são manifestamente idéias relativas à natureza do homem. É, pois, dessa mesma natureza do homem, continua ele, da sua constituição e do seu estado que é preciso deduzir os princípios dessa ciência.
     Não é sem surpresa e sem escândalo que se nota o pouco acordo reinante sobre essa importante matéria entre os diversos autores que a têm estudado. Entre os mais graves escritores, mal se encontram dois com a mesma opinião sobre esse ponto. Sem falar dos antigos filósofos, que parece terem tomado a tarefa de se contradizer entre si sobre os princípios mais fundamentais, os jurisconsultos romanos submetem indiferentemente o homem e todos os outros animais à mesma lei natural, porque consideram de preferência, sob esse nome, a lei que a natureza se impõe a si mesma, em lugar da que prescreve, ou antes, por causa da acepção particular segundo a qual esses jurisconsultos entendem a palavra lei, que parece só terem tomado, nessa ocasião, como expressão das relações gerais estabelecidas pela natureza entre todos os seres animados, para a sua comum conservação. Os modernos, só reconhecendo sob o nome de lei uma regra prescrita a um ser moral, isto é, inteligente, livre e considerado nas suas relações com outros seres, limitam, consequentemente, ao único animal dotado de razão, isto é, ao homem, a competência da lei natural; mas, definindo essa lei, cada qual à sua moda, estabelecem-na todos sobre princípios tão metafísicos que há, mesmo entre nós, muito pouca gente capaz de compreender esses princípios, longe de os poder encontrar por si mesma. De sorte que todas as definições desses sábios homens, aliás em perpétua contradição entre si, concordam somente em que é impossível entender a lei da natureza e, por conseguinte, obedecer-lhe, sem ser um grande raciocinador e profundo metafísico: isso significa, precisamente, que os homens empregaram, para o estabelecimento da sociedade, luzes que só se desenvolvem, com muita dificuldade, e para muito pouca gente, no seio da própria sociedade. Conhecendo tão pouco a natureza, e harmonizando-se tão mal sobre o sentido da palavra lei, seria bem difícil encontrar uma boa definição da lei natural. Também todas as que se encontram nos livros, além do defeito de não serem uniformes, têm ainda o de serem tiradas de muitos conhecimentos que os homens naturalmente não têm, e das vantagens das quais só podem fazer uma idéia depois de terem saído do estado natural. Começa-se por investigar as regras pelas quais, para utilidade comum, seria bom que os homens concordassem entre si; e, depois, dá-se o nome de lei natural à coleção dessas regras, sem outra prova além do bem que se julga resultar de sua prática universal. Eis, seguramente, uma maneira muito cômoda de compor definições e de explicar a natureza das coisas por meio de convenções quase arbitrárias.
     Mas, enquanto não conhecermos o homem natural, é inútil querermos determinar a lei que recebeu ou a que convém melhor à sua constituição. Tudo o que podemos ver muito claramente em relação a essa lei é que, para que seja lei, é preciso não só que a vontade daquele que ela obriga possa submeter-se a ela com conhecimento, mas ainda, para que seja natural, que ela fale imediatamente pela voz da natureza.
     Deixando, pois, todos os livros científicos, que só nos ensinam a ver os homens tais como foram feitos, e meditando sobre as primeiras e mais simples operações da alma humana, creio perceber dois princípios anteriores à razão, um dos quais interessa ardentemente ao nosso bem-estar e à conservação de nós mesmos, e o outro nos inspira uma repugnância natural de ver morrer ou sofrer todo ser sensível, e principalmente os nossos semelhantes. Do concurso e da combinação que o nosso espírito é capaz de fazer desses dois princípios, sem que seja necessário acrescentar o da sociabilidade, é que me parecem decorrer todas as regras do direito natural; regras que a razão é, em seguida, forçada a restabelecer sobre outros fundamentos, quando, por seus desenvolvimentos sucessivos, chega ao extremo de sufocar a natureza.
     
Dessa maneira, não se é obrigado a fazer do homem um filósofo, em lugar de fazer dele um homem; seus deveres para com outrem não lhe são ditados unicamente pelas tardias lições da sabedoria; e, enquanto não resistir ao impulso interior da comiseração, jamais fará mal a outro homem, nem mesmo a nenhum ser sensível, exceto no caso legítimo em que, achando-se a conservação interessada, é obrigado a dar preferência a si mesmo. Por esse meio, terminam também as antigas disputas sobre a participação dos animais na lei natural; porque é claro que, desprovidos de luz e de liberdade, não podem reconhecer essa lei; mas, unidos de algum modo à nossa natureza pela sensibilidade de que são dotados, julgar-se-á que devem também participar do direito natural e que o homem está obrigado, para com eles a certa espécie de deveres. Parece, com efeito, que, se sou obrigado a não fazer nenhum mal a meu semelhante, é menos porque ele é um ser racional do que porque é um ser sensível, qualidade que, sendo comum ao animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito de não ser maltratado inutilmente pelo outro.
     Esse mesmo estudo do homem original, de suas verdadeiras necessidades e dos princípios fundamentais dos seus deveres, é ainda o único bom meio que pode ser empregado para levantar essas multidões de dificuldades que se apresentam sobre a origem da desigualdade moral, sobre os verdadeiros fundamentos do corpo político, sobre os direitos recíprocos dos seus membros e sobre mil outras questões semelhantes, tão importantes quanto mal esclarecidas.
     Considerando a sociedade humana com visão tranqüila e desinteressada, ela parece, a princípio, só mostrar a violência dos homens poderosos e a opressão dos fracos: o espírito se revolta contra a dureza de uns ou é levado a deplorar a cegueira dos outros; e, como nada é menos estável entre os homens do que essas relações exteriores que o acaso produz mais freqüentemente do que a sabedoria, e que se chama fraqueza ou poder, riqueza ou pobreza, o que estabelecem os homens parece fundado, à primeira vista, sobre montículos de areia movediça: é só examinando-os de perto, só depois de haver tirado o pó e a areia que rodeiam o edifício, que se percebe a base inabalável sobre a qual foi elevado, e que se aprende a respeitar os seus fundamentos. Ora, sem o estudo sério do homem, de suas faculdades naturais e dos seus desenvolvimentos sucessivos, não se chegará nunca ao ponto de fazer essas distinções e de separar, na atual constituição das coisas, o que fez a vontade divina e o que a arte humana pretendeu fazer. As pesquisas políticas e morais, às quais dá lugar a importante, questão que examino, são, pois, úteis de todas as maneiras, e a história hipotética dos governos é para o homem uma lição instrutiva a todos os respeitos. Considerando o que teríamos sido abandonados a nós mesmos, devemos aprender a abençoar aquele cuja mão benfazeja, corrigindo as nossas instituições e dando-lhes uma situação inabalável, preveniu as desordens que deveriam resultar e fez nascer a nossa felicidade dos meios que parecia deverem cumular a nossa miséria.

Quem te Deus esse
Jussit, et humana qua parte locatus es in re,
Disce.
Persa, Sat., III, V. 74. 

DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS

Non in depravatis, sed in his quoe bene
secundum naturam se habent, considerandum est
quid sit naturale.
Aristóteles, Política, livro I, cap. II.

       É do homem que tenho de falar; e a questão que examino me ensina que vou falar a homens; com efeito, não se propõem semelhantes questões quando se teme honrar a verdade. Defenderei, pois, com confiança, a causa da humanidade perante os sábios que a tal me convidam, e não ficarei descontente comigo se me tornar digno do meu assunto e dos meus juizes.
     Concebo na espécie humana duas espécies de desigualdade: uma, que chamo de natural ou física, porque é estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito, ou da alma; a outra, que se pode chamar de desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e que é estabelecida ou, pelo menos, autorizada pelo consentimento dos homens. Consiste esta nos diferentes privilégios de que gozam alguns com prejuízo dos outros, como ser mais ricos, mais honrados, mais poderosos do que os outros, ou mesmo fazerem-se obedecer por eles.
     Não se pode perguntar qual é a fonte da desigualdade natural, porque a resposta se encontraria enunciada na simples definição da palavra. Ainda menos se pode procurar se haveria alguma ligação essencial entre as duas desigualdades, pois isso eqüivaleria a perguntar, por outras palavras, se aqueles que mandam valem necessariamente mais do que os que obedecem, e se a força do corpo e do espírito, a sabedoria ou a virtude, se encontram sempre nos mesmos indivíduos em proporção do poder ou da riqueza: questão talvez boa para ser agitada entre escravos ouvidos por seus senhores, mas que não convém a homens razoáveis e livres, que buscam a verdade.
     De que, pois, se trata precisamente neste discurso? De marcar no progresso das coisas o momento em que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi submetida à lei; explicar por que encadeamento de prodígios o forte pode resolver-se a servir o fraco, e o povo a procurar um repouso em idéia pelo preço de uma felicidade real.
     Os filósofos que examinaram os fundamentos da sociedade sentiram a necessidade de remontar até ao estado de natureza, mas nenhum deles aí chegou. Uns não vacilaram em supor no homem desse estado a noção do justo e do injusto, sem se inquietar de mostrar que ele devia ter essa noção, nem mesmo que ela lhe fosse útil. Outros falaram do direito natural que cada qual tem de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que entendiam por pertencer. Outros, dando primeiro ao mais forte autoridade sobre o mais fraco, fizeram logo nascer o governo, sem pensar no tempo que se devia ter escoado antes que o sentido das palavras autoridade e governo pudesse existir entre os homens. Enfim, todos, falando sem cessar de necessidade, de avidez, de opressão, de desejos e de orgulho, transportaram ao estado de natureza idéias que tomaram na sociedade: falavam do homem selvagem e pintavam o homem civil. Não ocorreu mesmo ao espírito da maior parte dos nossos duvidar que o estado de natureza tivesse existido, quando é evidente, pela leitura dos livros sagrados, que o primeiro homem, tendo recebido imediatamente de Deus luzes e preceitos, não estava também nesse estado, e que, acrescentando aos escritos de Moisés a fé que lhes deve toda filosofia cristã, é preciso negar que, mesmo antes do dilúvio, os homens jamais se encontrassem no puro estado de natureza, a menos que, não tenham nele caído de novo por algum acontecimento extraordinário: paradoxo muito embaraçante para ser defendido e absolutamente impossível de ser provado.
     Comecemos, pois, por afastar todos os fatos, pois não se ligam à questão. É preciso não considerar as pesquisas, nas quais se pode entrar sobre este assunto, como verdades históricas, mas, somente como raciocínios hipotéticos e condicionais, mais próprios, para esclarecer a natureza das coisas do que para mostrar a sua verdadeira origem, e semelhantes aos que todos os dias fazem os nossos físicos sobre a formação do mundo. A religião nos ordena a crer que o próprio Deus, tendo tirado os homens do estado de natureza imediatamente depois da criação, eles são desiguais porque ele quis que o fossem; proíbe-nos, porém, de formar conjecturas, tiradas somente da natureza do homem e dos seres que o rodeiam, sobre o que poderia ter acontecido ao gênero humano se tivesse ficado abandonado a si mesmo. Eis o que me perguntam e o que me proponho examinar neste discurso. Como o meu assunto interessa o homem em geral, procurarei uma linguagem que convenha a todas as nações; ou antes, esquecendo o tempo e os lugares, para só pensar nos homens a quem falo, suponho-me no liceu de Atenas, repetindo as lições dos meus mestres, tendo os Platão e os Xenócrates como juizes e o gênero humano como ouvinte.
     Oh homem, de qualquer região que sejas, quaisquer que sejam as tuas opiniões, escuta: eis a tua história, tal como julguei lê-la, não nos livros dos teus semelhantes, que são mentirosos, mas na natureza, que não mente nunca. Tudo o que partir dela será verdadeiro; de falso só haverá o que eu acrescentar de meu sem o querer. Os tempos de que vou falar são bem remotos: como estás diferente do que eras! É, por assim dizer, a vida de tua espécie que te vou descrever segundo as qualidades que recebeste, que tua educação e teus hábitos puderam depravar, mas que não puderam destruir. Há, eu o sinto, uma idade na qual o homem individual desejaria parar: tu procurarás a idade na qual desejarias que a tua espécie parasse. Descontente do teu estado presente pelas razões que anunciam à tua posteridade infeliz maiores descontentamentos ainda, talvez quisesses retrogradar; e esse sentimento deve constituir o elogio dos teus primeiros ancestrais, a crítica dos teus contemporâneos e o espanto dos que tiverem a desgraça de viver depois de ti.

PRIMEIRA PARTE

       Por mais importantes que seja, para bem julgar do estado natural do homem, considerá-lo desde a sua origem e o examinar, por assim dizer, no primeiro embrião da espécie, não seguirei sua organização através dos seus desenvolvimentos sucessivos: não me deterei a rebuscar no sistema animal o que teria podido ser no começo para se tornar enfim o que é. Não examinarei, como o supõe Aristóteles, se suas unhas alongadas não foram primeiro garras aduncas; se não era peludo como um urso; e se, ao andar de quatro patas (3), o seu olhar dirigido para a terra e limitado a um horizonte de alguns passos não marcaria ao mesmo tempo o caráter e o limite de suas idéias. Eu só poderia formar sobre isso conjecturas vagas e quase imaginárias. A anatomia comparada fez ainda muito poucos progressos, e as observações dos naturalistas são ainda muito incertas, para que se possa estabelecer sobre tais fundamentos a base de um raciocínio sólido: assim, sem recorrer aos conhecimentos sobrenaturais que temos sobre esse ponto, e sem considerar as mudanças que deveriam sobrevir na conformação tanto interior como exterior do homem, à medida que ele aplicava seus membros em novos misteres e que se nutria de novos alimentos, hei de supô-lo sempre tal como o vejo hoje, andando com dois pés, servindo-se de suas mãos como fazemos com as nossas, dirigindo o olhar para toda a natureza e medindo com os olhos a vasta extensão do céu.
     Despindo esse ser assim constituído de todos os dons sobrenaturais que pode receber e de todas as faculdades artificiais que pode adquirir somente por longos progressos; considerando-o, em uma palavra, tal como deveria ter saído das mãos da natureza, vejo um animal menos forte do que uns, menos ágil do que outros, mas, afinal de contas, organizado mais vantajosamente do que todos: vejo-o saciando-se debaixo de um carvalho, matando a sede no primeiro regato, encontrando o seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto; e eis satisfeitas as suas necessidades.
     A terra, abandonada à sua fertilidade natural (4) e coberta de florestas imensas que o machado jamais mutilou, oferece a cada passo celeiros e abrigos aos animais de toda espécie. Os homens, dispersos entre eles, observam, imitam sua indústria e se elevam, assim, até ao instinto das feras; com a vantagem de que cada espécie só tem o seu próprio, e o homem, não tendo talvez nenhum que lhe pertença, se apropria de todos, nutre-se ele igualmente da maior parte dos alimentos diversos (5) partilhado entre os outros animais e encontra por conseguinte sua subsistência mais facilmente do que qualquer dos outros.
     Acostumados desde a infância às intempéries do ar e ao rigor das estações, exercitados no trabalho e forçados a defender nus e sem armas a sua vida e a sua presa contra os outros animais ferozes, ou a escapar da sua perseguição, os homens adquirem um temperamento robusto e quase inalterável: os filhos, trazendo ao mundo a excelente constituição dos pais e fortificando-a com os mesmos exercícios que a produziram, adquirem assim todo o vigor de que a espécie humana é capaz. A natureza faz precisamente com eles o que a lei de Esparta fazia com os filhos dos cidadãos: torna forte e robustos os que são bem constituídos e faz morrer todos os outros, divergindo nisso das nossas sociedades, em que o Estado, tornando os filhos onerosos aos pais, os mata indistintamente antes do nascimento.
     Sendo o corpo do homem selvagem o único instrumento que conhece, emprega-o em diversos usos, para os quais, por falta de exercício, os nossos são incapazes; e é nossa indústria que nos tira a força e a agilidade que a necessidade o obriga a adquirir. Se tivesse um machado, seu pulso quebraria tão fortes galhos? se tivesse uma funda, lançaria com a mão uma pedra com tanta força? se tivesse uma escada, treparia tão ligeiro numa árvore? se tivesse um cavalo, seria tão rápido na carreira? Deixai ao homem civilizado tempo para reunir todas essas máquinas em torno de si, e não se pode duvidar que ultrapasse facilmente o homem selvagem mas quereis ver um combate ainda mais desigual, ponde-os nus e desarmados um diante do outro, e reconhecereis logo, qual é a vantagem de ter sempre todas as suas forças à disposição, de estar sempre pronto para toda eventualidade e de se trazer sempre, por assim dizer, todo consigo (6). Hobbes pretende que o homem é naturalmente intrépido e não procura senão atacar e combater. Um filósofo ilustre pensa, ao contrário, e Cumberland e Pufendorf também o afirmam, que nada é tão tímido como o homem em estado de natureza, sempre trêmulo e prestes a fugir ao menor ruído que o impressione, ao menor movimento que perceba. Pode ser assim em relação aos objetos que não conhece; e não duvido que ele não se impressione com todos os novos espetáculos que se lhe ofereçam, todas as vezes que não pode distinguir o bem do mal físicos que deve esperar, nem comparar suas forças com os perigos que deve correr, circunstâncias raras no estado de natureza, em que todas as coisas marcham de maneira tão uniforme, e em que a face da terra não está sujeita a essas mudanças bruscas e contínuas que causam as paixões e a inconstância dos povos reunidos. Mas, o homem selvagem, vivendo disperso entre os animais e encontrando-se desde cedo na contingência de se medir com eles, estabelece logo a comparação; é sentindo que os supera mais em agilidade do que eles o superam em força, aprende a não os temer. Ponde um urso ou um lobo em luta com um selvagem robusto, ágil, corajoso, como são todos, armado de pedras e de um pau, e vereis que o perigo será pelo menos recíproco e que, depois de muitas experiências semelhantes, os animais ferozes, que não gostam de se atacar entre si, atacarão de má vontade o homem, no qual encontraram tanta ferocidade como em si mesmos. Quanto aos animais que têm realmente mais força do que o homem agilidade, ele está, em relação a eles, no caso das outras espécies mais fracas, que não deixam de subsistir; com a vantagem, para o homem, de que, não menos disposto a correr do que eles e encontrando nas árvores um refúgio quase seguro por toda parte, pode ele optar entre aceitar ou abandonar a luta, tendo a escolha da fuga ou do combate. Acrescentemos que não parece que, naturalmente, algum animal faça guerra ao homem fora do caso da sua própria defesa ou de fome extrema, nem testemunhe contra ele essas violentas antipatias que parece anunciarem que uma espécie está destinada pela natureza a servir de pasto à outra.
     Eis sem dúvida, as razões por que os negros e os selvagens fazem tão pouco caso dos animais ferozes que podem encontrar nas selvas. Os caraibas, da Venezuela, vivem, entre outros, a esse respeito, na mais profunda segurança e sem o menor inconveniente. Embora quase nus, diz François Corréal, não deixam de se expor ousadamente nos bosques, armados somente de flecha e arco; mas, nunca se ouviu dizer que algum deles fosse devorado pelas feras.
     Outros inimigos mais perigosos, dos quais o homem não tem meios para se defender, são as debilidades naturais, a infância, a velhice, e as moléstias de toda espécie, tristes sinais de nossa fraqueza, sendo que os dois primeiros são comuns a todos os animais e que o último pertence principalmente ao homem que vive em sociedade. Observo mesmo, em relação à infância, que a mãe, levando o filho consigo por toda parte, encontra muito mais facilidade em o nutrir do que as fêmeas de muitos animais, as quais são forçadas a ir e vir sem cessar com muita fadiga, de um lado, para procurar o seu próprio alimento, e, do outro, para aleitar ou nutrir os filhos. É verdade que, se a mulher vem a morrer, a criança corre o risco de morrer com ela; mas, esse perigo é comum a cem outras espécies cujos filhos ainda estão longe de poderem procurar por si mesmos a própria nutrição. E, se a infância é mais longa entre nós, a vida também o é, de modo que tudo é mais ou menos igual nesse ponto (7), embora haja, sobre a duração da primeira idade e sobre o número dos filhos(8), outras regras que não fazem parte do meu tema. Entre os velhos, que se movimentam pouco e pouco transpiram, a necessidade de alimentos diminui com a faculdade de os prover; e, como sua a vida selvagem afaste deles a gota e o reumatismo, sendo a velhice de todos os males o que menos os socorros humanos podem atenuar, extinguem-se enfim, sem se perceber que cessam de existir, e quase sem que eles mesmos o percebam.
     Em relação às moléstias, não repetirei as vãs e falsas declamações feitas contra a medicina pela maior parte das pessoas de saúde; perguntarei, porém, se há alguma observação sólida da qual se possa concluir que, nos países em que essa arte é mais descurada, a vida média do homem é mais curta do que naqueles em que é cultivada com mais cuidado. E como poderia ser assim, se os remédios que a medicina nos fornece são insuficientes para os males que temos? A extrema desigualdade na maneira de viver, o excesso de ociosidade de uns, o excesso de trabalho de outros, a facilidade de irritar e satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade, os alimentos muito requintados dos ricos, que os nutrem com sucos excitantes e os afligem com indigestões, a má nutrição dos pobres, que chega muitas vezes a faltar-lhes, obrigando-os a sobrecarregar avidamente o estômago quando podem, as vigílias, os excessos de toda espécie, os transportes imoderados de todas as paixões, as fadigas e o esgotamento de espírito, os pesares e as penas sem número que se experimentam em todos os estados e que perpetuamente arruinam as almas: eis os funestos fiadores de que a maior parte dos nossos males são nossa própria obra e de que poderíamos evitá-los quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária, que nos foi prescrita pela natureza. Se esta nos destinou a ser sãos, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contra a natureza, e que o homem que medita é um animal depravado. Quando se pensa na boa constituição dos selvagens, pelo menos dos que não perdemos com os nossos licores fortes; quando se sabe que quase não conhecem outras moléstias além dos ferimentos e da velhice, é-se obrigado a crer que facilmente se faria a história das moléstias humanas seguindo a história das sociedades civis. É essa, pelo menos, a opinião de Platão, que julga, por causa de certos remédios empregados por Podalirio e Macaão no cerco de Tróia, que diversas moléstias que esses remédios deviam excitar não eram então conhecidas entre os homens; e Celso lembra que a dieta, hoje tão necessária, só foi inventada por Hipócrates.
     Com tão poucas fontes de males, o homem no estado de natureza não tem, pois, necessidade de remédios, e ainda menos de médicos; a espécie humana, a esse respeito, não está em piores condições do que todas as outras, e é fácil saber dos caçadores se nas suas caçadas encontram muitos animais enfermos. Encontram vários com feridas consideráveis muito bem cicatrizadas, com ossos e até membros quebrados que se regeneraram sem outro cirurgião a não ser o tempo, sem outro regime a não ser a vida de todos os dias, e que não se curaram com menor perfeição por não terem sido atormentados com incisões, envenenados com drogas, ou extenuados com jejuns. Enfim, por útil que possa ser entre nós a medicina bem administrada, é sempre certo que, se o selvagem doente, abandonado a si mesmo, nada tem que esperar senão da natureza, em compensação nada tem que temer senão de seu mal, o que muitas vezes torna a sua situação preferível à nossa.
     Tenhamos, pois, cuidado em não confundir o homem selvagem com os homens que temos sob os olhos. A natureza trata todos os animais abandonados aos seus cuidados com uma predileção que parece mostrar quanto é ciosa desse direito. O cavalo, o gato, o touro, o próprio burro, têm, em geral, um talhe mais alto, todos uma constituição mais robusta, mais vigor, força e coragem nas florestas do que nas nossas casas: perdem a metade dessas vantagens ao se tornarem domésticos, e dir-se-ia que todos os nossos cuidados em tratar bem e nutrir esses animais só conseguem abastardá-los. O mesmo acontece com o homem: tornando-se sociável e escravo, torna-se fraco, medroso, submisso; e sua maneira de viver mole e efeminada acaba de debilitar, ao mesmo tempo, a sua força e a sua coragem. Acrescentemos que, entre as condições selvagem e doméstica, a diferença de homem para homem deve ser maior ainda que de animal para animal: porque, tendo o animal e o homem sido tratados igualmente pela natureza, todas as comodidades que o homem se proporciona mais do que aos animais por ele amansados são outras tantas causas particulares que o fazem degenerar mais sensivelmente.
     Assim, não constituem tão grande desgraça para esses primeiros homens, nem principalmente tão grande obstáculo à sua conservação, a nudez, a falta de habitação e a privação de todas essas inutilidades que julgamos tão necessárias. Se não têm a pele cabeluda, disso não têm nenhuma necessidade nos países quentes; e sabem logo apropriar-se, nos países frios; das peles dos animais por eles subjugados: se têm somente dois pés para correr, possuem dois braços para prover à sua defesa e às suas necessidades. Seus filhos andam, talvez, tarde e com dificuldade, mas suas mães os conduzem com facilidade; vantagem que falta às outras espécies, nas quais a mãe, sendo perseguida, se vê constrangida a abandonar os filhos ou a regular seus passos pelos deles. Enfim, a menos que se suponham os concursos singulares e fortuitos de circunstâncias de que falarei em seguida, e que poderiam muito bem não ocorrer nunca, é claro, em todo estado de causa, que o primeiro que fez roupas ou uma habitação criou para si coisas desnecessárias, pois que passara sem isso até então, não se vendo a razão pela qual, já homem feito, não poderia suportar um gênero de vida que suportava desde a infância.
     Só, ocioso, e sempre vizinho do perigo, o homem selvagem deve gostar de dormir, e ter o sono leve, como os animais, que, pensando pouco, dormem, por assim dizer, durante todo o tempo que não pensam. Constituindo a própria conservação quase, o seu único cuidado, as suas faculdades mais exercitadas devem ser as que têm por objeto principal o ataque e a defesa, seja para subjugar a presa, seja para se preservarem de ser a de outro animal; ao contrário, os órgãos que não se aperfeiçoam senão pela moleza e a sensualidade devem ficar em um estado de grosseria que exclui em si toda espécie de delicadeza; e como os sentidos participam disso, terá o tato e o gosto extremamente rudes, a vista, o ouvido e o olfato mais sensíveis. Tal é ,o estado animal em geral, e é também, segundo as narrativas dos viajantes, o estado da maior parte dos povos selvagens. Assim, não é de admirar que os hotentotes do Cabo da .Boa Esperança descubram a olho nu navios em alto mar de tão longe quanto os holandeses com binóculos; nem que os selvagens da América sintam os espanhóis na sua pista como o sentiriam os melhores cães; nem que todas essas nações bárbaras suportem facilmente a nudez, agucem seu gosto à força de pimenta e bebam licores europeus como água.

     
Até aqui, só considerei o homem físico; tratemos de o examinar agora pelo lado metafísico e moral.
     Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu sentidos para prover-se ela mesma, e para se preservar, até certo ponto, de tudo o que tende a destruí-la ou perturbá-la. Percebo precisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de que só a natureza faz tudo nas operações do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste freqüentemente em seu prejuízo. É assim que um pombo morre de fome perto de uma vasilha cheia das melhores carnes, e um gato sobre uma porção de frutas ou de grãos, embora ambos pudessem nutrir-se com os alimentos que desdenham, se procurassem experimentá-lo; é assim que os homens dissolutos se entregam a excessos que lhes ocasionam a febre e a morte, porque o espírito deprava os sentidos, e a vontade fala ainda quando a natureza se cala.
     Todo animal tem idéias, pois tem sentidos; combina mesmo as idéias até certo ponto: e, sob esse aspecto, o homem só difere do animal do mais ao menos; alguns filósofos chegaram a avançar que há mais diferença entre um homem e outro do que entre um homem e um animal. Não é, pois, tanto o entendimento que estabelece entre os animais a distinção específica do homem como sua qualidade de agente livre. A natureza manda em todo animal, e a besta obedece. O homem experimenta a mesma impressão, mas se reconhece livre de aquiescer ou de resistir; e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma; porque a física explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a formação das idéias; mas, no poder de querer, ou melhor, de escolher, e no sentimento desse poder, só se encontram atos puramente espirituais, dos quais nada se pode explicar pelas leis da mecânica.
     Mas, quando as dificuldades que envolvem todas essas questões deixassem algum motivo de discutir sobre essa diferença do homem e do animal, há uma outra qualidade muito específica que os distingue, sobre a qual não pode haver contestação: é a faculdade de se aperfeiçoar, a qual, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e reside, entre nós, tanto na espécie como no indivíduo, ao passo que um animal é, no fim de alguns meses, o que será toda a vida, e sua espécie, ao cabo de mil anos, o que era no primeiro desses mil anos. Porque só o homem está sujeito a se tornar imbecil? Não será porque volta assim ao seu estado primitivo e, enquanto o animal, que nada adquiriu e nada tão pouco tem que perder, fica sempre com o seu instinto, ele, perdendo de novo, com a velhice ou outros acidentes, tudo o que a sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, torna a cair assim mais baixo do que a própria besta? Tristes de nós se fossemos forçados a convir que essa faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todas as desgraças do homem; que é ela que o tira à força de tempo dessa condição originária na qual ele passaria dias tranqüilos e inocentes: que é ela que, fazendo desabrochar com os séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtudes, o torna, com o tempo, o tirano de si mesmo e da natureza (9). Seria horrível ser obrigado a louvar como um ser benfeitor aquele que primeiro sugeriu ao habitante das margens do Orenoco o uso dessas tábuas que ele adapta às fontes de seus filhos e que lhes asseguram pelo menos uma parte de sua imbecilidade e de sua felicidade original.
     O homem selvagem, entregue pela natureza exclusivamente ao seu instinto, ou antes, indenizado do que talvez lhe falte por faculdades capazes, primeiro, de o suprir, e, em seguida, de o elevar muito acima dela, começará, pois, pelas funções puramente animais (10). Perceber e sentir será seu primeiro estado, que lhe será comum com todos os animais; querer e não querer, desejar e temer, serão as primeiras e quase únicas operações de sua alma, até que novas circunstâncias lhe causem novos desenvolvimentos.
     Mau grado o que dizem os moralistas, o entendimento humano deve muito às paixões, que, de comum acordo, também lhe devem muito: é pela sua atividade que a nossa razão se aperfeiçoa; só procuramos conhecer porque desejamos gozar; e não é possível conceber porque aquele que não tivesse desejos nem temores se desse ao trabalho de raciocinar. As paixões, por sua vez, se originam das nossas necessidades, e o seu progresso dos nossos conhecimentos; porque só podemos desejar ou temer coisas segundo as idéias que temos delas, ou pelo simples impulso da natureza; e o homem selvagem, privado de toda sorte de luzes, só experimenta as paixões dessa última espécie; seus desejos não passam pelas suas necessidades físicas (11); os únicos bens que conhece no universo são a sua nutrição, uma fêmea e o repouso; os únicos males que teme são a dor e a fome. Digo a dor, e não a morte; porque jamais o animal saberá o que é morrer; e o conhecimento da morte e dos seus terrores foi uma das primeiras aquisições que o homem fez afastando-se da condição animal.
     Ser-me-ia fácil, se me fosse necessário, apoiar esse sentimento em fatos, e fazer ver que em todas as nações do mundo os progressos do espírito são precisamente proporcionais às necessidades que os povos receberam da natureza, ou às quais as circunstâncias os sujeitaram e, por conseguinte, às paixões que os obrigavam a prover às suas necessidades. Eu mostraria, no Egito, as artes nascendo e se estendendo com o desdobramento do Nilo; seguiria o seu progresso entre os gregos, onde as vimos germinar, crescer e se elevar até aos céus por entre as areias e os rochedos da Ática, sem poder criar raízes nas margens férteis do Eurotas; notaria que, em geral, os povos do Norte são mais industriosos que os do meio-dia; porque podem menos deixar de o ser; como se a natureza, assim, quisesse igualar as coisas dando aos espíritos a fertilidade que recusa à terra.
     Mas, sem recorrer aos testemunhos incertos da história, quem não vê que tudo parece afastar do homem selvagem a tentação e os meios de cessar de o ser? Sua imaginação nada lhe pinta; seu coração nada lhe pede. Suas módicas necessidades encontram-se tão facilmente à mão, e ele está tão longe do grau de conhecimento necessário para desejar adquirir maiores, que não pode ter nem previdência nem curiosidade. O espetáculo da natureza torna-se-lhe indiferente à força de se lhe tornar familiar: é sempre a mesma ordem, são sempre as mesmas revoluções; não tem o espírito de se admirar das maiores maravilhas; e não é nele que se deve procurar a filosofia de que o homem tem necessidade para saber observar, uma vez, o que viu todos os dias. Sua alma, que coisa alguma agita, entrega-se ao sentimento único de sua existência atual sem nenhuma idéia do futuro, por mais próximo que possa estar; e seus projetos, limitados como suas vistas, estendem-se apenas até ao fim do dia. Tal é, ainda hoje, o grau de previdência do caraiba: vende de manhã sua cama de algodão, e vem chorar, à noite, para comprá-la novamente, por não ter previsto que precisaria dela na noite próxima.
     Quanto mais meditamos sobre esse assunto, tanto mais a distância das puras sensações aos mais simples conhecimentos aumenta aos nossos olhos; e é impossível conceber como um homem teria podido exclusivamente com suas forças, sem o socorro da comunicação e sem o aguilhão da necessidade, transpor tão grande intervalo. Quantos séculos, talvez, se escoaram antes que os homens chegassem a poder ver outro fogo além do fogo do céu! quantos e diferentes riscos não lhes foram precisos para aprender os usos mais comuns desse elemento! quantas vezes não o deixaram apagar antes de ter adquirido a arte de o reproduzir! e quantas vezes, talvez, cada um desses segredos não morreu com o seu descobridor! Que diremos da agricultura, arte que exige tanto trabalho e previdência, que se relaciona com tantas outras artes, que muito evidentemente só é praticável em uma sociedade pelo menos começada, e que não nos serve tanto para tirar da terra os alimentos que ela forneceria sem isso, como para forçá-la às preferências que são mais do nosso gosto? Mas, suponhamos que os homens se tivessem de tal modo multiplicado que as produções naturais não fossem suficientes para os nutrir, suposição que, digamo-lo de passagem, mostraria grande vantagem para a espécie humana nessa maneira de viver; suponhamos que, sem oficinas e sem forjas, os instrumentos de lavoura caíssem do céu nas mãos dos selvagens; que esses homens tivessem vencido o ódio mortal que têm todos eles por um trabalho contínuo; que tivessem aprendido a prever de tão longe as suas necessidades; que tivessem adivinhado como é preciso cultivar a terra, semear os grãos e plantar as árvores; que tivessem encontrado a arte de moer o trigo e de pôr a uva a fermentar; todas as coisas que foi preciso que os deuses lhes ensinassem, por não conceberem como as teriam aprendido por si mesmos: depois disso, qual seria o homem insensato que se atormentasse na cultura de um campo que seria despojado pelo primeiro que aparecesse, homem ou animal indiferentemente, ao qual essa colheita conviesse? e como poderá cada um resolver-se a passar a vida em um trabalho penoso cujo prêmio está tanto mais seguro de não obter quanto mais lhe fosse este necessário? Em uma palavra como poderá essa situação levar os homens a cultivar a terra enquanto não for partilhada entre eles, isto é, enquanto o estado de natureza não for aniquilado?
     Quando quiséssemos supor um homem selvagem tão hábil na arte de pensar quanto no-lo fazem os nossos filósofos; quando fizéssemos dele, a seu exemplo, também um filósofo, descobrindo sozinho as mais sublimes verdades, deduzindo de raciocínios muito abstratos máximas de justiça e de razão tiradas do amor da ordem em geral, ou da vontade conhecida do seu Criador; em uma palavra, quando supuséssemos no seu espírito tanta inteligência e luzes quanto ele deve ter e de fato nele achamos de pesado e de estúpido, que utilidade tiraria a espécie de toda essa metafísica, que não poderia se comunicar e que pereceria com o indivíduo que a tivesse inventado? que progresso poderia fazer o gênero humano esparso nas florestas, entre os animais? e até que ponto poderiam aperfeiçoar-se e esclarecer-se mutuamente homens que, não tendo domicílio fixo, nem nenhuma necessidade um do outro, se encontrariam, talvez, apenas duas vezes na vida, sem se conhecerem e sem se falarem?
     Que se pense de quantas idéias somos devedores ao uso da palavra; quanto a gramática exerce e facilita as operações do espírito; e que se pense nas penas inconcebíveis e no tempo infinito que teve de custar a primeira invenção das línguas; que se juntem essas reflexões às precedentes, e então se julgará quantos milhares de séculos foram precisos para desenvolver sucessivamente no espírito humano as operações de que é capaz.
     Que me seja permitido considerar, por um instante, os embaraços da origem das línguas. Poderia contentar-me em citar ou repetir aqui as pesquisas que o sr. abade de Condillac fez sobre essa matéria, as quais confirmam plenamente o meu sentimento e talvez me tenham dado a respeito a primeira idéia. Mas, a maneira pela qual esse filósofo resolve as dificuldades que cria para si mesmo sobre a origem dos sinais instituídos, mostrando que supôs o que proponho, a saber, uma espécie de sociedade já estabelecida entre os inventores da linguagem, creio, voltando às suas reflexões, dever acrescentar as minhas, para expor as mesmas dificuldades no dia que convier ao meu tema. A primeira que se apresenta é imaginar como puderam tornar-se necessárias; porque, não tendo os homens nenhuma correspondência entre si, nem nenhuma necessidade de a ter, não se concebe nem a necessidade dessa invenção, nem a sua possibilidade, se não fosse indispensável. Direi bem, como muitos outros, que as línguas nasceram da convivência doméstica dos pais, das mães e dos filhos; mas, além disso não resolver as objeções, seria cometer o erro dos que, raciocinando sobre o estado de natureza, para aí transportam as idéias tomadas na sociedade, vêem sempre a família reunida em uma mesma habitação e as seus membros guardando entre si uma união tão íntima e tão permanente como entre nós, onde tantos interesses comuns os reúnem; ao passo que, nesse estado primitivo, não tendo casas, nem cabanas, nem propriedades de nenhuma espécie, cada qual se alojava ao acaso e muitas vezes por uma só noite; os machos e as fêmeas se uniam fortuitamente, conforme o encontro, a ocasião e o desejo, sem que a palavra fosse intérprete muito necessário das coisas que se deviam dizer: e se abandonavam com a mesma facilidade (12). A mãe aleitava primeiro os filhos por sua própria necessidade; depois, tendo o hábito os tornado caros, nutria-os pela necessidade deles; logo que tiveram força para procurar o próprio alimento, eles não tardaram em deixar a própria mãe; e, como não houvesse quase outro meio de se encontrarem senão o de não se perderem de vista, logo chegaram ao ponto de não se reconhecerem uns aos outros. Notai ainda que, tendo o filho todas as suas necessidades que explicar, e por conseguinte mais coisas que dizer à mãe do que a mãe ao filho, é ele que deve ter feito os maiores esforços de invenção, devendo a língua que emprega ser em grande parte sua própria obra; isso multiplica tanto as línguas quantos indivíduos há para as falar; para isso contribui ainda a vida errante e vagabunda, que não deixa a nenhum idioma o tempo de tomar consistência; porque dizer que a mãe dita ao filho as palavras das quais deverá servir-se para lhe pedir tal ou tal coisa, é o que mostra bem como se ensinam as línguas já formadas, mas não explica como se formam.
     
Suponhamos vencida essa primeira dificuldade; transponhamos, por um momento, o espaço imenso que deve encontrar-se entre o puro estado de natureza e a necessidade das línguas; e procuremos, supondo-as necessárias (13), como puderam começar a se estabelecer. Nova dificuldade ainda pior do que a precedente: porque, se os homens tiveram necessidade da palavra para aprender a pensar, tiveram muito mais necessidade ainda de saber pensar para encontrar a arte da palavra; e, quando se compreendesse como os sons da voz foram tomados por intérpretes convencionais de nossas idéias, restaria sempre saber quais puderam ser os intérpretes mesmos dessa convenção para as idéias que, não tendo um objeto sensível, não podiam indicar-se nem pelo gesto nem pela voz; de sorte que mal podemos formar conjecturas suportáveis sobre o nascimento dessa arte de comunicar os pensamentos e estabelecer um comércio entre os espíritos; arte sublime, que já está tão longe de sua origem, mas que o filósofo vê ainda a tão prodigiosa distância de sua perfeição, que não há homem bastante ousado para assegurar que ai chegaria, quando as revoluções, que o tempo necessariamente conduz fossem suspensas em seu favor, os preconceitos saíssem das academias ou se calassem diante delas, e elas pudessem ocupar-se desse objeto espinhoso durante séculos inteiros sem interrupção.
     A primeira linguagem do homem, a linguagem mais universal, mais enérgica e a única de que teve necessidade antes que fosse preciso persuadir homens reunidos, foi o grito da natureza. Como esse grito não tivesse sido arrancado senão por uma espécie de instinto nas ocasiões prementes, para implorar socorro nos grandes perigos ou alívio nos males violentos, não era de grande uso no curso ordinário da vida, em que reinam sentimentos mais moderados. Quando as idéias dos homens começaram a se estender e a se multiplicar, e se estabeleceu entre eles uma comunicação mais estreita, procuraram sinais mais numerosos e uma linguagem mais extensa; multiplicaram as inflexões da voz e lhe juntaram os gestos, que, por natureza, são mais expressivos, dependendo menos o seu sentido de uma determinação interior. Assim, exprimiam os objetos visíveis e móveis por meio de gestos, e os que impressionam o ouvido por meio de sons imitativos: mas, como o gesto só indica os objetos presentes ou fáceis de descrever e as ações visíveis, não sendo de uso universal, de vez que a obscuridade ou a interposição de um corpo o torna inútil, e exigindo a atenção mais do que a excita, foi ele substituído pelas articulações da voz, que, sem terem a mesma relação com certas idéias, são mais próprias para representá-las todas como sinais instituídos. Essa substituição só ponde ser feita por um consenso geral e de maneira bem difícil de praticar por homens cujos órgãos grosseiros não tinham ainda nenhum exercício, e mais difícil ainda de conceber em si mesma, pois que esse acordo unânime teve de ser motivado, parecendo a palavra ter sido muito necessária para estabelecer o uso da palavra.
     Deve julgar-se que os primeiros vocábulos de que os homens fizeram uso tiveram no seu espírito uma significação muito mais extensa do que as que se empregam nas línguas já formadas, e que, ignorando a divisão do discurso em suas partes constitutivas, deram eles primeiro a cada palavra o sentido de uma proposição inteira. Quando começaram a distinguir o sujeito do atributo e o verbo do nome, o que não foi um medíocre esforço de gênio, os substantivos não passavam, a princípio, de outros tantos nomes próprios, sendo o presente do infinitivo o único tempo dos verbos; e, em relação aos adjetivos, a noção não devia ter sido desenvolvida senão muito dificilmente, porque todo adjetivo é uma palavra abstrata, e as abstrações são operações penosas e pouco naturais. Cada objeto recebeu primeiro um nome particular, sem relação com os gêneros e as espécies, que esses primeiros professores não estavam em condições de distinguir; e todos os indivíduos se apresentaram isoladamente ao seu espírito como no quadro da natureza. Se um carvalho se chamava A, outro carvalho se chamava B; porque a primeira idéia que se deduz de duas coisas é que não são a mesma; e, em geral, é preciso muito tempo para observar o que têm de comum; de sorte que, quanto mais limitados eram os conhecimentos, tanto mais extenso se tornava o dicionário. O embaraço de toda essa nomenclatura não pode ser suprimido facilmente: porque, para colocar em ordem os seres sob denominações genéricas e comuns, era preciso conhecer-lhes as propriedades e as diferenças; eram necessárias observações e definições, isto é, história natural e metafísica, muito mais do que os homens daquele tempo podiam ter.
     Aliás, as idéias gerais só podem introduzir-se na espécie com o auxílio das palavras, e o entendimento não as apreende senão por meio das proposições. É uma das razões por que os animais não poderiam formar tais idéias, nem jamais adquirir a perfectibilidade que delas depende. Quando um macaco vai, sem hesitar, de uma noz a outra, julga-se que tenha a idéia geral dessa espécie de fruta e que compare o seu arquétipo a esses dois indivíduos? Não, sem dúvida; mas, a vista de uma dessas nozes lembra à sua memória as sensações que recebeu da outra, e seus olhos, modificados de certa maneira, anunciam ao seu gosto a modificação que vai receber. Toda idéia geral é puramente intelectual; por pouco que a imaginação tome parte nela, a idéia se torna, logo particular. Procurai traçar a imagem de uma árvore em geral, e jamais o conseguireis; contra a vossa vontade, é preciso vê-la grande ou pequena, desgalhada ou copada, clara ou escura; e, se dependesse de vós não ver senão o que se acha em toda árvore, essa imagem não se pareceria mais com uma árvore. Os seres puramente abstratos se vêem do mesmo modo, ou não se concebem senão por meio do discurso. Só a definição do triângulo vos dá a verdadeira idéia: logo que o figurais em vosso espírito, é um certo triângulo e não outro, e não podeis deixar de tornar as suas linhas sensíveis ou o plano colorido. É preciso, pois, enunciar proposições, é preciso falar para ter idéias gerais: porque, logo que a imaginação para, o espírito só marcha com o auxílio do discurso. Se, pois, os primeiros inventores só puderam dar nomes às idéias que já tinham, resulta que os primeiros substantivos só poderiam ter sido nomes próprios.
     Mas quando, não posso conceber por que meios, os nossos novos gramáticos começaram a estender suas idéias e a generalizar suas palavras, a ignorância dos inventores teve de sujeitar esse método a limites muito estreitos; e como, primeiro, tinham multiplicado muito os nomes dos indivíduos, por não conhecerem os gêneros e as espécies, em seguida fizeram muito poucas espécies e gêneros, por não terem considerado os seres em todas as suas diferenças. Para levar as divisões bastante longe, eram necessárias mais experiência e luzes do que podiam ter, e mais pesquisas e trabalho do que queriam empregar. Ora, se, ainda hoje, se descobrem cada dia novas espécies que até aqui tinham escapado a todas as nossas observações, que se imagine quantas escapariam a homens que julgavam as coisas pelo primeiro aspecto. Quanto às classes primitivas e às noções mais gerais, é supérfluo acrescentar que deviam escapar-lhes também. Como, por exemplo, teriam eles imaginado ou entendido as palavras matéria, espírito, substância, modo, figura, movimento, quando até os nossos filósofos, que delas se servem há tanto tempo, custam tanto a entendê-las, e quando as idéias ligadas a essas palavras, sendo puramente metafísicas, não encontravam para elas nenhum modelo na natureza?
     Paro nesses primeiros passos e suplico aos meus juizes que suspendam aqui a leitura para considerar, sobre a invenção dos únicos substantivos físicos, isto é, sobre a parte da língua mais fácil de ser encontrada, o caminho que lhe resta percorrer para exprimir todos os pensamentos dos homens, para tomar uma forma constante, para poder ser falada em público, e influir sobre a sociedade: suplico-lhes que reflitam sobre quanto tempo e quantos conhecimentos foram necessários para encontrar os números (14), as palavras abstratas, os aoristos, e todos os tempos dos verbos, as partículas, a sintaxe, ligar as proposições, os raciocínios, e formar toda a lógica do discurso. Quanto a mim, horrorizado com as dificuldades que se multiplicam, e convencido da impossibilidade quase demonstrada de que as línguas tenham podido nascer e se estabelecer por meios puramente humanos, deixo a quem quiser empreendê-la a discussão deste difícil problema: o que foi mais necessário, a sociedade já ligada à instituição das línguas, ou as línguas já inventadas para o estabelecimento da sociedade.
     Quaisquer que sejam essas origens, vê-se, pelo menos, no pouco de cuidado que tomou a natureza de aproximar os homens por necessidades mútuas e de lhes facilitar o uso da palavra, como preparou pouco a sua sociabilidade, e como pôs pouco de seu em tudo que eles fizeram para estabelecer esses limites. Efetivamente, é impossível imaginar porque, nesse estado primitivo um homem teria mais necessidade de outro homem do que um macaco ou um lobo do seu semelhante; e, supondo essa necessidade, que motivo poderia levar o outro a provê-la; ou, nesse último caso, de que modo poderiam convir entre eles as condições. Sei que nos repetem sem cessar que nada foi tão miserável como o homem nesse estado; e, se é verdade, como creio haver provado, que só depois de muitos séculos pode ele ter o desejo e a ocasião de sair dele, isso seria um processo que fazer à natureza e não àquele que ela assim tivesse constituído. Mas, se entendo bem o termo miserável, trata-se de uma palavra que não tem nenhum sentido, ou que significa apenas uma provação dolorosa, o sofrimento do corpo ou da alma: ora, eu só desejaria que me explicassem qual pode ser o gênero de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o corpo com saúde. Pergunto qual, a vida civil ou a natural, está mais sujeita a se tornar insuportável para os que a gozam. Em torno de nós, quase que só vemos pessoas que se lastimam de sua existência, e muitas mesmo que se privam dela tanto quanto o podem; e a reunião das leis divina e humana mal basta para deter essa desordem. Pergunto se jamais se ouviu dizer que um selvagem em liberdade tenha somente pensado em se lastimar da vida e em se suicidar. Que se julgue, pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira miséria. Ninguém, ao contrário, foi mais miserável do que o homem selvagem deslumbrado pelas luzes, atormentado pelas paixões, e raciocinando sobre um estado diferente do seu. Foi por uma providência muito sábia que as faculdades que ele tinha em potência só deviam desenvolver-se com as ocasiões de as exercer, a fim de que não lhe fossem nem supérfluas e cometidas antes do tempo, nem tardias e inúteis às suas necessidades. Só no instinto, tinha ele tudo o de que necessitava para viver em estado de natureza; numa razão cultivada, tem apenas o que lhe é preciso para viver em sociedade.
     Parece, à primeira vista, que os homens nesse estado, não tendo entre si nenhuma espécie de relação moral nem de deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus, nem tinham vícios nem virtudes, a menos que, tomando essas palavras em um sentido físico, se chamem vícios, no indivíduo, as qualidades que podem prejudicar a sua própria conservação, e virtudes as que podem contribuir para essa conservação. Nesse caso, seria preciso chamar de mais virtuoso aquele que menos resistisse aos simples impulsos da natureza. Mas, sem nos desviarmos do sentido comum, vem a propósito suspender o juízo que poderíamos fazer de tal situação e desconfiar dos nossos preconceitos até que, balança na mão, se tenha examinado se há mais virtudes do que vícios entre os homens civilizados ou se suas virtudes são mais vantajosas do que os seus vícios funestos, ou se o progresso dos seus conhecimentos é uma compensação suficiente dos males que se fazem mutuamente à medida que se instruem sobre o bem que se deveriam fazer ou se não estariam, afinal de contas, em uma situação mais feliz não tendo nem mal que temer nem bem que esperar de ninguém do que estando submetidos a uma dependência universal e obrigados a tudo receber daqueles que não se obrigam a lhes dar coisa alguma.
     Não vamos, principalmente concluir com Hobbes que, por não ter nenhuma idéia de bondade, o homem seja naturalmente mau; que seja vicioso, porque não conhece a virtude; que recuse sempre aos seus semelhantes serviços que não acredita serem do seu dever; ou que, em virtude do direito que se atribui com razão às coisas de que tem necessidade, imagine loucamente ser o único proprietário de todo o universo. Hobbes viu muito bem o defeito de todas as definições modernas do direito natural: mas, as conseqüências que tira da sua mostram que a toma em um sentido que não é menos falso. Raciocinando sobre os princípios que estabelece, esse autor deveria dizer que, sendo o estado de natureza aquele em que o cuidado de nossa conservação é menos prejudicial à dos outros, esse estado era, por conseguinte, o mais próprio à paz e o mais conveniente ao gênero humano. Diz precisamente o contrário, por ter feito entrar, fora de propósito, no cuidado da conservação do homem selvagem, a necessidade de satisfazer uma multidão de paixões que são obra da sociedade e que tornaram necessárias as lei. O mau, diz ele, é uma criança robusta. Resta saber se o selvagem é uma criança robusta. Quando se concordasse com ele, que se concluiria? Que, se esse homem, sendo robusto, era tão dependente dos outros como quando fraco, não há excessos aos quais não se entregasse: batendo na própria mãe quando ela demorasse muito a lhe dar de mamar; estrangulando um irmão menor quando por ele incomodado; mordendo a perna de outro quando nele esbarrasse ou fosse por ele importunado. Mas, são duas suposições contraditórias no estado de natureza: ser robusto e dependente. O homem é fraco quando dependente, e emancipado antes de ser robusto. Hobbes não viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar a razão, como o pretendem os nossos jurisconsultos, impede-os também de abusar das suas faculdades, como ele próprio o pretende; de sorte que se poderia dizer que os selvagens não são maus, precisamente porque não sabem o que é ser bom. Com efeito, não é nem o desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a calma das paixões e a ignorância do vício que os impedem de fazer mal: Tanto plus in illis proficit vitiorum ignoratio, quam in his cognitio virtutis. Aliás, há outro princípio que Hobbes não percebeu e que, tendo sido dado ao homem para suavizar em certas ocasiões a ferocidade de seu amor próprio ou o desejo de se conservar antes do nascimento desse amor (15), tempera o ardor que ele tem por seu bem-estar com uma repugnância inata de ver sofrer seu semelhante. Não creio ter contradição alguma que temer concedendo ao homem a única virtude natural que o detrator mais extremado das virtudes humanas é forçado a reconhecer. Refiro-me à piedade, disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como nós; virtude tanto mais universal quanto mais útil ao homem que precede nele ao uso de toda reflexão, e tão natural que os próprios animais dão, às vezes, sinais sensíveis dela; sem falar da ternura das mães pelos filhos e dos perigos que afrontam para defendê-los, observamos todos os dias a repugnância que têm os cavalos em pisar um corpo vivo. Um animal não passa sem inquietação perto de um animal morto de sua espécie: alguns lhes dão mesmo uma espécie de sepultura; e os tristes mugidos do gado, ao entrar no matadouro, anunciam a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o comove. Vê-se, com prazer, o autor da Fábulas das Abelhas, forçado a reconhecer o homem como um ser compassivo e sensível, sair, no exemplo que dá do seu estilo frio e sutil, para nos oferecer a patética imagem de um homem fechado que percebe, fora, uma besta feroz arrebatando uma criança do seio da mãe, quebrando com os dentes assassinos os seus frágeis membros e despedaçando com as unhas as entranhas palpitantes dessa criança. Que horrível agitação experimenta a testemunha de um acontecimento no qual não tem nenhum interesse pessoal! que angústia não sofre ao ver tal coisa, sem poder socorrer a mãe desfalecida ou a criança em agonia!
     Tal é o puro movimento da natureza, anterior a toda reflexão; tal é a força da piedade natural, que os costumes mais depravados ainda têm dificuldade em destruir, pois vemos todos os dias, nos nossos espetáculos, toda a gente se enternecer e chorar pelas desgraças de um infeliz, como se estivesse cada qual no lugar do tirano e agravasse ainda mais os tormentos do seu inimigo: como o sanguinário Sila, tão sensível aos males que não causara, ou Alexandre de Feras, que não ousava assistir à representação de nenhuma tragédia, com medo de que o vissem gemer com Andrômaca e Priamo, enquanto escutava sem emoção os gritos de tantos cidadãos que se degolavam todos os dias por sua ordem.


Mollissima corda
Humano generi dare se natura fatetur,
Quoe lacrymas dedit.

 

    Mandeville sentiu bem que, com toda a sua moral, os homens nunca teriam passado de monstros, se a natureza não lhes desse a piedade em apoio da razão: mas não viu que dessa única qualidade decorrem todas as virtudes sociais que quer disputar aos homens. Efetivamente, que é a generosidade, a demência, a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados, ou à espécie humana em geral? Mesmo a amizade e a benevolência são, afinal de contas, produções de uma piedade constante, fixada sobre um objeto particular: com efeito, desejar que alguém não sofra, que outra coisa é senão desejar que seja feliz? Mesmo que fosse verdade que a comiseração não passa de um sentimento que nos põe no lugar daquele que sofre, sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mas fraco no homem civilizado, que importaria essa idéia à verdade do que digo, a não ser para lhe dar mais força? Efetivamente, a comiseração será tanto mais enérgica quanto o animal espectador se identificar mais intimamente com o animal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação teve de ser infinitamente mais estreita no estado de natureza que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor próprio, e é a reflexão que o fortifica; é ela que faz o homem cair em si; é ela que o separa de tudo que o incomoda e o aflige. É a filosofia que o isola; é por ela que ele diz em segredo, ao ver um homem que sofre: "Morre, se queres; estou em segurança". Só os perigos da sociedade inteira perturbam o sono tranqüilo do filósofo e o fazem levantar-se do leito. Pode-se impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os ouvidos e argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o identifique com aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse admirável talento, e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo sempre entregar-se, aturdido, ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas brigas de rua, a populaça se aglomera, e o homem prudente se afasta; é a canalha, são as mulheres dos mercados que separam os combatentes e impedem a gente honesta de se degolar mutuamente.
     É, pois, bem certo que a piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, Faze a outrem o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: Faze o teu bem com o menor mal possível a outrem. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em argumentos sutis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação. Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há muito tempo que o gênero humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios dos que o compõem.
     Com paixões tão pouco ativas e um freio tão salutar, os homens, mais ferozes do que maus, e mais atentos em se preservar do mal que podiam receber do que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam sujeitos a contendas muito perigosas: como não tinham entre si nenhuma espécie de comércio, e não conheciam, por conseguinte, nem a vaidade nem a consideração, nem a estima, nem o desprezo; como não tinham a menor noção do teu e do meu, nem nenhuma verdadeira idéia da justiça; como encaravam as violências que podiam sofrer como um mal fácil de reparar, e não como injúria que é preciso punir, e não pensavam mesmo em vingança, senão talvez maquinal e imediatamente, como o cão que morde a pedra que lhe atiram, suas disputas raramente teriam tido conseqüências sangrentas, se não tivessem tido motivo mais sensível do que o alimento. Mas, vejo uma coisa mais perigosa de que me resta falar.
     Entre as paixões que agitam o coração do homem, há uma ardente, impetuosa, que torna um sexo necessário ao outro; paixão terrível que arrosta todos os perigos, derruba todos os obstáculos e, em seus furores, parece própria para destruir o gênero humano, que ela é destinada a conservar. Em que se transformarão os homens, presas desse furor desesperado e brutal, sem pudor, sem moderação, e se disputando todos os dias o amor à custa de sangue?
     É preciso convir, primeiro, que, quanto mais violentas as paixões, mais necessárias são as leis para contê-las: mas, além das desordens e dos crimes que as paixões causam todos os dias entre nós, mostrarem toda a insuficiência das leis a esse respeito, seria bom examinar ainda se essas desordens não nasceram com as próprias leis; porque, então, quando estas fossem capazes de as reprimir, o menos que se deveria exigir delas seria fazer cessar um mal que não existiria sem elas.
     Comecemos por distinguir o moral do físico no sentimento do amor. O físico é esse desejo geral que leva um sexo a se unir ao outro. O moral é o que determina esse desejo e o fixa sobre um único objeto exclusivamente, ou que pelo menos lhe dá, em relação a esse objeto preferido, um maior grau de energia. Ora, é fácil ver que o moral do amor é um sentimento factício nascido dos costumes da sociedade e celebrado pelas mulheres com muita habilidade e cuidado para estabelecerem o seu império e tornar dominante o sexo que deveria obedecer. Fundado sobre certas noções do mérito ou da beleza, que um selvagem não está em condições de ter, e sobre comparações, que não está em estado de fazer, deve esse sentimento ser quase nulo para ele: porque, como seu espírito não pode formar idéias de regularidade e proporção, o coração também não é suscetível dos sentimentos de admiração e de amor, os quais, mesmo que não se perceba, nascem da aplicação dessas idéias: ele escuta unicamente o temperamento que recebeu da natureza, e não o gosto que não pode adquirir, sendo toda mulher boa para ele.
     Limitados somente à parte física do amor, e bastante felizes para ignorar essas preferências que lhe irritam o sentimento e aumentam as dificuldades, os homens devem sentir menos freqüente e menos vivamente os ardores do temperamento, e, por conseguinte, ter entre si disputas mais raras e menos cruéis. A imaginação, que faz tantos estragos entre nós, não fala a corações selvagens; cada um espera pacificamente o impulso da natureza, a ele se entregando sem escolha, com mais prazer do que furor; e, satisfeita a necessidade, todo o desejo se extingue.
     É, pois, coisa incontestável que o próprio amor, como todas as outras paixões, só na sociedade adquiriu esse ardor impetuoso que tantas vezes o torna funesto aos homens; e é tanto mais ridículo imaginar os selvagens como se estrangulando sem cessar para saciar a sua brutalidade, quanto essa opinião é diretamente contrária à experiência, e os caraibas, de todos os povos existentes o que, até aqui, menos se afastou do estado de natureza, são precisamente os mais pacíficos nos seus amores e os menos sujeitos ao ciúme, embora vivendo num clima escaldante, que parece dar a essas paixões uma atividade cada vez maior.
     Relativamente às induções que se poderiam tirar, em várias espécies de animais, dos combates dos machos que ensangüentam constantemente os nossos terreiros, ou que, disputando a fêmea na primavera, fazem retumbar as florestas com seus gritos, é preciso começar por excluir todas as espécies em que a natureza estabeleceu manifestamente, na potência relativa dos sexos, relações que não há entre nós: assim, as brigas dos galos não formam uma indução para a espécie humana. Nas espécies em que a proporção é mais bem observada, esses combates só podem ter como causa a raridade das fêmeas em relação ao número de machos, ou os intervalos exclusivos durante os quais a fêmea recusa constantemente a aproximação do macho, o que eqüivale à primeira causa; porque, se cada fêmea só suporta o macho durante dois meses do ano, a esse respeito é como se o número das fêmeas estivesse abaixo de cinco sextos. Ora, nenhum desses dois casos é aplicável à espécie humana, em que o número de fêmeas ultrapassa, em geral, o dos machos, em que nunca se observou, mesmo entre os selvagens, que as fêmeas tenham, como as das outras espécies, épocas de calor e de exclusão. De resto, entre muitos desses animais, toda a espécie entrando ao mesmo tempo em efervescência, vem um momento terrível de ardor comum, de tumulto, de desordem e de combate: momento que não existe para a espécie humana, na qual o amor nunca é periódico. Não se pode concluir, pois, dos combates de certos animais pela posse das fêmeas, que a mesma coisa acontecesse ao homem no estado de natureza; e, ainda mesmo que se pudesse tirar essa conclusão, como essas dissenções não destroem as outras espécies, deve-se pensar ao menos que não seriam mais funestas à nossa espécie; e é muito aparente que elas causassem ainda menos devastação do que na sociedade, principalmente nos países em que, sendo os costumes ainda contados para alguma coisa, o ciúme dos amantes e a vingança dos esposos causam todos os dias duelos, assassínios e coisas piores ainda; em que o dever de uma eterna fidelidade só serve para provocar adultérios, e em que as próprias leis da continência e da honra estendem necessariamente o deboche e multiplicam os abortos.
     Concluamos que, errando nas florestas, sem indústria, sem palavra, sem domicílio, sem guerra e sem ligação, sem nenhuma necessidade dos seus semelhantes, assim como sem nenhum desejo de os prejudicar, talvez mesmo sem jamais se reconhecerem individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastando-se a si mesmo, tinha somente os sentimentos e as luzes próprias desse estado; que não sentia senão as suas verdadeiras necessidades, não olhava senão o que acreditava ter interesse de ver; e que sua inteligência não fazia mais progressos do que a sua vaidade. Se, por acaso, fazia alguma descoberta, podia tanto menos comunicá-la do que nem mesmo reconhecia seus filhos. A arte perecia com o inventor. Não havia educação nem progresso; as gerações se multiplicavam inutilmente; e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, os séculos se escoavam em toda a grosseria das primeiras idades; a espécie já estava velha, e o homem conservava-se sempre criança.
     Se me estendi tanto sobre a suposição dessa condição primitiva, é que, havendo antigos erros e preconceitos inveterados que destruir, julguei dever cavar até à raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta realidade e influência como pretendem os nossos escritores.
     Efetivamente, é fácil ver que, entre as diferenças que distinguem os homens, muitas passam por naturais, quando são unicamente a obra do hábito e dos diversos gêneros de vida adotados pelos homens na sociedade. Assim, um temperamento robusto ou delicado, a força ou a fraqueza que disso dependem, vêm muitas vezes mais da maneira dura ou efeminada pela qual foi educado do que da constituição primitiva dos corpos. Acontece o mesmo com as forças do espírito, e a educação não só estabelece diferença entre os espíritos cultivados e os que não o são, como aumenta a que se acha entre os primeiros à proporção da cultura; com efeito, quando um gigante e um anão marcham na mesma estrada, cada passo representa nova vantagem para o gigante. Ora, se se comparar a diversidade prodigiosa do estado civil com a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem, em que todos se nutrem dos mesmos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exatamente as mesmas coisas, compreender-se-á quanto a diferença de homem para homem deve ser menor no estado de natureza do que no de sociedade; e quanto a desigualdade natural deve aumentar na espécie humana pela desigualdade de instituição.
     Mas, quando a natureza afetasse, na distribuição dos seus dons, tantas preferências como se pretende, que vantagem os mais favorecidos tirariam disso, com prejuízo dos outros, em um estado de coisas que não admitiria quase nenhuma espécie de relações entre eles? Onde não há amor, de que servirá a beleza? De que serve o espírito a pessoas que não falam, e a astúcia às que não têm negócios? Ouço sempre repetir que os mais fortes oprimirão os fracos. Mas, que me expliquem o que querem dizer com a palavra opressão. Uns dominarão com violência, outros gemerão sujeitos a todos os seus caprichos. Eis, precisamente, o que se observa entre nós; mas, não vejo como se poderia dizer o mesmo dos selvagens, a quem seria dificílimo fazer perceber o que é servidão e dominação. Um homem poderá se apoderar dos frutos colhidos por outro, da caça que o outro matou, do antro que lhe servia de asilo; mas, como poderá conseguir fazer-se obedecer? e quais poderiam ser as cadeias da dependência entre homens que não possuíam nada? Se me expulsam de uma árvore, estou livre para ir para outra; se me atormentam em um lugar, quem me impedirá de passar para outro? Se encontro um homem de força muito superior à minha, e, além disso, muito depravado, muito preguiçoso e muito feroz, para me constranger a prover à sua subsistência enquanto ele permanece ocioso, é preciso que ele se resolva a não me perder de vista um só instante, que me deixe amarrado com grande cuidado enquanto dorme, de medo que eu escape ou que o mate; isto é, fica obrigado a se expor voluntariamente a um trabalho muito maior do que o que quer evitar, e do que o que me dá a mim mesmo. Depois de tudo isso, sua vigilância se relaxa por um momento, um barulho imprevisto fá-lo voltar a cabeça: dou vinte passos na floresta, meus ferros se quebram, e nunca mais me tornará a ver.
     Sem prolongar inutilmente esses detalhes, cada qual deve ver que, sendo os laços da servidão formados exclusivamente da dependência mútua dos homens e das necessidades recíprocas que os unem, é impossível sujeitar um homem sem o pôr antes na situação de não poder passar sem outro homem; situação que, não existindo no estado de natureza, deixa cada um livre do jugo e torna vã a lei do mais forte.
     Depois de haver provado que a desigualdade é apenas sensível no estado de natureza, sendo a sua influência quase nula, resta-me mostrar sua origem e seus progressos nos desenvolvimentos sucessivos do espírito humano. Depois de haver mostrado que a perfectibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades que o homem natural recebera em potencial, jamais podiam desenvolver-se por si mesmas, que para isso tinham necessidade do concurso fortuito de muitas causas estranhas, que poderiam não nascer nunca, e sem as quais é preciso ficar eternamente na sua condição primitiva, resta-me considerar e aproximar os diversos acasos que puderam aperfeiçoar a razão humana deteriorando a espécie, tornar um ser mau fazendo-o social e, de um termo tão distante, conduzir enfim o homem e o mundo ao ponto em que os vemos.
     Confesso que os acontecimentos que tenho que descrever, tendo podido manifestar-se de diversas maneiras, não me posso determinar sobre a escolha senão por conjecturas, mas, além de que essas conjecturas se tornam razões quando são as mais prováveis que se podem tirar da natureza das coisas e os únicos meios que se podem ter para descobrir a verdade, as conseqüências que quero deduzir das minhas não serão por isso conjecturais, pois, que, sobre os princípios que acabo de estabelecer, não se poderia formar nenhum outro sistema que me não forneça os mesmos resultados e do qual eu não possa tirar as mesmas conclusões.
     Isso me dispensará de estender minhas reflexões sobre a maneira pela qual o lapso de tempo compensa o pouco de verosimilhança dos acontecimentos; sobre o poder surpreendente das causas muito leves, quando agem sem interrupção; sobre a impossibilidade em que estamos de destruir, de um lado, certas hipóteses, quando do outro, nos achamos incapazes de lhes dar o grau de certeza dos fatos; sobre o que, dados dois fatos como reais que ligar por uma série de fatos intermediários, desconhecidos, ou observados como tais, cabe à história, quando a temos, dar os fatos que os liguem; cabe à filosofia, na sua falta, determinar os fatos semelhantes que os podem ligar; enfim, sobre o que, em matéria de acontecimentos, a similitude reduz os fatos a um número muito menor de classes diferentes do que se imagina. É-me suficiente oferecer esses objetos à consideração dos meus juizes; é-me suficiente ter agido de maneira que os leitores vulgares não tivessem necessidade de os considerar.
 

SEGUNDA PARTE

     O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: "Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém !". Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como estavam: porque essa idéia de propriedade, dependendo muito de idéias anteriores que só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais alto, e tratemos de reunir, sob um só ponto-de-vista, essa lenta sucessão de acontecimentos e de conhecimentos na sua ordem mais natural.
     O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; o seu primeiro cuidado, o de sua conservação. As produções da terra lhe forneciam todos os socorros necessários; o instinto o levou a fazer uso delas. A fome, outros apetites, fazendo-o experimentar, alternativamente, diversas maneiras de existir, houve uma que o convidou a perpetuar a sua espécie; e esse pendor cego, desprovido de todo sentimento de coração, não produzia senão um ato puramente animal: satisfeita a necessidade, os dois sexos nunca mais se reconheciam e o próprio filho nada mais representava para a mãe logo que podia passar sem ela.
     Tal foi a condição do homem ao nascer; tal foi a vida de um animal, limitada primeiro às puras sensações e aproveitando apenas os dons que lhe oferecia a natureza, longe de pensar em lhe arrancar alguma coisa. Mas, logo, surgiram dificuldades; foi preciso aprender a vencê-las: a altura das árvores que o impedia de alcançar os frutos, a concorrência dos animais que também procuravam nutrir-se, a ferocidade dos que queriam a sua própria vida, tudo o obrigou a aplicar-se aos exercícios do corpo; foi preciso tornar-se ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate. As armas naturais, que são os galhos das árvores e as pedras, em breve estavam nas suas mãos. Aprendeu a vencer os obstáculos da natureza, a combater quando necessário os outros animais, a disputar sua subsistência aos próprios homens, ou a se compensar do que era preciso ceder ao mais forte.
     A medida que o gênero humano se estendia, as penas se multiplicavam com os homens. A diferença dos terrenos, dos climas, das estações, forçou-os a estabelecê-la na maneira de viver. Anos estéreis, invernos longos e rudes, verões escaldantes, que tudo consomem, exigiram deles uma nova indústria. Ao longo do mar e dos rios, inventaram a linha e o anzol, e se tornaram pescadores e ictiófagos. Nas florestas, fizeram arcos e flechas, e se tornaram caçadores e guerreiros. Nos países frios, cobriram-se de peles de animais por eles mortos. O trovão, um visão, ou qualquer feliz acaso, lhes fez conhecer o fogo, novo recurso contra o rigor do inverno: aprenderam a conservar esse elemento, depois a reproduzi-lo, e enfim a preparar nele as carnes, que antes devoravam cruas.
     Essa aplicação reiterada de seres diversos a si mesmos e de uns aos outros teve, naturalmente, de engendrar, no espírito do homem, as percepções de certas relações. Essas relações, que exprimimos pelas palavras grande, pequeno, forte, fraco, depressa, devagar, medroso, ousado, e outras idéias semelhantes, comparadas quando necessário, e quase sem nisso pensar, produziram nele, finalmente, uma espécie de reflexão, ou antes, uma prudência maquinal que lhe indicava as precauções mais necessárias à sua segurança. As novas luzes que resultaram desse desenvolvimento aumentaram a sua superioridade sobre os outros animais, fazendo-lhe conhecê-la. Exercitou-se em lhes preparar armadilhas, logrou-os de mil maneiras; e, embora muitos o ultrapassassem em força no combate, ou em ligeireza na corrida, daqueles que o podiam servir ou prejudicar, tornou-se com o tempo o senhor de uns e o flagelo de outros. E, assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo lhe produziu o primeiro movimento de orgulho; assim, mal sabendo ainda distinguir as ordens e contemplando-se como o primeiro por sua espécie, preparava-se já para pretender o mesmo como indivíduo.
     Embora os seus semelhantes não fossem para ele o que são para nós, e embora não tivesse mais comércio com eles do que com os outros animais, não foram esquecidos nas suas observações. As semelhanças que o tempo lhe pode fazer perceber entre eles, sua fêmea é ele mesmo, lhe fizeram julgar das que não percebia; e, vendo que todos se conduziam como teria feito ele próprio em circunstâncias semelhantes, concluiu que a sua maneira de pensar e de sentir era inteiramente conforme à sua. E, essa importante verdade, bem estabelecida em seu espírito, lhe fez seguir, por um pressentimento tão seguro e mais pronto do que a dialética, as melhores regras de conduta que, para sua vantagem e segurança, lhe convinha observar para com eles.
     Instruído pela experiência de que o amor do bem-estar é o único móvel das ações humanas, achou-se em estado de distinguir as raras ocasiões em que o interesse comum lhe devia fazer contar com a assistência dos seus semelhantes, e as mais raras ainda em que a concorrência lhe devia fazer desconfiar deles. No primeiro caso, unia-se a eles em rebanho, ou quando muito por uma espécie de associação livre que não obrigava a ninguém e que só durava enquanto havia a necessidade passageira que a havia formado. No segundo, cada qual procurava tirar suas vantagens, ou pela força aberta, se acreditava poder, ou pela astúcia e sutileza, se se sentia mais fraco.
     Eis como os homens puderam, insensivelmente, adquirir uma idéia grosseira dos compromissos mútuos e da vantagem de os cumprir, mas somente na medida em que podia exigi-lo o interesse presente e sensível; porque a previdência nada era para eles; e, longe de se ocuparem com um porvir afastado, nem mesmo pensavam no dia seguinte. Se se tratava de pegar um veado, cada qual sentia bem que, para isso, devia ficar no seu posto; mas, se uma lebre passava ao alcance de algum, é preciso não duvidar de que a perseguia sem escrúpulos e, uma vez alcançada a sua presa, não lhe importava que faltasse a dos companheiros.
     É fácil compreender que tal comércio não exigia uma linguagem mais refinada do que a das gralhas ou a dos macacos que se reúnem em bandos mais ou menos semelhantes. Gritos inarticulados, muitos gestos e alguns ruídos imitativos deviam compor, durante muito tempo, a língua universal; acrescentem-se a isso, em cada região, alguns sons articulados e convencionais, cuja instituição, como já disse, não é muito fácil explicar, e temos línguas particulares, mas grosseiras, imperfeitas e mais ou menos como as que ainda hoje têm diversas nações selvagens.
     Percorri, como um traço, multidões de séculos, forçado pelo tempo que se escoa, pela abundância das coisas que tenho que dizer e pelo progresso quase insensível dos começos; porque, quanto mais lentos em se suceder eram os acontecimentos, tanto mais estão prontos para serem descritos.
     Esses primeiros progressos colocaram, finalmente, o homem ao alcance de os fazer mais rápidos. Quanto mais o espírito se esclarecia, tanto mais a indústria se aperfeiçoava. Logo, deixando de adormecer na primeira árvore, ou de se retirar nas cavernas, encontraram-se certas espécies de machados de pedras duras e afiadas que serviram para cortar a madeira, cavar a terra e fazer cabanas de galhos, que ocorreu, em seguida, endurecer com argila e barro. Foi a época de uma primeira revolução que formou o estabelecimento e a distinção das famílias e que introduziu uma espécie de propriedade, de onde já nasceram, talvez, muitas rixas e combates. Entretanto, como os mais fortes foram, provavelmente, os primeiros a fazer alojamentos que se sentiam capazes de defender, é de se acreditar que os fracos tenham achado mais simples e mais seguro imitá-los do que tentar desalojá-los: e, quanto aos que já tinham cabanas, cada qual pouco procurou apropriar-se da do vizinho, menos porque lhe não pertencia do que lhe era inútil, não podendo apossar-se dela sem se expor a um combate muito vivo com a família que a ocupava.
     Os primeiros desenvolvimentos do coração foram o efeito de uma situação nova que reunia em uma habitação comum os maridos e as mulheres, os pais e os filhos. O hábito de viver coletivamente fez nascer os mais doces sentimentos conhecidos dos homens: o amor conjugal e o amor paternal. Cada família se torna uma pequena sociedade tanto mais unida quanto o apego recíproco e a liberdade eram os seus únicos laços; e foi então que se estabeleceu a primeira diferença na maneira de viver dos dois sexos, que, até então só tinham tido uma. As mulheres tornaram-se mais sedentárias e se acostumaram a guardar a cabana e os filhos, enquanto o homem ia procurar a subsistência comum. Os dois sexos começaram também, por uma vida um pouco mais suave, a perder alguma coisa da sua ferocidade e do seu vigor. Mas, se cada um, separadamente, se tornou menos capaz de combater os animais selvagens, em compensação foi mais fácil reunirem-se para lhes resistir em comum.
     Nesse novo estado, com uma vida simples e solitária, necessidades muito limitadas e os instrumentos que haviam inventado para as prover, os homens, gozando de bastante lazer, empregaram-no em procurar várias comodidades desconhecidas dos seus pais; e foi o primeiro jugo que se impuseram sem pensar e a primeira fonte de males que prepararam para os seus descendentes; porque, além de continuarem assim a languescer o corpo e o espírito, tendo essas comodidades, com o hábito, perdido quase todo o seu encanto e, ao mesmo tempo, degenerando em verdadeiras necessidades, a privação delas se tornou muito mais cruel do que doce era a sua posse; e, infeliz por tê-las perdido, não se era feliz possuindo-as.
     Aqui se pode ver, um pouco melhor, como o uso da palavra se estabeleceu ou se aperfeiçoou insensivelmente no seio de cada família, e pode conjecturar-se ainda como diversas causas particulares puderam desenvolver a linguagem e lhe acelerar o progresso, tornando-a mais necessária. Grandes inundações ou terremotos cercaram de águas ou de precipícios cantões habitados; revoluções do globo desarticularam e cortaram em ilhas porções do continente. Concebe-se que, entre homens assim aproximados e forçados a viver juntos, havia de se formar um idioma comum, antes do que entre os que erravam livremente nas florestas da terra firme. Assim, é muito possível que, após seus primeiros ensaios de navegação, os insulares nos tenham trazido o uso da palavra; e é, pelo menos, muito verossímil que a sociedade e as línguas tenham nascido das ilhas e nelas se aperfeiçoado antes de serem conhecidas no continente. Tudo começa a mudar de face. Os homens, até então errantes nos bosques, tendo agora situação mais fixa, aproximando-se lentamente, reúnem-se em diversos grupos e formam, enfim, em cada região, uma nação particular, unida pelos costumes e pelos caracteres, não pelos regulamentos e pelas leis, mas pelo mesmo gênero de vida e pelos alimentos, e pela influência comum do clima. Uma vizinhança permanente não pode deixar de engendrar, enfim, alguma ligação entre diversas famílias. Jovens de diferentes sexos habitam cabanas vizinhas; o comércio passageiro que a natureza exige logo conduz a outro não menos doce e mais permanente pela mútua frequentação. Adquire-se o hábito de considerar diferentes objetos e compará-los; adquirem-se, insensivelmente, idéias de mérito e de beleza, que produzem sentimentos de preferência. À força de se ver, não se pode mais passar sem se ver ainda. Um sentimento terno e doce se insinua na alma e, pela menor oposição, se transforma em furor impetuoso: o ciúme desperta com o amor, a discórdia triunfa, e a mais doce das paixões recebe sacrifícios de sangue humano.
     A medida que as idéias e os sentimentos se sucedem, que o espírito e o coração se exercitam, o gênero humano continua a se domesticar, as ligações se estendem e os laços se apertam. Adquire-se o hábito de se reunir diante das cabanas ou em torno de uma grande árvore: o canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e da ociosidade, tornam-se divertimento, ou antes, ocupação dos homens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada um começa a olhar os outros e a querer ser olhado por sua vez, e a estima pública tem um preço. Aquele que canta ou dança melhor, o mais belo, o mais forte, o mais destro ou o mais eloqüente, torna-se o mais considerado. E foi esse o primeiro passo para a desigualdade e para o vício, ao mesmo tempo: dessas primeiras preferências nasceram, de um lado, a vaidade e o desprezo e, de outro, a vergonha e a inveja; e a fermentação causada por esses novos fermentos produziu, enfim, compostos funestos à felicidade e à inocência.
     Logo que os homens começaram a se apreciar mutuamente, e que a idéia da consideração se formou em seu espírito, cada um pretendeu ter direito a ela, e não foi mais possível faltar com ela impunemente a ninguém. Daí surgiram os primeiros deveres de civilidade, mesmo entre os selvagens; e daí, toda falta voluntária tornou-se um ultraje, porque, com o mal que resultava da injúria, o ofendido via nela também o desprezo à sua pessoa, muitas vezes mais insuportável do que o próprio mal. Foi assim que, punindo cada qual o desprezo que se lhe testemunhara de maneira proporcionada ao juízo que de si mesmo fazia, as vinganças se tornaram terríveis, e os homens sanguinários e cruéis. Eis, precisamente, o grau a que tinham chegado a maior parte dos selvagens que nos são conhecidos; e, foi por não terem distinguido suficientemente as idéias e notado como esses povos já estavam longe do primeiro estado de natureza, que muitos se apressaram em concluir que o homem é naturalmente cruel e tem necessidade de polícia para abrandá-lo; ao passo que não há nada tão doce como ele em seu estado primitivo, quando, colocado pela natureza a distâncias iguais da estupidez dos brutos e das luzes funestas do homem civilizado, e limitado, igualmente, pelo instinto e pela razão, a se preservar do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de fazer mal a quem quer que seja, não sendo por nada levado a isso, mesmo depois de o ter recebido. Porque, segundo o axioma do sábio Locke, não pode haver injúria onde não há propriedade.
     Mas, é preciso notar que a sociedade começada e as relações já estabelecidas entre os homens exigiam neles qualidades diferentes das que tinham em sua constituição primitiva; que a moralidade, começando a se introduzir nas ações humanas, e cada um, antes das leis, sendo único juiz e vingador das ofensas recebidas, a bondade conveniente ao puro estado de natureza não era mais a que convinha à sociedade nascente; que era preciso que as punições se tornassem mais severas à medida que as ocasiões de ofender se tornassem mais freqüentes; e que ao terror das vinganças cabia fazer as vezes do freio das leis. Assim, embora os homens se tivessem tornado menos tolerantes, e a piedade natural já tivesse sofrido certa alteração, esse período do desenvolvimento das faculdades humanas, guardando um justo meio entre a intolerância do estado de natureza e a petulante atividade de nosso amor-próprio, devia ser a época mais feliz e mais durável. Quanto mais se reflete sobre isso, mais se acha que esse estado, era o menos sujeito às revoluções, o melhor para o homem (16), e do qual ele só teve de sair por um funesto acaso, que, para a utilidade comum, nunca teria devido verificar-se, O exemplo dos selvagens, que estiveram quase todos nesse estado, parece confirmar que o gênero humano fora feito para nele ficar sempre; que foi essa a verdadeira juventude do mundo, e que todos os progressos ulteriores foram, aparentemente, outros tantos passos para a perfeição do indivíduo, mas, de fato, para a decrepitude da espécie.
     Enquanto os homens se contentaram com as suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a coser suas roupas de peles com espinhos ou arestas de pau, a se enfeitarem com plumas e conchas, a pintar o corpo de diversas cores, a aperfeiçoar ou embelezar os seus arcos e flechas, a talhar com pedras cortantes algumas canoas de pesca ou grosseiros instrumentos de música; em uma palavra, enquanto se aplicaram exclusivamente a obras que um só podia fazer, e a artes que não necessitavam o concurso de muitas mãos, viveram livres, sãos, bons e felizes ,tanto quanto podiam ser pela sua natureza, e continuaram a gozar entre si das doçuras de uma convivência independente. Mas, desde o instante que um homem teve necessidade do socorro de outro; desde que perceberam que era útil a um só ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade se introduziu, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas se transformaram em campos risonhos que foi preciso regar com o suor dos homens, e nos quais, em breve, se viram germinar a escravidão e a miséria, a crescer com as colheitas.
     A metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja invenção produziu essa grande revolução. Para o poeta, foram o ouro e a prata; mas, para o filósofo, foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gênero humano. Tanto um como o outro eram desconhecidos dos selvagens da América, os quais, por isso, sempre ficaram como tais; os outros povos parece mesmo que continuaram bárbaros enquanto praticaram uma dessas artes sem a outra. E uma das melhores razões, talvez, por que a Europa foi, se não mais cedo, pelo menos mais constantemente e melhor policiada de que as outras partes do mundo, é que ela é, ao mesmo tempo, a mais abundante em ferro e a mais fértil em trigo.
     É muito difícil conjecturar como os homens chegaram a conhecer e empregar o ferro; porque não é crível que tenham imaginado por si mesmos tirar a matéria da mina e lhe dar as preparações necessárias para a pôr em fusão antes de saber o que disso resultaria. Por outro lado, pode-se tanto menos atribuir essa descoberta a algum incêndio acidental quanto as minas só se formam em lugares áridos e desnudados de árvores e de plantas. Dir-se-ia que a natureza tomara precauções para nos ocultar esse fatal segredo. Não resta, pois, senão a circunstância extraordinária de algum vulcão que, vomitando matérias metálicas em fusão, teria dado aos observadores a idéia de imitar essa operação da natureza; ainda é preciso supor muita coragem e previdência para empreender um trabalho tão penoso, e considerar de tão longe as vantagens que daí podiam tirar; mas, isso só pode acontecer a espíritos que já estiveram mais exercitados do que os que eles deviam ter.
     Quanto à agricultura, o seu princípio foi conhecido muito tempo antes da sua prática estabelecida, e não é possível que os homens, sem cessar ocupados em tirar sua subsistência das árvores e das plantas, não tivessem bastante prontamente a idéia dos caminhos que a natureza emprega para a geração dos vegetais. Mas, sua indústria só se voltou, provavelmente, muito tarde para esse lado, ou porque as árvores que, com a caça e a pesca, proviam à sua nutrição, não tinham necessidade dos seus cuidados, ou por não conhecerem o uso do trigo, ou por não terem instrumentos para o cultivar, ou por falta de previdência em relação à necessidade futura, ou, finalmente, por faltarem os meios para impedir os outros de se apropriarem do fruto do seu trabalho. Tornados mais industriosos, pode-se acreditar que, com pedras agudas e paus pontudos, começaram cultivando alguns legumes ou raízes em torno das suas cabanas muito tempo antes de saberem preparar o trigo e de terem instrumentos necessários para a cultura em grande escala: sem contar que, para se entregar a essa ocupação e semear a terra, é preciso se resolver, primeiro, a perder alguma coisa para ganhar muito em seguida: precaução que estava muito distante do expediente do homem selvagem, que, como já disse, tinha muita dificuldade em pensar de manhã nas necessidades da noite,
     A invenção das outras artes foi, pois, necessária para forçar o gênero humano a se aplicar à da agricultura. Desde que eram precisos homens para fundir e forjar o ferro, eram necessários outros para nutrir os primeiros. Quanto mais se multiplicava o número de operários, tanto menos eram as mãos encarregadas de prover à subsistência comum, sem que houvesse menos bocas para consumir; e, como uns precisavam de comestíveis em troca do seu ferro, os outros acharam enfim o segredo de empregar o ferro na multiplicação dos comestíveis. Daí nasceram, de um lado, a lavoura e a agricultura, e, de outro, a arte de trabalhar os metais e de muitiplicar-lhe os usos.
     Da cultura das terras resulta necessariamente a sua partilha, e, da propriedade, uma vez reconhecida, as primeiras regras de justiça: porque, para dar a cada um o seu, é preciso que cada um possa ter alguma coisa; de resto, como os homens começassem a levar suas vistas para o futuro, vendo todos que tinham alguns bens que perder, não houve nenhum que não receasse para si a represália dos males que pudesse causar a outrem. Essa origem é tanto mais natural quanto é impossível conceber a idéia da propriedade surgindo fora da mão de obra; porque não se vê o que, para se apropriar das coisas que não fez, possa o homem acrescentar-lhe além do seu trabalho. Só o trabalho, dando direito ao cultivador sobre o produto da terra que lavrou, lho dá por conseguinte sobre o fundo, pelo menos até à colheita, e assim todos os anos; e isso, constituindo uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade. Quando os antigos, diz Grotius, deram a Ceras o epíteto de legisladora, e a uma festa celebrada em sua honra o nome de tesmofória, fizeram entender, por isso, que a partilha das terras produziu uma nova espécie de direito, isto é, o direito de propriedade, diferente do que resulta da lei natural.
     Nesse estado, as coisas poderiam ter ficado iguais, se os talentos fossem iguais, e se, por exemplo, o emprego do ferro e o consumo dos alimentos tivessem feito sempre uma balança exata: mas, a proporção que ninguém mantinha foi logo rompida: o mais forte fazia mais tarefa; o mais destro tirava melhor partido da sua; o mais engenhoso encontrava meios de abreviar o trabalho; o lavrador tinha mais necessidade de ferro, ou o ferreiro mais necessidade de trigo; e, trabalhando igualmente, um ganhava muito, enquanto outro mal podia viver. É assim que a desigualdade natural se desenvolve insensivelmente com a de combinação, e que as diferenças dos homens, desenvolvidas pelas das circunstâncias, se tornam mais sensíveis, mais permanentes nos seus efeitos, e começam a influir na mesma proporção sobre a sorte dos particulares.
     Tendo as coisas chegado a esse ponto, é fácil imaginar o resto. Não me deterei em descrever a invenção sucessiva das outras artes, o progresso das línguas, a prova e o emprego dos talentos, a desigualdade das fortunas, o uso e o abuso das riquezas, nem todos os detalhes que seguem estes, e que cada um pode facilmente suprir. Limitar-me-ei tão somente a relancear a vista pelo gênero humano colocado nessa nova ordem e coisas.
     Eis, pois, todas as nossas faculdades desenvolvidas, a memória e a imaginação em jogo, o amor-próprio interessado, a razão tornada ativa, e o espírito chegado quase ao termo da perfeição de que é suscetível. Eis todas as qualidades naturais postas em ação, o lugar e a sorte de cada homem estabelecidos, não somente sobre a quantidade dos bens e o poder de servir ou de prejudicar, mas sobre o espírito, a beleza, a força ou a habilidade, sobre o mérito ou os talentos; e, sendo essas qualidades as únicas que podiam atrair a consideração, logo foi preciso tê-las ou afetá-las. Foi preciso, para vantagem própria, mostrar-se diferente daquilo que se era de fato. Ser e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes; e, dessa distinção, surgiram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu cortejo. Por outro lado, de livre e independente que era o homem outrora, ei-lo, por uma multidão de novas necessidades, submetido, por assim dizer, a toda a natureza e, principalmente, a todos os seus semelhantes, dos quais se torna escravo em certo sentido, mesmo tornando-se seu senhor: rico, tem necessidade dos seus serviços, pobre, tem necessidade de seu auxílio; e a mediocridade não o põe em estado de passar sem eles. É preciso, pois, que procure sem cessar interessá-los por sua sorte, e fazer-lhes encontrar, de fato ou em aparência, o próprio proveito em trabalhar para o dele: isso o torna velhaco e artificioso com uns, imperioso e duro com outros, e o põe na necessidade de abusar de todos aqueles de que precisa, quando não pode se fazer temer, e quando não é do seu interesse servi-los utilmente. Enfim, a ambição devoradora, o ardor de fazer fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do que para se colocar acima dos outros, inspira a todos os homens uma negra tendência a se prejudicarem mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para dar o golpe com mais segurança, toma muitas vezes a máscara de benevolência; em uma palavra, concorrência e rivalidade de uma parte, e, de outra, oposição de interesses, e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem: todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente.
     Antes de terem sido inventados os sinais representativos da riqueza, estas só podiam consistir em terras e em animais, os únicos bens reais que os homens poderiam possuir. Ora, quando as herdades foram crescendo em número e em extensão, a ponto de cobrirem o solo inteiro e se tocarem todas, umas não puderam mais crescer senão à custa de outras, e os extranumerários, que a fraqueza ou a indolência tinham impedido de adquiri-las por sua vez, tornados pobres sem ter perdido nada, porque, tudo mudando em torno deles, só eles não tinham mudado, foram obrigados a receber ou a roubar a subsistência das mãos dos ricos; e, daí, começaram a nascer, segundo os diversos caracteres de uns e de outros, a dominação e a servidão, ou a violência e as rapinas. Os ricos, por seu turno, mal conheceram o prazer de dominar, desdenharam em breve todos os outros, e, servindo-se dos seus antigos escravos para submeter novos, não pensaram senão em subjugar e escravizar os vizinhos, como lobos esfaimados que, tendo experimentado a carne humana, desdenham qualquer outra nutrição e não querem mais devorar senão homens. Foi assim que os mais poderosos ou os mais miseráveis, fazendo de suas forças ou de suas necessidades uma espécie de direito ao bem de outrem, equivalente, segundo eles, ao da propriedade, a igualdade rompida foi seguida da mais horrível desordem; e assim que as usurpações dos ricos, os assaltos dos pobres, as paixões desenfreadas de todos, sufocando a piedade natural e a voz ainda mais fraca da justiça, tornaram os homens avarentos, ambiciosos e maus. Levantava-se, entre o direito do mais forte e o direito do primeiro ocupante, um conflito perpétuo que só terminava por meio, de combates e morticínios (17). A sociedade nascente foi praça do mais horrível estado de guerra: o gênero humano, aviltado e desolado, não podendo mais voltar atrás, nem renunciar às infelizes aquisições já obtidas, e não trabalhando senão para a sua vergonha pelo abuso das faculdades que o honram, se colocou também na véspera de sua ruína.

 

Attonitus novitate mali, divesqve, miserque,
Effugere optat opes, et quoe modo voverat odit.


    
 Não é possível que os homens não tenham feito, enfim, reflexões sobre uma situação tão miserável e sobre as calamidades que os afligiam. Os ricos, principalmente, logo deviam sentir como lhes era desvantajosa uma guerra perpétua cujas despesas só eles faziam, e na qual o risco de vida era comum, assim como o dos bens particulares. Aliás, se alguma podiam dar às suas usurpações, sentiam bastante que não eram estabelecidas senão sobre um direito precário e abusivo, e que, só tendo sido adquiridas pela força, a força as podia tirar sem que tivessem razão de se lastimar. Aqueles mesmos que só a indústria havia enriquecido, não podiam fundar sua propriedade sobre melhores títulos. Bem podiam dizer: "Fui, eu quem construiu este muro; ganhei este terreno com o meu trabalho." - "E quem vos deu o material? - poder-se-ia responder-lhes - e em virtude de que pretendeis ser pagos à nossa custa por um trabalho que não vos impusemos? Ignorais que uma multidão de vossos irmãos perece ou sofre da necessidade daquilo que tendes demais, e que precisaríeis de um consentimento expresso e unânime do gênero humano para vos apropriardes de tudo que na subsistência comum vai além da vossa?" Destituído de razões válidas para se justificar e de forças suficientes para se defender; esmagando facilmente um particular, mas esmagado ele mesmo por tropas de bandidos; só contra todos, e não podendo, por causa das rivalidades mútuas, unir-se com seus iguais contra inimigos unidos pela esperança comum da pilhagem, o rico, premido pela necessidade, concebeu enfim, o projeto mais refletido que jamais entrara no espírito humano: o de empregar em seu favor as próprias forças daqueles que o atacavam, de tornar seus defensores os seus adversários, de lhes inspirar outras máximas e de lhes dar outras instituições que lhe fossem tão favoráveis quanto contrário lhe era o direito natural.
     Tendo isso em vista, depois de expor aos seus vizinhos o horror de uma situação que os armava a todos uns contra os outros, que lhes tornava as paixões tão onerosas quanto as suas necessidades, e na qual ninguém se sentia em segurança nem na pobreza nem na riqueza, inventou facilmente razões especiosas para os conduzir ao seu objetivo. "Unamo-nos, - lhes disse, - para livrar da opressão os fracos, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence: instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a se conformar, que não façam acepção de pessoas e que de certo modo reparem os caprichos da, fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos. Em uma palavra, em vez de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos governe segundo leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da associação, repila os inimigos comuns e nos mantenha em uma eterna concórdia."
     Foi preciso muito menos que o equivalente desse discurso para arrastar homens grosseiros, fáceis de seduzir, que aliás tinham muitos negócios que resolver entre si para poder passar sem árbitros, e muita avareza e ambição para poder passar muito tempo sem senhores. Todos correram para as suas cadeias de ferro, acreditando assegurar a própria liberdade; porque, com bastante razão para sentir as vantagens de um estabelecimento público, não tinham bastante experiência para prever os perigos que daí adviriam: os mais capazes de pressentir os abusos eram precisamente aqueles que contavam tirar partido deles. E os próprios sábios viram que era preciso se resolverem a sacrificar uma parte de sua liberdade para a conservação da outra, como um ferido deixa que lhe cortem um braço para salvar o resto do corpo.
     Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico (18), destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da desigualdade, de uma astuta usurpação fizeram um direito irrevogável, e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram para o futuro todo o gênero humano ao trabalho, à servidão e à miséria. Vê-se facilmente como o estabelecimento de uma única sociedade tornou indispensável o de todas as outras, e como, para fazer face a forças unidas, foi preciso se unir por sua vez. As sociedades, multiplicando-se ou estendendo-se rapidamente, cobriram logo toda a superfície da terra; e não mais foi possível encontrar um só canto do universo onde a gente pudesse livrar-se do jugo e subtrair a cabeça ao gládio muitas vezes mal conduzido que cada homem vê perpetuamente suspenso sobre a sua. Tendo o direito civil se tornado assim a regra comum dos cidadãos, a lei de natureza não vigorou mais senão entre as diversas sociedades, nas quais sob o nome de direito das gentes, foi moderada por algumas convenções tácitas para tornar o comércio possível e suprir a comiseração natural, que, perdendo de sociedade em sociedade quase toda a força que tinha de homem para homem, não reside mais senão nas grandes almas cosmopolitas que transpõem as barreiras imaginárias que separam os povos e que, a exemplo do Ser soberano que as criou, abraçam todo o gênero humano na sua benevolência.
     Os corpos políticos, ficando assim entre si no estado de natureza, ressentiram-se em breve dos inconvenientes que haviam forçado os particulares a deles saírem; e esse estado torna-se ainda mais funesto entre esses grandes corpos do que o era antes entre os indivíduos de que se compunham. Daí saíram as guerras nacionais, as batalhas, os assassínios, as represálias, que fazem estremecer a natureza e chocam a razão, e todos esses preconceitos horríveis que colocam na categoria das virtudes a honra de derramar o sangue humano. A gente mais honesta aprendeu a contar entre os seus deveres o de cortar o pescoço dos semelhantes: têm-se visto, enfim, os homens se massacrarem aos milhões sem saberem porque; e cometem-se mais assassínios em um só dia de combate e mais horrores na tomada de uma só cidade do que no estado de natureza, durante séculos inteiros, sobre toda a superfície da terra. Tais são os primeiros efeitos entrevistos na divisão do gênero humano em diferentes sociedades. Voltemos à sua instituição.
     Sei que alguns deram outras origens às sociedades políticas, como as conquistas do mais poderoso, ou a união dos fracos; e a escolha entre essas causas é indiferente ao que vou estabelecer: entretanto, a que acabo de expor me parece a mais natural pelas razões seguintes:
     1.° No primeiro caso, o direito de conquista, não sendo um direito, não pode fundar nenhum outro, os conquistadores e os povos conquistados ficando sempre entre si em estado de guerra, a menos que a nação, restabelecida a sua liberdade, escolha voluntariamente seu vencedor como chefe: até lá, algumas capitulações que tenham sido feitas, como só foram fundadas sobre a violência e, por conseguinte, são nulas por esse mesmo fato, não pode haver, nessa hipótese, nem verdadeira sociedade, nem corpo político, nem outra lei senão a do mais forte.
     2.° As palavras forte e fraco são equívocas no segundo caso; no intervalo que se acha entre o estabelecimento do direito de propriedade ou de primeiro ocupante e o dos governos políticos, o sentido desses termos é mais bem traduzido pelas palavras pobre e rico, porque, com efeito, um homem não tinha, antes das leis, outro meio de sujeitar seus iguais senão assaltando seus bens, ou lhe dando uma parte do seu.
     3.° Os pobres nada tendo que perder senão a sua liberdade, seria grande loucura que eles deixassem tirar voluntariamente o único bem que lhes restava, para nada ganhar em troca; ao contrário, os ricos, por assim dizer, sensíveis em todas as partes dos seus bens, era muito mais fácil lhes fazer mal; por conseguinte, tinham mais precauções que tomar para se garantirem; e, enfim, é razoável acreditar que uma coisa devia ter sido inventada por aqueles a quem é útil, mais do que por aqueles a quem devia prejudicar.
     O governo nascente não teve uma forma constante e regular. A falta de filosofia e de experiência não deixava perceber senão os inconvenientes presentes; e ninguém pensava em remediar os outros senão à medida que se apresentavam. Apesar de todos os trabalhos dos mais sábios legisladores, o estado político conservou-se sempre imperfeito, porque era quase obra do acaso, e porque, mal começado, o tempo, descobrindo os defeitos e sugerindo remédios, jamais pode reparar os vícios da constituição: remendava-se sem cessar, quando teria sido preciso começar por limpar a área e pôr de lado todos os velhos materiais, como fez Licurgo em Esparta, para depois levantar um belo edifício. A sociedade, primeiro, consistia apenas em algumas convenções gerais que todos os particulares se comprometiam a observar, sendo comunidade responsável em relação a cada um deles. Foi preciso que a experiência mostrasse quanto era fraca semelhante constituição e quanto era fácil aos infratores evitar a convicção ou o castigo das faltas de que só o público devia ser testemunha e juiz; foi preciso que a lei tivesse sido frustrada de mil maneiras, que os inconvenientes e as desordens se multiplicassem continuamente, para que se pensasse, enfim, em confiar a particulares o perigoso depósito da autoridade pública, e que se cometesse a magistrados o cuidado de fazer observar as deliberações do povo; porque dizer que os chefes foram escolhidos antes que a confederação fosse feita, e que os ministros das leis existiram antes das próprias leis, é uma suposição que não é permitido combater seriamente.
     Não seria mais razoável acreditar que os povos, primeiro, se atiraram nos braços de um senhor absoluto, sem condições e sem remédio, e que o primeiro meio de prover à segurança comum, imaginado por homens altivos e indomáveis, foi precipitar-se na escravidão. Efetivamente, porque deram a si mesmos superiores, se não foi para os defender contra a opressão e proteger os seus bens, as suas liberdades e as suas vidas, que são, por assim dizer, os elementos constitutivos de seu ser? Ora, nas relações de homem para homem, o pior que pode acontecer a um que se vê à discrição do outro não consiste em se colocar contra o bom senso de começar por se despojar, pondo nas mãos de um chefe as únicas coisas para cuja conservação tinham eles necessidade do seu socorro? Que equivalente podia ele oferecer-lhes pela concessão de tão belo direito? e, se ousou exigi-lo, sob o pretexto de o defender, não receberia logo a resposta do apólogo: "Que mais nos fará ainda o inimigo?" É, pois, incontestável, e é a máxima fundamental de todo o direito político, que os povos deram a si mesmos chefes para defender sua liberdade e não para os sujeitar. Se temos um príncipe, - dizia Plínio a Trajano, -. é para nos preservar de ter um senhor.
     Os políticos fazem sobre o amor à liberdade os mesmos sofismas que os filósofos fizeram sobre o estado de natureza: pelas coisas que vêem, julgam coisas muito diferentes que não viram; e atribuem aos homens uma tendência natural à servidão, pela paciência com a qual aqueles que têm sob os seus olhos suportam a sua; sem pensar que com a liberdade acontece o mesmo que com a inocência e a virtude, cujo preço só se sabe quando as gozamos nós mesmos, e cujo gosto se perde logo que as perdemos. "Conheço as delícias do teu país, dizia Brasidas a um sátrapa que comparava a vida de Esparta à de Persépolis; mas, não podes conhecer os prazeres do meu."
     Como um corcel indômito, que eriça as crinas, escarva o chão, e se debate impetuosamente à simples aproximação do freio, ao passo que um cavalo domesticado sofre pacientemente o chicote e a espora, o homem bárbaro não dobra a cabeça ao jugo que o homem civilizado suporta sem murmurar, e prefere a mais tempestuosa liberdade a uma submissão tranqüila. Assim, pois, não é pelo aviltamento dos povos subjugados que devemos julgar as disposições naturais do homem pró ou contra a servidão, mas pelos prodígios que fizeram todos os povos livres para se livrarem da opressão. Sei que os primeiros não fazem senão gabar sem cessar a paz e o repouso de que gozam nos seus ferros, e que miserrimam servitutem pacem appellant: mas, quando vejo os outros sacrificar os prazeres, o repouso, a riqueza, o poder e a própria vida à conservação do único bem tão desdenhado por aqueles que o perderam; quando vejo animais nascidos livres, e abominando o cativeiro, quebrar a cabeça contra as grades da prisão; quando vejo multidões de selvagens completamente nus desprezar as voluptuosidades européias, e arrostar a fome, o fogo, o ferro e a morte, para não conservar senão a sua independência, sinto que não compete a escravos raciocinar sobre a liberdade.
     Quanto à autoridade paternal, de que muitos fizeram derivar o governo absoluto e toda a sociedade, sem recorrer às provas contrárias de Locke .e de Sidney, basta notar que nada no mundo está mais afastado do espírito feroz do despotismo do que a doçura dessa autoridade, que considera mais a vantagem daquele que obedece do que a utilidade do que comanda; que, pela lei de natureza, o pai não é o senhor do filho senão enquanto o seu auxilio lhe é necessário; que, passando esse termo, tornam-se iguais, e, então, o filho, perfeitamente independente do pai, só lhe deve respeito e não obediência. Porque o reconhecimento é bem um dever que é preciso cumprir, mas não um direito que se possa exigir. Em vez de dizer que a sociedade civil deriva do poder paternal, é preciso dizer, ao contrário, que é dela que esse poder tira a sua principa1 força. Um indivíduo não foi reconhecido pelo pai de muitos senão quando permaneceram reunidos em torno dele. Os bens do pai, dos quais é verdadeiramente o senhor, são os laços que retêm os filhos na sua dependência, e ele pode não lhes dar parte na sucessão senão à proporção que dele merecerem por uma contínua deferência às suas vontades. Ora, longe dos súditos esperarem qualquer favor semelhante do seu déspota, como lhe pertencem, eles e tudo quanto possuem, ou pelo menos assim ele o pretende, são reduzidos a receber como favor o que lhes deixa do seu próprio bem: faz justiça quando os despoja, e mercê quando os deixa viver.
     Continuando a examinar assim os fatos pelo direito, não se encontraria mais solidez do que verdade no estabelecimento voluntário da tirania, e seria difícil mostrar a validade de um contrato que não obrigasse senão uma das partes, onde tudo fosse posto de um lado e nada do outro, e que não se transformasse em prejuízo daquele que se obriga. Esse sistema odioso está bem longe, de ser, mesmo hoje, o dos sábios e bons monarcas, e principalmente dos reis de França, como se pode ver em diversos parágrafos de seus editos e, em particular, na passagem seguinte de um escrito célebre publicado em 1667, em nome e por ordem de Luiz XIV: "Que não se diga que o soberano não está sujeito às leis do seu Estado, pois que a proposição contrária é uma verdade do direito das gentes, que a lisonja algumas vezes atacou, porém que os bons príncipes sempre defenderam como uma divindade tutelar dos seus Estados. Como é mais legítimo dizer, com o sábio Platão, que a perfeita felicidade de um reino consiste em que um príncipe seja obedecido por seus súditos, que o príncipe obedeça à lei, e que a lei seja reta e sempre dirigida para o bem público!" Não me deterei a investigar se, sendo a liberdade a mais nobre das faculdades do homem, não é degradar a sua natureza, pôr-se ao nível dos animais escravos do' instinto e ofender mesmo o autor do seu ser, renunciar sem reserva ao mais precioso de todos os seus dons, submeter-se a cometer todos os crimes que nos são proibidos por ele, para comprazer a um senhor feroz ou insensato, e se esse operário sublime deve ficar mais irritado de ver destruir do que desonrar a sua mais bela obra. Esquecerei mesmo, se se quiser, a autoridade de Barbeyrac, que declara nitidamente, conforme Locke, que ninguém pode vender sua liberdade até se submeter a um poder arbitrário que o trate segundo a sua fantasia: Porque, acrescenta ele, seria vender a própria vida, da qual não se é o dono. Perguntarei somente com que direito aqueles que não temem aviltar-se a tal ponto podem submeter sua posteridade à mesma ignomínia e renunciar por ela a bens que não dependem da sua liberalidade, e sem os quais a vida mesma é onerosa para todos os que dela são dignos.
     Pufendorff diz que, da mesma maneira por que se transferem seus bens a outrem por meio de convenções e contratos, pode-se também se despojar de sua liberdade em favor de alguém. Aí está, me parece, um péssimo raciocínio: porque, primeiramente, o bem que alieno torna-se-me coisa inteiramente estranha, e cujo abuso me é indiferente; mas, importa a mim que não se abuse da minha liberdade, e não posso, sem me tornar culpado do mal que me forçarem a fazer, expor-me a me tornar instrumento do crime. De resto, não passando o direito de propriedade de convenção e instituição humana, todo homem pode à vontade dispor do que possui: mas não acontece o mesmo com os dons essenciais da natureza, tais como a vida e a liberdade, que é permitido a cada um gozar e que pelo menos é duvidoso que se tenha o direito de se despojar: perdendo-se uma, degrada-se o ser; perdendo-se a outra, aniquila-se tanto quanto existe em si: e, como nenhum bem temporário pode compensar uma e outra, seria ofender ao mesmo tempo a natureza e a razão renunciar a isso, por qualquer preço que fosse. Mas, mesmo que pudéssemos alienar nossos bens e nossa liberdade, a diferença seria muito grande para os filhos, que não gozassem dos bens do pai senão pela transmissão do seu direito. Sendo a liberdade, ao contrário, um dom que recebem da natureza na qualidade de homens, seus pais nenhum direito têm de os despojar. De sorte que, como para estabelecer a escravidão foi preciso fazer violência à natureza, também foi preciso mudá-la para perpetuar esse direito: e os jurisconsultos que pronunciaram gravemente que o filho de um escravo nasceria escravo decidiram, em outros termos, que um homem não nasceria homem.,
     Parece-me certo, pois, que não somente os governos não começaram pelo poder arbitrário, que não é senão a sua corrupção, o termo extremo, e que finalmente os conduz exclusivamente à lei do mais forte, de que foram, primeiro, o remédio; mas ainda que, mesmo que tivessem começado por aí, esse poder, sendo por natureza ilegítimo, não pode servir de fundamento aos direitos da sociedade e nem, por conseguinte, à desigualdade de instituição.
     Sem entrar, hoje, nas pesquisas que ainda estão por fazer, sobre a natureza do pacto fundamental de todo governo, limito-me, seguindo a opinião comum, a considerar aqui o estabelecimento do corpo político como um verdadeiro contrato entre o povo e os chefes que ele escolhe; contrato pelo qual as duas partes se obrigam à observância das leis nele estipuladas e que formam os laços da sua união. Tendo o povo, relativamente às relações sociais, reunido todas as suas vontades em uma só, todos os artigos sobre os quais essa vontade se explica se tornam outras tantas leis fundamentais que obrigam todos os membros do Estado sem exceção, e uma das quais regula e escolhe o poder dos magistrados encarregados de velar pela execução das outras. Esse poder se estende a tudo o que pode manter a constituição, sem ir ao ponto de mudá-la. Acrescentam-se a isso honras que tornam respeitáveis as leis e os seus ministros, e, para estes pessoalmente, prerrogativas que os compensam dos penosos trabalhos. que custa uma boa administração. O magistrado de seu lado, se obriga a não usar do poder que lhe é confiado senão segundo a intenção dos comitentes, a manter cada um no gozo pacífico do que lhe pertence, e a preferir em toda ocasião a utilidade pública ao seu interesse próprio.
    
 Antes que a experiência mostrasse, ou que o conhecimento do coração humano tivesse feito prever os abusos inevitáveis de uma tal constituição, ela devia parecer tanto melhor quanto dos que estavam encarregados de velar pela sua conservação eram eles próprios os mais interessados: porque a magistratura e seus direitos, não sendo estabelecidos senão sobre as leis fundamentais, logo que fossem destruídas, os magistrados cessariam de ser legítimos, o povo não estaria mais obrigado a lhes obedecer; e, como não teria sido o magistrado, mas a lei, que teria constituído a essência do Estado, cada um entraria novamente de direito na sua liberdade natural.
     Por pouco que se tenha refletido atentamente, isso se confirmaria por novas razões; e, pela natureza do contrato, se veria que não poderia ser irrevogável; porque, se não havia poder superior que pudesse ser fiador da fidelidade dos contratantes, nem forçá-los a cumprir seus compromissos recíprocos, as partes seriam os únicos juizes na sua própria causa, e cada uma teria sempre o direito de renunciar ao contrato logo que percebesse que o outro transgredia as condições, ou quando essas condições cessassem de lhe convir. É sobre esse princípio que parece que o direito de abdicar pode ser fundado. Ora, a não considerar, como fazemos, senão a instituição humana, se o magistrado, que tem todo o poder nas mãos e que se apropria de todas as vantagens do contrato, tivesse contudo o direito de renunciar à autoridade, com mais forte razão o povo, que paga todos os erros dos chefes, deveria ter o direito de renunciar à dependência. Mas, as dissenções horríveis, as desordens infinitas, que necessariamente acarretaria esse perigoso poder, mostram, mais do que qualquer outra coisa, como os governos humanos tinham necessidade de uma base mais sólida do que a simples razão, e como era necessário ao repouso público que a vontade divina interviesse para dar à autoridade soberana um caráter sagrado e inviolável, que tirasse aos súditos o funesto direito de dispor dela. Quando a religião só tivesse feito esse bem aos homens, seria isso o bastante para que todos a quisessem e adotassem, mesmo com seus abusos, pois que ela poupa ainda mais sangue do que o fanatismo o faz correr. Mas, sigamos o fio de nossa hipótese.
     As diversas formas de governo tiram a sua origem das diferenças mais ou menos grandes que se encontraram entre os particulares no momento da instituição. Um homem era eminente em poder, em virtude, em riqueza, em crédito; só ele foi eleito magistrado, e o Estado se torna monárquico. Se muitos, mais ou menos iguais entre si, superavam todos os outros, eram eleitos conjuntamente, e se teve uma aristocracia. Aqueles cuja fortuna ou talentos eram menos desproporcionados, e que menos se tinham afastado do estado de natureza, guardaram em comum a administração suprema, e formaram uma democracia. O tempo verificou qual dessas formas era mais vantajosa para os homens. Uns ficaram unicamente submetidos às leis, os outros logo obedeceram a senhores. Os cidadãos quiseram conservar sua liberdade; os súditos não pensaram senão em tirá-la dos vizinhos, não podendo suportar que outros gozassem de um bem de que eles próprios não gozavam. Em uma palavra, de um lado foram as riquezas e as conquistas, e do outro, a felicidade e a virtude.
     Nesses diversos governos, todas as magistraturas foram primeiro eletivas; e, quando a riqueza não prevalecia, a preferência era concedida ao mérito que dá um ascendente natural, e à unidade, que dá a experiência nos negócios e o sangue-frio nas deliberações. Os antigos dos hebreus, os gerontes de Esparta, o senado de Roma, e a própria etimologia da nossa palavra senhor, mostram como outrora a velhice era respeitada. Quanto mais as eleições recaíam sobre homens avançados em idade, tanto mais se tornavam freqüentes e mais os seus embaraços se faziam sentir: as intrigas se introduziram, as facções se formaram, os partidos se acirraram, as guerras civis se atiçaram, enfim o sangue dos cidadãos foi sacrificado à pretensa felicidade do Estado, e esteve-se ,a ponto de cair na desordem dos tempos anteriores. A ambição dos principais aproveitou-se das circunstâncias para perpetuar seus cargos nas suas famílias; o povo, já acostumado à dependência, ao repouso, e às comodidades da vida, e já incapaz de poder quebrar os ferros, consentiu em deixar aumentar sua servidão para firmar sua tranqüilidade: e foi assim que os chefes, tornados hereditários, acostumaram-se a olhar sua magistratura como um bem de família; a se olharem eles mesmos como os proprietários do Estado, do qual, a princípio, eram apenas oficiais; a considerar seus concidadãos como seus escravos; a contá-los, como gado, no número das coisas que lhes pertenciam; e a se considerarem eles próprios iguais aos deuses e reis dos reis.
     Se seguirmos o progresso da desigualdade nessas diferentes revoluções, veremos que o estabelecimento da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro termo, a instituição da magistratura o segundo, e que o terceiro e último foi a mudança do poder legítimo em poder arbitrário. De sorte que a condição de rico e de pobre foi autorizada pela primeira época, a de poderoso e de fraco pela segunda, "e pela terceira a de senhor e de escravo, que é o último grau de desigualdade, o termo ao qual chegam finalmente todos os outros, até que novas revoluções dissolvem completamente o governo, ou o aproximam da instituição legítima.
     Para compreender a necessidade desse progresso, é preciso considerar menos os motivos do estabelecimento do corpo político do que a forma que toma na sua execução e os inconvenientes que acarreta; porque os vícios que tornam necessárias as instituições sociais são os mesmos que tornam o seu abuso inevitável: e como, excetuada unicamente Esparta, em que a lei velava principalmente pela educação das crianças e em que Licurgo estabeleceu costumes que o dispensavam quase de lhes acrescentar leis, as leis, em geral menos fortes do que as paixões, contêm os homens sem os mudar, seria fácil provar que todo governo que, sem se corromper nem se alterar, marchasse sempre exatamente segundo o fim de sua instituição, teria sido instituído sem necessidade, e que um país no qual ninguém frustrasse as leis e não abusasse da magistratura não teria necessidade nem de magistrados nem de leis.
     As distinções políticas conduzem necessariamente às distinções civis. A desigualdade crescente entre o povo e seus chefes fez-se logo sentir entre os particulares, entre eles se modificando de mil maneiras, segundo as paixões, os talentos e as ocorrências. O magistrado não poderia usurpar um poder ilegítimo sem o auxílio de criaturas às quais é forçado a ceder alguma parte. Aliás, os cidadãos só se deixam oprimir na medida em que são arrastados por uma cega ambição e, olhando mais abaixo do que acima deles, a dominação torna-se-lhes mais cara do que a independência, e em que consentem em carregar cadeias para poder distribuí-las por sua vez. É muito difícil reduzir à obediência aquele que não procura mandar, e o político mais hábil não conseguiria sujeitar homens que só quisessem ser livres, Mas, a desigualdade se estende sem dificuldade entre as almas ambiciosas e covardes, sempre prontas a correr os riscos da fortuna e a dominar ou servir quase indiferentemente, conforme ela se lhes torne favorável ou contrária. É assim que deve ter havido um tempo em que os olhos do povo foram fascinados a tal ponto que os seus condutores só tinham que dizer ao mais pequeno dos homens: "Sê grande, tu e toda a tua raça". E logo ele parecia grande a toda a gente como aos seus próprios olhos, e os seus descendentes se elevavam ainda à medida que dele se afastavam: quanto mais remota e incerta era a causa, tanto mais aumentava o efeito; quanto mais se podiam contar os vadios em uma família, tanto mais se tornava, ilustre.
     Se aqui coubessem detalhes, eu explicaria facilmente como, mesmo que o governo não se envolva nisso, a desigualdade de crédito e de autoridade se torna inevitável entre os particulares (19), logo que, reunidos em uma mesma sociedade, são forçados a se comparar entre si e a ter em conta as diferenças encontradas no uso contínuo que fazem uns dos outros. Essas diferenças são de muitas espécies. Mas, em geral, a riqueza, a nobreza ou a posição, o poder e o mérito pessoal, sendo as principais distinções pelas quais as pessoas se medem nas sociedades, eu provaria que o acordo ou o conflito dessas forças diversas é a indicação mais segura de um Estado bem ou mal constituído: faria ver que, entre essas quatro espécies de desigualdade, sendo as qualidades pessoais a origem de todas as outras, a riqueza é a última à qual se reduzem por fim, porque, sendo a mais imediatamente útil ao bem estar e a mais fácil de comunicar, dela se servem fácilmente para comprar todo o resto. Essa observação pode fazer julgar bastante exatamente da medida da qual cada povo se afastou de sua instituição primitiva e do caminho que fez para o termo extremo da corrupção. Observaria quanto esse desejo universal de reputação, de honras e de preferências que a todos nos devora, exerce e compara os talentos e as forças; quanto excita e multiplica as paixões; e quanto, tornando todos os homens concorrentes, rivais, ou antes, inimigos, causa diariamente reveses, sucessos e catástrofes de toda espécie, fazendo tantos pretendentes correr a mesma liça. Mostraria que é a esse ardor de fazer falar de si, a esse furor de se distinguir que nos coloca quase sempre fora de nós mesmos, que devemos o que há de melhor e de pior entre os homens, as nossas virtudes e os nossos vícios, as nossas ciências e nossos erros, os nossos conquistadores e os nossos filósofos, isto é, uma multidão de más coisas sobre um pequeno número de boas. Provaria, finalmente, que, se vemos um punhado de poderosos e de ricos no pináculo das grandezas e da fortuna, enquanto a multidão rasteja na obscuridade e na miséria, é porque os primeiros só estimam as coisas de que gozam na medida em que os outros delas são privados, porque, sem mudar de estado, cessariam de ser felizes se o povo cessasse de ser miserável.
     Mas, esses detalhes constituiriam, por si, matéria de uma obra considerável, na qual se pesariam as vantagens e os inconvenientes de todo governo, relativamente aos direitos do estado de natureza, e na qual se desvendariam todas as faces diferentes sob as quais a desigualdade se mostrou até ao dia de hoje e poderá mostrar, nos séculos futuros, segundo a natureza desses governos e as revoluções que o tempo trará necessariamente. Ver-se-ia a multidão oprimida, internamente, em virtude das próprias precauções tomadas contra o que a ameaçava no exterior; ver-se-ia a opressão crescer continuamente, sem que os oprimidos pudessem jamais saber que termo teria, nem que meios legítimos lhes restariam para contê-la; ver-se-iam os direitos dos cidadãos e as liberdades nacionais se extinguirem pouco a pouco, e as reclamações dos fracos serem consideradas como murmúrios sediciosos; ver-se-ia a política restringir a uma porção mercenária do povo a honra de defender a causa comum; ver-se-ia surgir daí a necessidade dos impostos, o lavrador desanimado abandonar o campo, mesmo durante a paz, e deixar a charrua para cingir a espada; ver-se-iam os defensores da pátria cedo ou tarde tornarem-se seus inimigos, segurando sem cessar o punhal levantado contra os seus concidadãos; e viria um tempo em que os ouviríamos dizer ao opressor de seu país:

 

Pectore si fratris gladium jugloque parentis
Condere me jubeas, gravidoeque in viscera partu
Conjugis, invita peragam tamen omnia dextra.
Lucan, lib. I, V. 376.


     
Da extrema desigualdade das condições e das fortunas, da diversidade das paixões e dos talentos, das artes inúteis, das artes perniciosas, das ciências frívolas, saíram multidões de preconceitos igualmente contrários à razão, à felicidade e à virtude: ver-se-ia fomentar pelos chefes tudo o que pode enfraquecer homens reunidos desunindo-os, tudo o que pode dar à sociedade um ar de concórdia aparente e nela semear um germe de divisão real, tudo o que pode inspirar às diferentes ordens uma desconfiança e um ódio mútuo pela oposição dos seus direitos e dos seus interesses, e fortificar, por conseguinte, o poder que os contém a todos. É do seio dessa desordem e dessas revoluções que o despotismo, levantando gradativamente a cabeça hedionda, e devorando tudo o que teria percebido de bom e de são em todas as partes do Estado, conseguiria finalmente calcar aos pés as leis e o povo, e se estabelecer sobre as ruínas da república. Os tempos que precederiam essa última mudança seriam tempos de perturbações e calamidades; mas, por fim, tudo seria engolido pelo monstro, e os povos não teriam mais chefes nem leis, porém tiranos exclusivamente. Desde esse instante, também não se trataria de costumes e virtudes: porquanto por toda parte onde reina, cui ex honesto nulla est spes, o despotismo não suporta nenhum outro senhor; desde que ele fala, não há probidade nem dever que consultar, e a mais cega obediência é a única virtude que resta aos escravos.
     Aqui está o último termo da desigualdade, e o ponto extremo que fecha o círculo e toca no ponto de onde partimos; é aqui que todos os particulares voltam a ser iguais, porque nada são, e os súditos não tendo mais outra lei senão a vontade do senhor, nem o senhor outra regra senão as suas paixões, as noções do bem e os princípios da justiça desaparecem de ora em diante; é aqui que tudo conduz exclusivamente à lei do mais forte, e, por conseguinte, a um novo estado de natureza diferente daquele pelo qual começamos, sendo que um era o estado de natureza na sua pureza, e este último é o fruto de um excesso de corrupção. Há tão pouca diferença, aliás, entre esses dois estados, e o contrato de governo é de tal modo dissolvido pelo despotismo, que o déspota não é senhor senão durante o tempo em que é o mais forte; e, logo que o podem expulsar, não tem que reclamar contra a violência. A sublevação que acaba por estrangular ou destronar um sultão é um ato tão jurídico como aqueles pelos quais ele dispunha, na véspera, das vidas e dos bens dos súditos. Só a força o mantinha, só a força o derruba; todas as coisas se passam assim, segundo a ordem natural; e, qualquer que possa ser o advento dessas curtas e freqüentes revoluções, ninguém se pode queixar das injustiças de outrem, mas somente da sua própria imprudência ou da sua desgraça.
     Descobrindo e seguindo assim as estradas esquecidas e perdidas que do estado natural deviam ter conduzido o homem ao estado civil; restabelecendo, com as posições intermediárias que acabo de notar, as que o tempo limitado me faz suprimir, ou que a imaginação me não sugeriu, todo leitor atento deverá ficar impressionado com a distância imensa que separa esses dois estados. É nessa lenta sucessão das coisas que verá a solução de uma infinidade de problemas de moral e de política que os filósofos não podem resolver. Sentirá que o gênero humano de uma idade, não sendo o gênero humano de outra idade, a razão por que Diógenes não encontrava um homem, é que ele procurava entre os seus contemporâneos o homem de um tempo que não existia mais. Catão, dirá ele, pereceu com Roma e a liberdade porque esteve deslocado no seu século, e o maior dos homens não fez senão assombrar o mundo que ele tivesse governado quinhentos anos mais cedo. Em uma palavra, explicará como a alma e as paixões humanas, alterando-se insensivelmente, mudam por assim dizer de natureza; porque as nossas necessidades e os nossos prazeres mudam de objeto com o tempo; porque, o homem original desvanecendo-se gradativamente, a sociedade não mais oferece aos olhos do sábio senão um ajuntamento de homens artificiais e de paixões factícias que são obra de todas essas novas relações, e não têm nenhum verdadeiro fundamento na natureza. O que a reflexão nos ensina sobre isso, a observação o confirma perfeitamente: o homem selvagem e o homem policiado diferem de tal modo no fundo do coração e nas inclinações, que o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao desespero. O primeiro só respira o repouso e a liberdade; só quer viver e ficar ocioso, e a própria ataraxia do estóico não se aproxima da sua indiferença profunda por qualquer outro objeto. Ao contrário, o cidadão, sempre ativo, sua, agita-se, atormenta-se sem cessar para buscar ocupações ainda mais laboriosas; trabalha até à morte, corre mesmo em sua direção para se pôr em estado de viver, ou renuncia à vida para adquirir a imortalidade; faz a corte aos grandes que odeia e aos ricos que despreza; nada poupa para obter a honra de o servir; gaba-se orgulhosamente de sua baixeza e de sua proteção; e, vaidoso de sua escravidão, fala com desdém daqueles que não têm a honra de a partilhar. Que espetáculo para um caraiba os trabalhos penosos e invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não prefereria esse selvagem indolente ao horror de vida semelhante, que muitas vezes nem mesmo é compensada pelo prazer de fazer o bem! Mas, para ver o fim de tantos cuidados, seria preciso que as palavras poder e reputação tivessem um sentido em seu espírito; que aprendesse que há uma espécie de homens que contam para alguma coisa com os olhares do resto do universo, que sabem ser felizes e contentes consigo mesmos com o testemunho de outrem mais do que com o seu próprio. Tal é, com efeito, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de si, não sabe viver senão na opinião dos outros, e é, por assim dizer, exclusivamente do seu julgamento que tira o sentimento de sua própria existência. Escapa ao meu tema mostrar como de tal disposição nasce tanta indiferença pelo bem e o mal, com tão belos discursos de moral; como, reduzindo-se tudo às aparências, tudo se torna factício e representado, honra, amizade, virtude, e muitas vezes até os próprios vícios, cujo segredo de se glorificar finalmente se encontra; como, em uma palavra, perguntando sempre aos outros o que somos, e não ousando jamais interrogar-nos sobre isso nós mesmos, no meio de tanta filosofia, humanidade, polidez, máximas sublimes, não temos senão um exterior enganador e frívolo, honra, sem virtude, razão sem sabedoria, e prazer sem felicidade. Basta-me ter provado que esse não é o estado original do homem, e que só o espírito da sociedade e a desigualdade que ela engendra modificam e alteram, assim, todas as nossas inclinações naturais.
     Tratei de expor a origem e o progresso da desigualdade, o estabelecimento e o abuso das sociedades políticas, tanto quanto essas coisas se podem deduzir da natureza do homem pelas luzes exclusivas da razão, e independentemente dos dogmas sagrados que dão à autoridade soberana a sanção do direito divino. Resulta do exposto que a desigualdade, sendo quase nula no estado de natureza, tira a sua força e o seu crescimento do desenvolvimento das nossas faculdades e dos progressos do espírito humano, tornando-se enfim estável e legítima pelo estabelecimento da propriedade e das leis. Resulta ainda que a desigualdade moral, autorizada unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural todas as vezes que não concorre na mesma proporção com a desigualdade física. Essa distinção determina suficientemente o que se deve pensar, nesse sentido, da espécie de desigualdade que reina entre todos os povos policiados, pois é manifestamente contra a lei de natureza, de qualquer maneira que a definamos, que uma criança mande num velho, que um imbecil conduza um homem sábio, ou que um punhado de pessoas nade no supérfluo, enquanto à multidão esfomeada falta o necessário.
 

ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS
     
Acrescentei algumas notas a esta obra, segundo o meu costume preguiçoso de trabalhar com interrupções. Essas notas, às vezes, se afastam muito do assunto, para que devam ser lidas com o texto. Transportei-as, pois, para o fim do Discurso, no qual procurei seguir, tanto quanto me foi possível, o caminho mais acertado. Os que tiverem coragem de recomeçar poderão divertir-se novamente embrenhando-se na mata e tentando percorrer as notas: quanto aos outros, pouco mal haverá em que de todo não as leiam.
 

NOTAS
     
(1). - Dedicatória. - Conta Heródoto que, após o assassínio do falso Esmerdis, os sete libertadores da Pérsia, estando reunidos para deliberar sobre a forma do governo que dariam ao Estado, Otanés opina fortemente pela república. Essa opinião era tanto mais extraordinária na boca de um sátrapa quanto, além da pretensão que ele podia ter ao império, os grandes temem mais do que a morte uma espécie de governo que os force a respeitar os homens. Otanés, como bem se pode crer, não foi ouvido; e, vendo que se ia proceder à eleição de um monarca, ele, que não queria obedecer nem mandar, cedeu voluntariamente aos outros concorrentes o seu direito à coroa, pedindo como única indenização que fosse livre e independente com sua posteridade, o que lhe foi concedido. Quando Heródoto não nos dissesse qual a restrição feita a esse privilégio, seria necessário supô-la. Do contrário, Otanés não reconhecendo nenhuma espécie de lei e não tendo que prestar contas a ninguém, teria sido poderoso no Estado e mais poderoso do que o próprio rei. Mas, não havia aparência de que um homem capaz de se contentar, em semelhante caso, com tal privilégio, fosse capaz de abusar dele. Com efeito, não se vê que esse direito tenha causado jamais a menor perturbação no reino, nem pelo sábio Otanés, nem por nenhum dos seus descendentes.
     (2). - Prefácio. - Desde os meus primeiros passos, eu me apoio, confiante, em uma dessas autoridades respeitáveis para os filósofos, porque elas vêm de uma razão sólida e sublime que só eles sabem encontrar e sentir.
     "Algum interesse que tenhamos em nos conhecer a nós mesmos, não sei se não conhecemos melhor tudo o que não somos. Providos pela natureza de órgãos unicamente destinados à nossa conservação, não os empregamos senão para receber as impressões estranhas: não procuramos senão nos expandir e existir fora do nós: demasiado ocupados em multiplicar as funções dos nossos sentidos e em aumentar a extensão exterior de nosso ser, raramente fazemos uso desse sentido interior que nos reduz às nossas verdadeiras dimensões, e que separa de nós tudo quanto não está em nós. Entretanto, desse sentido é que devemos servir-nos se queremos conhecer-nos; é o único pelo qual podemos julgar-nos. Mas, como dar a esse sentido sua atividade e toda a sua extensão? como desprender nossa alma, na qual ele reside, de todas as ilusões do nosso espírito? Perdemos o hábito de empregá-la, ficando ela sem exercício no meio do tumulto das nossas sensações corporais e consumindo-se pelo fogo das nossas paixões. O coração, o espírito, os. sentidos, tudo trabalhou contra ela." (HIST. NAT., Da Natureza do Homem.)
     (3). - Discurso. - As transformações que um longo hábito de caminhar sobre dois pés pode produzir na conformação do homem, as relações que ainda se observam entre os seus braços e as pernas anteriores dos quadrúpedes, e a indução tirada de sua maneira de andar, puderam fazer nascer dúvidas sobre .a que nos devia ser mais natural. Todas as crianças começam a andar de quatro pés e têm necessidade do nosso exemplo e das nossas lições para aprender a se manter de pé. Há mesmo nações selvagens, tais como os hotentotes, que descuidam muito das crianças o as deixam caminhar com as mãos tanto tempo que depois têm muita dificuldade em se levantar. Assim também acontece com os filhos dos caraibas, nas Antilhas. Há diversos exemplos de homens quadrúpedes, e eu poderia citar, entre outros, o da criança que foi encontrada em 1344, perto de Hesse, onde havia sido nutrida por lobos, e que dizia depois, na corte do príncipe Henrique, que, se não fosse este, teria preferido voltar para junto deles a viver entre os homens. Adquirira de tal modo o hábito de andar como esses animais que foi preciso lhe amarrarem peças de maneira que a forçassem a se manter de pé e equilibrando-se nos dois pés. Aconteceu o mesmo com a criança que foi encontrada em 1694 nas florestas da Lituânia, e que vivia entre ursos. Não dava, diz Condillac, nenhum sinal de razão, caminhava com pés e mãos, não possuía nenhuma linguagem e formava sons que em nada se assemelhavam aos do homem. O pequeno selvagem de Hanovre, que foi conduzido há muitos anos para a corte da Inglaterra, teve todos os sofrimentos do mundo ao se sujeitar a caminhar sobre os dois pés; e encontraram-se, em 1719, dois outros selvagens nos Pireneus, que corriam pelas montanhas à maneira de quadrúpedes. Quanto ao que se poderia objetar, que é privar-se do uso das mãos do que tiramos tantas vantagens, além do exemplo dos macacos que nos mostra que a mão pode muito bem ser empregada das duas maneiras, isso provaria somente que o homem pode dar a seus membros um destino mais cômodo do que o da natureza, e não que a natureza destinou o homem a andar de modo diferente do que ensina.
     Mas, há, ao que me parece, muito melhores razões para sustentar que o homem é um bípede. Primeiramente, quando alguém fizesse ver que ele podia primeiro ser conformado diferentemente do que o vemos e, entretanto, tornar-se finalmente o que é, isso não seria o bastante para se concluir que foi assim, porque, depois de haver mostrado a possibilidade dessas transformações, seria preciso ainda, antes de as admitir, mostrar ao menos a sua verossimilhança. De resto, se os braços do homem parecem ter podido servir-lhe de pernas quando necessário, é a única observação favorável a esse sistema, sobre um grande número de outras que lhe são contrárias. As principais são: que a maneira pela qual a cabeça do homem está ligada ao corpo, em vez de dirigir sua vista horizontalmente, como todos os outros animais e como ele mesmo caminhando de pé, teria, caminhando de quatro pés, os olhos diretamente fixados no chão, situação muito pouco favorável à conservação do indivíduo; que a cauda que lhe falta, e com a qual nada tem que fazer caminhando com dois pés, é útil aos quadrúpedes e nenhum deles é dela privado; que os seios da mulher, muito bem situados para um bípede, que carrega o filho nos braços, ficariam tão mal para um quadrúpede que nenhum os tem colocados dessa maneira; que a parte traseira, sendo de altura excessiva proporcionalmente às pernas da frente, o que faz que, caminhando de quatro pés, nos arrastemos sobre os joelhos, faria um animal mal proporcionado e caminhando pouco comodamente; que, se o homem pousasse os pés inteiramente como as mãos, teria nas pernas posteriores uma articulação menos do que os outros animais, a saber, a que une a cana à tíbia; e que, só pousando a ponta do pé, como sem dúvida seria constrangido a fazer, o tarso, sem falar da pluralidade dos ossos que o compõem, pareceria muito grosso para ficar no lugar da cana, e as suas articulações com o metatarso e a tíbia muito próximas para dar à perna humana, nessa situação, a mesma flexibilidade que têm as dos quadrúpedes. O exemplo das crianças, tomado numa idade em que as forças naturais ainda não estão desenvolvidas, nem os membros consolidados, nada conclui; eu gostaria também de dizer que os cães não estão destinados a caminhar, porque só se arrastam algumas semanas depois do nascimento. Os fatos particulares têm ainda pouca força contra a prática universal de todos os. homens, mesmo das nações que, não tendo tido nenhuma comunicação com as outras, nada tinham podido imitar delas. Uma criança abandonada em uma floresta antes do poder andar, e nutrida por qualquer animal, terá seguido o exemplo de sua nutriz, exercitando-se a caminhar do mesmo modo; o hábito lhe terá podido dar facilidades que não teve da natureza; e, assim como os manetas conseguem, à força de exercício, fazer com os pés tudo quanto fazemos com as mãos, ela conseguirá finalmente empregar as mãos em lugar dos pés.
     (4). - Se, entre os meus leitores houvesse um físico bastante mau para me criar dificuldades sobre a suposição dessa fertilidade natural da terra, eu lhe responderia com a passagem seguinte:
     "Como os vegetais tiram para a sua nutrição mais substâncias do ar e da água do que da terra, acontece que, apodrecendo, restituem à terra mais do que dela tiraram; aliás, uma floresta determina as águas da chuva detendo os vapores. Assim, em um bosque conservado muito tempo sem ser tocado, a camada de terra que serve para a vegetação aumentaria consideravelmente; mas, os animais, dando menos à terra do que tiram dela, e os homens, consumindo enorme quantidade de madeira e de plantas para o fogo e outros usos, resulta que a camada de terra vegetal de um país habitado deve sempre diminuir o tornar-se enfim como o terreno da Arábia Pétrea e como o de tantas províncias do Oriente, que é efetivamente o clima mais antigamente habitado, onde só se encontram sal e areia: porque o sal fixo das plantas e dos animais fica, ao passo que todas as outras partes se volatilizam." (HIST. NAT, Provas da Teoria da Terra, art. 7.).
     Pode-se acrescentar a isso a prova de fato pela quantidade de árvores e plantas de toda espécie de que estão cheias quase todas as ilhas desertas, descobertas nestes últimos séculos, e pelo que a história nos ensina das florestas imensas que foi preciso abater em toda a terra à medida que se povoou e foi policiada Sobre isso, farei ainda as três observações seguintes: a primeira é que, se há uma espécie de vegetais que possam compensar o desperdício de matéria vegetal que fazem os animais, segundo o raciocínio de Buffon, são principalmente os bosques, cujas copas e folhas reúnem e possuem mais águas e vapores do que as outras plantas; a segunda é que a destruição do solo, isto é, a perda da substância própria à vegetação, deve acelerar-se à proporção que a terra é mais cultivada, e que os habitantes mais industriosos consomem em maior abundância as suas produções de toda espécie; e a terceira e mais importante observação é que os frutos das árvores fornecem ao animal uma nutrição mais abundante do que os outros vegetais. A experiência foi feita por mim mesmo, ao comparar os produtos de dois terrenos iguais em grandeza e qualidade, um coberto de castanheiros e outro semeado de trigo.
     (5). - Entre os quadrúpedes, as duas distinções mais universais das espécies vorazes se tiram, uma da forma dos dentes; e a outra da conformação dos intestinos. Os animais que vivem exclusivamente de vegetais têm todos os dentes chatos, como o cavalo, o boi, o carneiro, a lebre; mas, os vorazes os têm pontudos, como o gato, o cão, o lobo, a raposa. E, quanto aos intestinos, os frugívoros têm alguns, assim como o cólon, que não se encontram nos animais vorazes. Parece, pois, que o homem, tendo os dentes e os intestinos como os têm os animais frugívoros, deveria naturalmente ser incluído nessa classe; e não somente as observações anatômicas confirmam essa opinião, mas os monumentos da antigüidade lhe são ainda mais favoráveis. "Dicearco, diz São Jerônimo, refere, nos seus livros das antigüidades gregas, que, sob o reino de Saturno, em que a terra era ainda fértil, por si mesma, nenhum homem comia carne, mas viviam todos de frutas e legumes que cresciam naturalmente." (Liv. II, adv. Jovinian.) Essa opinião pode apoiar-se ainda nas narrativas de muitos viajantes modernos. François Corréal testemunha, entre outros, que a maior parte dos habitantes das Lucaias, que os espanhóis transportaram para as ilhas de Cuba, de São Domingos e alhures, morreram por haver comido carne. Por aí se pode ver que negligencio muitas vantagens que poderia fazer valer. Porque, sendo a presa quase o único motivo de combate entre os animais carniceiros, e vivendo os frugívoros entre eles em uma paz contínua, se a espécie humana fosse deste último gênero, claro que teria tido muito mais facilidade de subsistir no estado do natureza, e muito menos necessidade e ocasião de sair dele.
     (6). - Todos os conhecimentos que pedem reflexão, todos os que só se adquirem com o encadeamento das idéias e só se aperfeiçoam sucessivamente, parecem estar inteiramente fora do alcance do homem selvagem, pela falta de comunicação com os seus semelhantes, isto é, por falta do instrumento que serve para essa comunicação e das necessidades que a tornam necessária. Seu saber e sua indústria se limitam a saltar, correr, bater-se, lançar uma pedra, subir em uma árvore. Mas, se só sabe essas coisas, em compensação as sabe muito melhor do que nós, que não temos a mesma necessidade dela que ele. E, como dependem unicamente do exercício do corpo, não sendo suscetíveis de nenhuma comunicação nem de nenhum progresso de um indivíduo para outro, o primeiro homem pode ser nisso tão hábil quanto os seus descendentes.
     As narrativas dos viajantes estão cheias de exemplos da força e do vigor dos homens nas nações bárbaras e selvagens; não gabam menos sua destreza e agilidade; e, como basta ter olhos para observar essas coisas, nada impede que nos mereça fé o que é certificado por testemunhas oculares. Tiro, ao acaso, alguns exemplos dos primeiros livros que me vêm às mãos.
     "Os hotentotes, diz Kolben, conhecem melhor a pesca do que os europeus do Cabo. Sua habilidade é igual na rede, no anzol e no dardo, nas enseadas como nos rios. Não apanham menos habilmente o peixe com a mão. São de destreza incomparável para nadar. Sua maneira de nadar tem qualquer coisa de surpreendente e que lhes é totalmente própria. Nadam com o corpo direito e as mãos estendidas para fora d'água, de sorte que parecem andar na terra. Na maior agitação do mar e quando as ondas formam montanhas, eles dançam de certo modo sobre o dorso das vagas, subindo e descendo como um pedaço de cortiça. "Os hotentotes, diz ainda, o mesmo autor, são de uma destreza surpreendente na caça, e a ligeireza de sua carreira ultrapassa a imaginação." Admira que não façam mais freqüentemente um mau uso de sua agilidade, o que contudo acontece algumas vezes, como se pode julgar pelo exemplo que dá.
     "Um marinheiro holandês, desembarcando no Cabo, encarregou, diz ele, um hotentote de o acompanhar à cidade com um rolo de tabaco de cerca de vinte libras. Quando os dois estavam a alguma distância da multidão, o hotentote perguntou ao marinheiro se ele sabia correr. "Correr? - responde o holandês, - sim, e muito bem.." - "Vejamos", respondeu o africano, e, fugindo, com o tabaco, desapareceu quase imediatamente. O marinheiro, confundido com essa maravilhosa rapidez, nem pensou em segui-lo, e nunca mais viu o tabaco nem o seu portador.
     Têm eles a vista tão pronta e a mão tão certa que os europeus nem se aproximam. A cem passos, acertam, com uma pedrada, num alvo do tamanho de meio soldo. E o que há de mais espantoso é que, em vez de fixar como nós os olhos no alvo, fazem movimentos e contorções contínuas. Parece que sua pedra é arremessada por uma. mão invisível."
     O padre Du Tertre diz, sobre os selvagens das Antilhas, mais ou menos as mesmas coisas que se acabam de ler sobre os hotentotes do Cabo da Boa Esperança. Exalta, sobretudo, a sua precisão em atirar com suas flechas em pássaros voando e em peixes na água, que agarram, em seguida, mergulhando. Os selvagens da América setentrional não são menos célebres pela força e destreza, e eis um exemplo que poderá servir para avaliar a dos índios da América meridional.
     No ano de 1746, um índio de Buenos Aires, tendo sido condenado às galés em Cádiz, propôs ao governo resgatar sua liberdade expondo a vida em uma festa pública. Prometeu que atacaria sozinho o mais furioso touro sem outra arma nas mãos além de uma corda, e que o derrubaria, o seguraria com a corda pela parte que fosse indicada, o selaria, por-lhe-ia freio, montaria nele e combateria, montado, dois outros touros dos mais furiosos tirados do touril, matá-los-ia um após outro no instante que isso lhe fosse ordenado e sem o auxílio de ninguém. Foi atendido. O índio cumpriu a palavra e saiu-se bem em tudo quanto havia prometido. sobre a maneira como se portou e detalhes do combate, pode-se consultar o primeiro tomo in-12 das Observações sobre a História Natural, de Gautier, de onde esse fato foi tirado, pag. 262.
     (7). - "A duração da vida dos cavalos, diz Buffon, é, como em todas as outras espécies de animais, proporcional à duração do tempo do seu crescimento. O homem, que leva catorze anos a crescer, pode viver seis ou sete vezes esse tempo, isto é, noventa ou cem anos, O cavalo, cujo crescimento se faz em quatro anos, pode viver seis ou sete vezes tanto, isto é, vinte e cinco ou trinta anos. Os exemplos que poderiam ser contrários a essa regra são tão raros que não devem mesmo ser olhados como exceção de onde se possam tirar conclusões; e, como os grandes cavalos crescem mais depressa do que os pequenos, vivem também menos tempo, e ficam velhos com quinze anos." (HISTÓRIA NATURAL, Do Cavalo.)
     (8). - Entre os animais carnívoros e os frugívoros, creio ver outra diferença ainda mais geral do que a que referi na nota 5, pois se estende também aos pássaros. Essa diferença consiste no número dos filhos, que não excede nunca de dois de cada vez para as espécies que não vivem senão de vegetais, e que ordinariamente ultrapassa esse número nos animais vorazes. É fácil conhecer, a esse respeito, o destino da natureza pelo número das maminhas, duas em cada fêmea da primeira espécie, como o jumento, a vaca, a cabra, a corça, a ovelha, etc., e que é sempre de seis ou de oito nas outras fêmeas, como a cadela, a gata, a loba, a onça, etc. A galinha, a gansa, a pata, que são todos animais vorazes, assim como a águia, o gavião, o mocho, põem também e chocam grande número de ovos, o que não acontece jamais com a pomba, a rola, nem com os pássaros que só comem grãos, os quais não põem nem chocam mais de dois ovos de cada vez. A razão que se pode dar a essa diferença é que os animais que só vivem de ervas e plantas estão quase o dia todo pastando, e, sendo forçados a empregar muito tempo a se nutrir, não dariam conta da nutrição dos seus filhotes, ao passo que os vorazes, fazendo seu repasto quase em um instante, podem mais facilmente e mais vezes ver os filhos e ir à caça, e reparar o gasto de uma grande quantidade de leite. A respeito de tudo isso, haveria muitas observações particulares e reflexões que fazer, mas não há aqui lugar para isso e me basta haver mostrado, nesta pequena parte, o sistema mais geral da natureza, sistema que fornece uma nova razão de tirar o homem da classe dos carnívoros e de o colocar entre as espécies frugívoras.
     (9). - Um autor célebre, calculando os bens e os males da vida humana, e comparando as duas somas, achou que a última ultrapassa muito a primeira, e que tomando o conjunto, a vida era para o homem um péssimo presente. Não fiquei surpreendido com a conclusão; ele tirou todos os seus raciocínios da constituição do homem civilizado. Se subisse até ao homem natural, pode-se julgar que encontraria resultados muito diferentes; porque perceberia que o homem só tem os males que se criou para si mesmo, o que à natureza se faria justiça. Não foi fácil chegarmos a ser tão desgraçados. Quando, de um lado, consideramos o imenso trabalho dos homens, tantas ciências profundas, tantas artes inventadas, tantas forças empregadas, abismos entulhados, montanhas arrasadas, rochedos quebrados, rios tornados navegáveis, terras arroteadas, lagos cavados, pantanais dissecados, construções enormes elevadas sobre a terra, o mar coberto de navios e marinheiros, e quando, olhando do outro lado, procuramos, meditando um pouco as verdadeiras vantagens que resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie humana, só podemos nos impressionar com a espantosa desproporção que reina entre essas coisas, e deplorar a cegueira do homem, que, para nutrir seu orgulho louco, não sei que vã admiração de si mesmo, o faz correr ardorosamente para todas as misérias de que é suscetível e que a benfazeja natureza havia tomado cuidado em afastar dele.
     Os homens são maus, uma triste e contínua experiência dispensa a prova; entretanto, o homem é naturalmente bom, creio havê-lo demonstrado. Que será, pois, que o pode ter depravado a esse ponto, senão as mudanças sobrevindas na sua constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Que se admire quanto se queira a sociedade humana, não será menos verdade que ela conduz necessariamente os homens a se odiar entre si à proporção do crescimento dos seus interesses, a se retribuir mutuamente serviços aparentes, e a se fazer efetivamente todos os males imagináveis. Que se pode pensar de um comércio em que a razão de cada particular lhe dita máximas diretamente contrárias àquelas que a razão pública prega ao corpo da sociedade, e em que cada um tira os seus lucros da desgraça do outro? Não há, talvez, um homem abastado ao qual os seus herdeiros ávidos, e muitas vezes seus próprios filhos, não desejem a morte, secretamente. Não há um navio no mar cujo naufrágio não constituísse uma boa notícia para algum negociante; uma só casa que um devedor de má fé não quisesse ver queimada com todos os documentos; um só povo que não se regozijasse com os desastres dos vizinhos. É assim que tiramos vantagens do prejuízo dos nossos semelhantes, e que a perda de um faz quase sempre a prosperidade do outro. Mas, o que há de mais perigoso ainda é que as calamidades públicas são a expectativa e a esperança de uma multidão de particulares: uns querem as moléstias, outros, a mortalidade; outros, a guerra; outros, a fome. Vi homens horrorizados chorando de dor ante as aparências de um ano fértil; e o grande e funesto incêndio de Londres, que custou a vida e os bens a tantos desgraçados, fez a fortuna de mais de dez mil pessoas.
     Sei que Montaigne lastima o ateniense Dêmades por ter feito punir um operário que, vendendo muito caro os caixões, ganhava muito com a morte dos cidadãos; mas, sendo a razão que Montaigne alega a de que seria preciso punir toda a gente, é evidente que confirma as minhas. Que se penetre, pois, através de nossas frívolas demonstrações de benevolência, no que se passa no fundo dos corações, e que se reflita no que deve ser um estado de coisas em que todos os homens são forçados a se acariciar e a se destruir mutuamente, e em que nascem inimigos por dever e velhacos por interesse. Se me respondem que a sociedade é assim constituída, que cada homem ganha em servir aos outros, replicarei que isso estaria muito bem se não ganhasse ainda mais para prejudicá-lo. Não há proveito tão legítimo que não seja ultrapassado pelo que se pode fazer ilegítimo, e o mal feito pelo próximo é sempre mais lucrativo que os serviços. Não se trata, pois, senão de achar os meios de assegurar a impunidade, e é para isso que os poderosos empregam todas as suas forças, e os fracos toda a sua astúcia.
     O homem selvagem, quando acabou de comer, está em paz com toda a natureza, e é amigo de todos os seus semelhantes. Se, algumas vezes, tem de disputar seu alimento, não chega nunca ao extremo sem ter antes comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar noutro lugar sua subsistência; e, como o orgulho não se mistura ao combate, ele termina por alguns socos. O vencedor come o vencido vai procurar fortuna noutra parte, e tudo está pacificado. Mas, no homem da sociedade, é tudo bem diferente; trata-se, primeiramente, de prover ao necessário, depois, ao supérfluo. Em seguida, vêm as delícias, depois as imensas riquezas, e depois súditos e escravos. Não há um momento de descanso. O que há de mais original é que, quanto menos as necessidades são naturais e prementes, tanto mais as paixões aumentam, e o que é pior, o poder de as satisfazer. De sorte que, após longas prosperidades, depois de haver devorado muitos tesouros e desolado muitos homens, meu herói acabará por tudo arruinar, até que seja o único senhor do universo. Tal é, abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo menos das pretensões secretas do coração de todo homem civilizado.
     Comparai, sem preconceitos, o estado do homem civilizado com o do homem selvagem, e investigai, se o puderdes, como além da sua maldade, suas necessidades e suas misérias, o primeiro abriu novas portas à miséria e à morte. Se considerardes os sofrimentos do espírito que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos desolam, os trabalhos excessivos de que os pobres estão sobrecarregados, a moleza ainda mais perigosa à qual os ricos se abandonam, uns morrendo de necessidades e outros de excessos; se pensardes nas monstruosas misturas de alimentos, na sua perniciosa condimentação, nos alimentos corrompidos, nas drogas falsificadas, nas velhacarias dos que as vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno do vasilhame no qual são preparadas; se prestardes atenção nas moléstias epidêmicas oriundas da falta de ar entre multidões de seres humanos reunidos, nas que ocasionam a nossa maneira delicada do viver, as passagens alternadas de nossas casas para o ar livre, o uso de roupas vestidas ou despidas sem precauções, e todos os cuidados que a nossa sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários, e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente a vida ou a saúde; se puserdes em linha de conta os incêndios e os tremores de terra que, consumindo ou derrubando cidades inteiras, fazem morrer os habitantes aos milhares; em uma palavra, se reunirdes os perigos que todas essas causas acumulam continuamente sobre nossas cabeças, sentireis como a natureza nos faz pagar caro o desprezo que temos dado às suas lições.
     Não repetirei aqui o que já disse da guerra em páginas anteriores. Mas, desejaria que as pessoas instruídas quisessem ou ousassem dar em público os detalhes dos horrores cometidos, nos exércitos, pelos empresários dos víveres e dos hospitais: veríamos que suas manobras, não muito secretas, pelas quais os mais brilhantes exércitos se fundem em menos do que nada, fazem morrer mais soldados do que os ceifa o ferro inimigo. E ainda um cálculo não menos espantoso o dos homens que o mar engole todos os anos, pela fome, pelo escorbuto, pelos piratas, pelo fogo, pelos naufrágios. É claro que também é preciso assinalar por conta da propriedade estabelecida, o como conseqüência da sociedade, os assassínios, os envenenamentos, os roubos avultados, as próprias punições desses crimes, punições necessárias para prevenir maiores males, porém que, pelo assassínio do um homem, custando a vida a dois ou mais, não deixam de dobrar realmente a perda da espécie humana. Quantos meios vergonhosos de impedir o nascimento dos homens e de enganar a natureza: ou por esse gosto brutal e depravado que insulta a sua mais encantadora obra, gosto que os selvagens e os animais jamais conheceram, e que só nasce nos países policiados e da imaginação corrompida; ou por meio de abortos secretos, dignos frutos do deboche e da honra viciosa; ou pela exposição ou o assassínio de uma multidão de crianças, vítimas da miséria dos pais, ou. da vergonha bárbara das mães; ou, enfim, pela mutilação desses desgraçados, dos quais uma parte da existência e toda a posteridade são sacrificadas a vãs canções, ou, o que é ainda pior, ao brutal ciúme de alguns homens, mutilação que, neste último caso, ultraja duplamente a natureza, pelo tratamento que recebem aqueles que a suportam e pelo uso a que são destinados!.
     Mas, não há milhares de casos mais freqüentes e mais perigosos ainda, em que os direitos paternos ofendem abertamente a humanidade? Quantos talentos enterrados e inclinações forçadas pelo imprudente constrangimento dos pais! quantos homens ter-se-iam distinguido em um estado apropriado, que morrem desgraçados e desonrados em outro estado para o qual não tinham nenhuma aptidão nem gosto! quantos casamentos felizes, mas desiguais foram rompidos ou perturbados, e quantas esposas castas desonradas, por essa ordem de condições sempre em contradição com a da natureza! quantas outras uniões esquisitas formadas pelo interesse e desaprovadas pelo amor e pela razão! quantos esposos honestos e virtuosos mutuamente se proporcionam suplícios por se terem escolhido mal! Quantas jovens e desgraçadas vítimas da avareza dos pais mergulham no vício ou passam seus tristes dias chorando e gemendo dentro desses laços indissolúveis, que o coração repele e só o ouro formou! Felizes aqueles cuja coragem e virtude os arrebatam à vida, antes que uma violência bárbara os force a passar ao crime ou ao desespero! Perdoai-me, pai e mãe para sempre deploráveis: com pesar aumento vossas dores; mas, possam elas servir de exemplo eterno e terrível a quem quer que ouse, em nome mesmo da natureza, violar o mais sagrado dos seus direitos!
     Se não falei senão desses nós mal formados que são a obra da nossa polícia, pensa-se que aqueles a que o amor e a simpatia presidiram estejam isentos de inconvenientes? E se eu empreendesse mostrar a espécie humana atacada na sua própria fonte, e até no mais sagrado de todos os laços, em que não se ousa mais escutar a natureza senão depois de haver ouvido a fortuna, e em que, a desordem civil confundindo as virtudes o os vícios, a continência se torna uma precaução criminosa, e a recusa de dar a vida a seu semelhante um ato de humanidade! Mas, sem despedaçar o véu que cobre tantos horrores, contentemo-nos de indicar o mal ao qual outros devem trazer remédio.
     Que se acrescente a tudo isso essa quantidade da ofícios malsãos que abreviam os dias e destroem o temperamento, tais como os trabalhos das minas, as diversas preparações dos metais, dos minerais, principalmente do chumbo, do cobre, do mercúrio, do cobalto, do arsênico, do rosalgar; esses outros ofícios perigosos que todos os dias custam a vida de uma porção de operários, uns entelhadores, outros carpinteiros, outros pedreiros, outros trabalhadores de pedreira; que se reunam, repito, todos esses objetos, e se poderão ver, no estabelecimento e perfeição das sociedades, as razões da diminuição da espécie, observada por mais de um filósofo.
     O luxo, impossível de prevenir entre os homens ávidos de suas próprias comodidades e da consideração dos outros, acaba logo o mal que as sociedades começaram; e, sob o pretexto de fazer viver os pobres, o que não era preciso, empobrece todo o resto e despovoa o Estado, cedo ou tarde.
     O luxo é um remédio muito pior do que o mal que pretende curar; ou antes, é ele mesmo o pior dos males, em qualquer Estado, grande ou pequeno, e que, para nutrir as multidões de criados e de miseráveis que fez, acabrunha e arruina o trabalhador e o cidadão: como esses ventos escaldantes do sul que, cobrindo as ervas e verduras de insetos devoradores, tiram a subsistência dos animais úteis e levam a fome e a morte a todos os lugares em que se fazem sentir.
     Da sociedade e do luxo que ela engendra, nascem as artes liberais e mecânicas, o comércio, as letras, e todas essas inutilidades que fazem florescer a indústria, enriquecem e perdem os Estados. A razão desse deperecimento é muito simples. É fácil ver que, pela sua natureza, a agricultura deve ser a menos lucrativa de todas as artes, porque, sendo o seu produto de uso mais indispensável para todos os homens, o preço deve estar proporcionado às faculdades dos mais pobres. Do mesmo princípio pode-se tirar a regra de que, em geral, as artes são lucrativas na razão inversa da sua utilidade, e de que as mais necessárias, finalmente, devem tornar-se as mais negligenciadas. Por ai se vê o que se deve pensar das verdadeiras vantagens da indústria e do efeito real que resulta dos seus progressos. Tais são as causas sensíveis de todas as misérias em que a opulência precipita, finalmente, as nações mais admiradas. À medida que a indústria e as artes se estendem e florescem, o cultivador desprezado, carregado de impostos necessários à manutenção do luxo, e condenado a passar a vida entre o trabalho e a fome, abandona o campo para ir procurar na cidade o pão que devia levar para lá. Quanto mais as capitais impressionam de admiração os olhos estúpidos do povo, tanto mais seria preciso lastimar o abandono dos campos, as terras incultas e as estradas cheias de cidadãos desgraçados transformados em mendigos ou ladrões, e destinados um dia a acabar a sua miséria pelos caminhos ou sobre um monte de esterco. É assim que o Estado se enriquece por um lado, e se enfraquece e se despovoa, por outro, e que as mais poderosas monarquias, após muitos trabalhos para se tornarem opulentas e desertas, acabam por se tornar a presa de nações pobres que sucumbem à funesta tentação de as invadir, e que são invadidas e enfraquecem por sua vez, até que elas mesmas sejam invadidas e destruídas por outras.
     Que se dignem explicar-nos o que teria podido produzir essas nuvens de bárbaros que, durante tantos séculos, inundaram a Europa, a Ásia e a África. Seria à industria de suas artes, à excelência do sua polícia, que deviam essa prodigiosa população? Que os nossos sábios nos digam porque, longe de ir a tal ponto, esses homens ferozes, brutais, sem luzes, sem freio, sem educação, não se estrangulavam todos a cada instante, para disputar o alimento ou a caça. Que nos expliquem como esses miseráveis tiveram somente a ousadia de olhar em face tão hábeis pessoas como somos, com tão bela disciplina militar, tão belos códigos e tão sábias leis. Enfim, porque, depois que a sociedade se aperfeiçoou nos países do Norte e se teve tanto trabalho para ensinar aos homens seus deveres mútuos e a arte de viver agradável e pacificamente em conjunto, não se vê mais nada sair de semelhante a essas multidões de homens que produziam outrora. Receio muito que alguém se lembre, por fim, de me responder que todas essas grandes coisas, a saber, as artes, as ciências e as leis, foram muito sabiamente inventadas pelos homens como uma peste salutar para prevenir a excessiva multiplicação da espécie, com medo de que este mundo acabasse se tornando muito pequeno para os seus habitantes.
     Pois bem! será preciso destruir as sociedades, aniquilar o teu e o meu, e voltar a viver nas florestas com os ursos? conseqüência à maneira dos meus adversários, que prefiro prevenir a lhes deixar a vergonha de a concluir. Oh vós, para quem a voz celeste não se fez ouvir, e que não reconheceis para vossa espécie outro destino senão o de acabar em paz esta curta vida; vós, que podeis deixar no meio das cidades vossas funestas aquisições, vossos espíritos inquietos, vossos corações corrompidos e vossos desejos desenfreados, retomai, pois que depende de vós, vossa antiga e primeira inocência; ide para os bosques perder a vista e a memória dos crimes dos vossos contemporâneos, e não receeis aviltar vossa espécie renunciando às suas luzes para renunciar aos seus vícios.
     Quanto aos homens semelhantes a mim, cujas paixões destruíram para sempre a original simplicidade, que não podem mais nutrir-se de ervas e de sementes, nem passar sem leis e sem chefes; àqueles que foram honrados em seu primeiro pai com lições sobrenaturais; àqueles que hão de ver, na intenção de dar primeiro às ações humanas uma moralidade que não tivessem adquirido de há muito, a razão do um preceito indiferente por si mesmo e inexplicável em qualquer outro sistema; àqueles, eis uma palavra, que estão convencidos de que a voz divina chamou todo o gênero humano para as luzes o para a felicidade das celestes inteligências, - todos esses tratarão de merecer, pelo exercício das virtudes que se obrigar, a praticar aprendendo a conhecê-las, o prêmio eterno que devem esperar; respeitarão os sagrados laços das sociedades, de que são membros; amarão seus semelhantes e os servirão com todo o seu poder; obedecerão escrupulosamente às leis e aos homens, que são os seus autores e ministros; honrarão principalmente os bons e sábios príncipes que saberão prevenir, curar ou fazer desaparecer essa multidão de abusos e de males sempre prestes a nos acabrunhar; animarão o zelo desses chefes dignos, mostrando-lhes sem temor e sem adulação a grandeza de sua tarefa e o rigor do seu dever; mas, não desprezarão menos uma constituição que não se pode manter senão com o auxílio de tanta gente respeitável que em geral se deseja mais do que se obtém, e da qual, apesar de tantos esforços, nascem sempre mais calamidades reais do que vantagens aparentes.
     
(10). - Entre os homens que conhecemos, ou por nós mesmos, ou pelos historiadores, ou pelos viajantes, uns são negros, outros brancos, outros vermelhos; uns têm cabelos longos, outros apenas uma lã frisada; uns são quase completamente peludos, outros nem mesmo têm barba. Houve, e há ainda, talvez, nações de homens de altura gigantesca; e, pondo do parte a fábula dos pigmeus, que bem pode não passar de exagero, sabe-se que os lapões, e principalmente os groenlandeses, estão muito abaixo do talhe médio dos homens. Pretende-se mesmo que há povos inteiros com caudas, como os quadrúpedes. E, sem acreditar cegamente nas narrativas de Heródoto e de Ctésias, pode-se pelo menos deduzir a opinião muito verossímil de que, se se tivessem podido fazer boas observações nos velhos tempos em que os diversos povos seguiram maneiras de viver mais diferentes entre si do que hoje, ter-se-iam também notado, no rosto e na compleição do corpo, variedades muito mais impressionantes. Todos esses fatos, de que é fácil fornecer provas incontestáveis, só podem surpreender os que estão acostumados a olhar somente os objetos que os rodeiam, ignorando os poderosos efeitos da diversidade dos climas, do ar, dos elementos, da maneira de viver, dos hábitos em geral, e principalmente a força espantosa das mesmas causas, quando atuam continuamente sobre longas séries de gerações. Hoje, que o comércio, as viagens e as conquistas reúnem mais os diversos povos, e que suas maneiras de viver se aproximam sem cessar pela freqüente comunicação, percebe-se que certas diferenças nacionais diminuíram; e, por exemplo, cada qual pode observar que os franceses de hoje não são mais aqueles grandes corpos brancos e louros descritos pelos historiadores latinos, embora o tempo, com a fusão dos francos e normandos, brancos e louros, também devesse restabelecer o que a frequentação dos romanos tivesse podido tirar à influência do clima, na constituição natural e cor dos habitantes. Todas essas observações, sobre as variedades que milhares de causas podem produzir e efetivamente produziram na espécie humana, me fazem duvidar se diversos animais semelhantes aos homens, que os viajantes sem mais exame tomaram como animais, ou por causa de algumas diferenças que haviam notado na conformação exterior, ou somente porque esses animais não falavam, não seriam de fato verdadeiros homens selvagens, cuja raça, dispersa remotamente nos bosques, não tivera ocasião de desenvolver nenhuma de suas faculdades virtuais, nem adquirira nenhum grau de perfeição, achando-se ainda no estado primitivo de natureza. Demos um exemplo do que quero dizer.
     "Encontra-se, diz o tradutor da Histórias das Viagens, no vêem-se duas espécies de monstros, sendo os maiores chamados orangotangos nas Índias orientais, que constituem como que o meio termo entre a espécie humana e os babuínos. Battel conta que, nas florestas de Maiomba, no reino de Loango, vêem-se duas espécies de monstros, sendo os maiores chamados pongos e os outros enjocos. Os primeiros assemelham-se exatamente ao homem, mas são muito mais corpulentos e de talhe muito alto. Com rosto humano, têm olhos muito fundos. As mãos, faces e orelhas não têm pêlo, à exceção das sobrancelhas, que a têm muito longas. Embora tenham o resto do corpo muito peludo, o pêlo não é muito espesso, e sua cor é castanha. Enfim, a única parte que os distingue dos homens é a perna, que não tem barriga. Andam direitos, segurando com a mão o pêlo do pescoço; seu esconderijo é nos bosques; dormem acima das árvores e fazem para si uma espécie de teto que os resguarda da chuva. Alimentam-se de frutas e nozes silvestres. Jamais comem carne. Os negros que atravessam as florestas costumam acender fogos durante a noite; notam que de manhã, quando partem, os pongos tomam-lhes o lugar em torno do fogo, só se retirando quando o fogo se extingue; porque, embora tenham muita habilidade, não têm bastante senso para o entreter pondo nele a lenha.
     "Andam algumas vezes em rebanho, e matam os negros que atravessam as florestas. Atacam até os elefantes que vão pastar nos lugares por eles habitados, e os maltratam tanto com murros e pauladas que os forçam a fugir soltando gritos. Jamais se pegam pongos vivos, porque são tão robustos que dez homens não seriam bastantes para os segurar: mas, os negros apanham muitos dos mais novos, depois de matar-lhes a mãe, ao corpo da qual o menorzinho se agarra fortemente. Quando um desses animais morre, os outros lhe cobrem o corpo com uma porção do ramos e folhagens. Purchase acrescenta que, conversando com Battel, dele soubera que um pongo lhe roubara um negrinho, o qual passou um mês inteiro na sociedade desses animais; porque não fazem nenhum mal aos homens que surpreendem, pelo menos quando estes não os olham, como o negrinho observou. Battel não descreveu a segunda espécie de monstros.
     "Drapper confirma que o reino do Congo está cheio desses animais conhecidos nas Índias pelo nome de orangotangos, isto é, habitantes dos bosques, o que os africanos chamam de quojas morros. Esse animal, diz ele, é tão semelhante ao homem que alguns viajantes se convenceram de que poderia ser filho de uma mulher e de um macaco: quimera que os próprios negros rejeitam. Um desses animais foi transportado do Congo para a Holanda e apresentado ao príncipe de Orange, Frederico Henrique. Era da altura de uma criança de três anos, de gordura medíocre, mas quadrado e bem proporcionado, muito ágil e muito vivo, as pernas carnudas e robustas, toda a frente do corpo sem pêlos, mas com as costas cobertas de pêlos negros. A primeira vista, seu rosto assemelhava-se ao de um homem, mas tinha o nariz chato e recurvado; as orelhas eram também as da espécie humana; o seio, pois era uma fêmea, era carnudo, o umbigo profundo, os ombros bem juntos, as mãos divididas em dedos e com polegar, a barriga da perna e os calcanhares gordos e carnudos. Caminhava, muitas vezes, direito, sobre as pernas, e era capaz de levantar e carregar fardos muito pesados. Quando queria beber, pegava com uma das mãos a tampa do vaso e com a outra o fundo, e em seguida enxugava graciosamente os lábios. Para dormir, deitava a cabeça em um travesseiro, cobrindo-se tão bem que podia ser tomado por um homem no leito. Os negros contam estranhas histórias desse animal: asseguram não somente que ele força as mulheres e as raparigas, mas que ousa atacar homens armados. Em uma palavra, há muita aparência de que seja o sátiro dos antigos. Merolla só faia talvez desses animais quando conta que os negros, nas suas caçadas, pegam algumas vezes homens e mulheres selvagens." No terceiro tomo da mesma História das Viagens, fala-se ainda dessa espécie de animais antropomorfos, sob o nome de beggos e mandrills: mas, atendo-nos às narrativas precedentes, encontram-se, na descrição desses pretensos monstros, conformidades impressionantes com a espécie humana e diferenças menores do que as que se poderiam assinalar de homem para homem. Não se vêem, nessas passagens, as razões nas, quais os autores se fundam para recusar aos animais em questão o nome de homens selvagens; mas, é fácil conjecturar que é por serem estúpidos e por não falarem; são razões fracas para os que sabem que, embora o órgão da palavra seja natural ao homem, a própria palavra não lhe é contudo natural, e para os que sabem até que ponto sua perfectibilidade pode ter elevado o homem civilizado acima do seu estado original. O pequeno número de linhas que contêm essas descrições nos pode fazer julgar como esses animais foram mal observados e com que preconceitos foram vistos. Por exemplo, são qualificados de monstros, e entretanto, concorda-se que reproduzem. Em um lugar, Battel diz que os pongos matam os negros que atravessam as florestas; em outro, Purchass acrescenta que não fazem nenhum mal, mesmo quando os surpreendem, pelo menos quando os negros não se ponham a olhá-los. Os pongos reúnem-se em torno de fogos acesos pelos negros quando estes se retiram, e se retiram por sua vez quando o fogo se extingue; eis aí o fato; e agora, eis o comentário do observador: porque têm muita habilidade; mas não têm bastante senso para o entreter pondo nele a lenha. Eu desejaria adivinhar como Battel, ou Purchass, seu compilador, pode saber que a retirada dos pongos era um efeito de sua estupidez e não de sua vontade. Em um clima como o de Loango, o fogo não é coisa muito necessária aos animais; e, se os negros o acendem, é menos contra o frio do que para espantar os animais ferozes: é, pois, muito simples que, depois de se divertirem um pouco com as chamas, ou de se aquecerem, os pongos se aborreçam de ficar sempre no mesmo lugar e saiam para pastar, o que exige mais tempo do que se comessem carne. Aliás, sabe-se que a maior parte dos animais, sem excetuar o homem, são naturalmente preguiçosos e se recusam a toda sorte de cuidados que não sejam de absoluta necessidade. Enfim, parece muito estranho que os pongos, cuja habilidade e força se exaltam, os pongos, que sabem enterrar os mortos e fazer tetos de ramagens, não saibam pôr lenha no fogo. Lembro-me de ter visto um macaco fazer essa mesma manobra que se pretende que os pongos não possam fazer: é verdade que, não se tendo minhas idéias voltado para esse lado, cometo também a falta que censuro nos viajantes e me descuidei de examinar se a intenção do macaco era com efeito entreter o fogo, ou simplesmente, como creio, imitar a ação do homem. Seja como for, está bem demonstrado que o macaco não é uma variedade do homem, não somente porque é privado da faculdade de falar, mas principalmente porque é certo que sua espécie não tem a de se aperfeiçoar, que é o caráter específico da espécie do homem: essas experiências parecem não ter sido feitas sobre o pongo e o orangotango com bastante cuidado para se poder tirar a mesma conclusão. Haveria, contudo, um meio pelo qual, se o orangotango ou outros fossem da espécie humana, os observadores mais grosseiros poderiam certificar-se disso, mesmo com demonstração; mas, além de que uma só geração não bastaria para essa experiência, ela deve passar por impraticável, porque seria preciso que aquilo que é apenas uma suposição fosse demonstrado como verdadeiro, antes que a prova que deveria constatar o fato pudesse ser tentada inocentemente.
     Os julgamentos precipitados, que não são o fruto de uma razão esclarecida, estão sujeitos a cair no exagero. Nossos viajantes fazem, sem cerimônia, animais sob o nome de pongos, mandrills, orangotangos, desses mesmos seres dos quais, sob o nome de sátiros, faunos, silvanos, os antigos faziam divindades. É possível que, depois de muitas pesquisas, se descubra que não são nem animais nem deuses, mas homens. Enquanto se espera, parece-me haver tanta razão em recorrer a Merolla, religioso letrado, testemunha ocular, e que, com toda a sua ingenuidade, não deixava de ser homem de espírito, como ao negociante Battel, a Drapper, a Purchass e aos outros compiladores.
     Que juízo se pensa que tenham feito semelhantes observadores sobre a criança encontrada em 1694, de que já falei atrás, que não dava nenhum sinal de razão, caminhava sobre os pés e sobre as mãos, não tinha nenhuma linguagem e formava sons que em nada se pareciam com os de um homem? Levou muito tempo, continua o mesmo filósofo que me fornece este fato, para poder proferir algumas palavras, e ainda assim o fez de maneira bárbara. Logo que pode falar, interrogaram-na sobre o seu primeiro estado; mas, lembrava-se tanto dele quanto nós do que nos aconteceu no berço. Se, desgraçadamente para ela, essa criança caísse nas mãos dos nossos viajantes, não se pode duvidar de que, depois de notar o seu silêncio e a sua estupidez, decidiriam fazê-la voltar para o mato ou encerrá-la em uma jaula; depois, em belas narrativas, falariam dela, sabiamente, como de um animal muito curioso que se parecia com o homem.
     Há trezentos ou quatrocentos anos que os habitantes da Europa inundam as outras partes do mundo, e publicam sem cessar novas narrativas de viagens o relatórios, e estou persuadido de que só conhecemos homens europeus; ainda parece, diante dos ridículos preconceitos que não desapareceram mesmo entre os homens letrados, que cada qual, sob o nome pomposo de estudo do homem, faz apenas o dos homens do seu país. Os particulares podem ir e vir, mas parece que a filosofia não viaja, de tal maneira a de cada povo é pouco apropriada para outro. A causa disso é manifesta, pelo menos para as regiões afastadas: só há quatro espécies de homens que fazem viagens de longo curso: os marinheiros, os comerciantes, os soldados e os missionários. Ora, não se pode esperar que as três primeiras forneçam bons observadores; e, quanto aos da quarta, ocupados com a vocação sublime que os chama, quando não estivessem sujeitos a preconceitos de estado como todos os outros, devo-se crer que não se entregariam de boa vontade a pesquisas que parecem de pura curiosidade e que os desviariam dos trabalhos mais importantes aos quais se destinam. Aliás, para pregar utilmente o Evangelho, não é preciso senão zelo, dando Deus o resto; mas, para estudar os homens, é preciso ter talentos que Deus não se compromete a dar a ninguém e que nem sempre confere aos santos. Não se abre um livro de viagens em que não se encontrem descrições de caracteres e de costumes; fica-se, porém, admirado de ver que as pessoas que descrevem tantas coisas só tenham dito o que todos já sabiam, só tenham percebido, no outro extremo do mundo, o que só a elas seria dado notar sem sair da sua rua, e de que esses traços verdadeiros que distinguem as nações, e que impressionam os olhos feitos para ver, tenham quase sempre escapado aos seus. Daí veio o belo adágio de moral, tão repetido pela turba filosófica, de que os homens são os mesmos em toda parte, tendo em toda parte as mesmas paixões e os mesmos vícios, sendo bastante inútil procurar caracterizar os diferentes povos. Ora, isso é raciocinar quase tão bem como se se dissesse que não se poderia distinguir Pedro de Tiago, porque ambos têm nariz, boca e olhos.
     Será que não veremos mais renascer esses tempos felizes em que os povos não se metiam a filosofar, mas em que os Platão, os Tales, e os Pitágoras, tomados de um desejo ardente de saber, empreendiam as maiores viagens unicamente para se instruírem, indo sacudir longe o jugo dos preconceitos nacionais, aprender a conhecer os homens pelas suas conformações e pelas suas diferenças, e adquirir esses conhecimentos universais que não são os de um século ou de um país exclusivamente, mas que, sendo de todos os tempos e de todos os lugares, são, por assim dizer, a ciência comum dos sábios?
     Admira-se a magnificência de alguns curiosos que fizeram ou mandaram fazer, com grandes despesas, viagens ao Oriente, com sábios e pintores, para aí desenhar pardieiros e decifrar ou copiar inscrições; mas, custa-me conceber como, num século em que todos se jactam de belos conhecimentos, não se encontrem dois homens bem unidos, ricos, um de dinheiro, outro de gênio, ambos amando a glória e aspirando à imortalidade, que sacrifiquem, um vinte mil escudos de sua fortuna, e o outro, dez anos de sua vida, numa célebre viagem ao redor do mundo, para estudar, nem sempre pedras e plantas, mas, por uma vez; os homens e os costumes, e que, depois de tantos séculos empregados em medir e considerar a casa, se lembrem enfim de procurar conhecer os seus habitantes.
     Os acadêmicos que percorreram as partes setentrionais da Europa o meridionais da América tinham por objeto visitá-las mais como geômetras do que como filósofos. Entretanto, como ao mesmo tempo eram uma coisa e outra, não se podem olhar como absolutamente desconhecidas as regiões que foram vistas e descritas pelos La Condamine e os Maupertuis. O joalheiro Chardin, que viajou como Platão, nada deixou que dizer sobre a Pérsia. A China parece ter sido bem observada pelos jesuítas. Kempfer dá uma idéia passável do pouco que viu no Japão. Excetuadas essas narrativas, não conhecemos os povos das Índias orientais, freqüentados unicamente por europeus mais curiosos de encher as suas boinas do que as suas cabeças. A África inteira e os seus numerosos habitantes, tão singulares pelo caráter como pela sua cor, estão ainda por examinar; toda a terra está coberta de nações das quais só conhecemos os nomes, e nos metemos a julgar o gênero humano! Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um Duclos, um d'Alembert, um Condillac, ou homens dessa têmpera viajando para instruir seus compatriotas, observando e descrevendo, como sabem fazer, a Turquia, o Egito, a Barbaria, o império de Marrocos, a Guiné, - o país dos cafres, o interior da África e suas costas orientais, os malabares, a Mongólia, as margens do Ganges, os reinos do Sião, de Pegú, e de Ava, a China, a Tartária e, principalmente, o Japão; depois, no outro hemisfério, o México, o Peru, o Chile, as terras magelânicas, sem esquecer os patagões verdadeiros ou falsos, o Tucumã, o Paraguai, se possível, o Brasil; enfim, os caraibas, a Flórida, e todas as regiões selvagens (seria a mais importante de todas as viagens, e a que deveria ser feita com mais cuidado). Suponhamos que esses novos Hércules, de volta dessas carreiras memoráveis, terminassem em seguida, com vagar, a história natural, moral e política do que tivessem visto; veríamos sair um novo mundo de baixo de sua pena, e aprenderíamos assim a conhecer o nosso. Repito que, quando semelhantes observadores afirmassem que tal animal é um homem e um outro uma besta, seria preciso crer; mas, seria grande ingenuidade proceder do mesmo modo com viajantes grosseiros, sobre os quais se é tentado, às vezes, a colocar a mesma questão que eles se metem a resolver sobre outros animais.
     (11). - Isso me parece a última evidência, e eu não poderia conceber de onde os nossos filósofos podem fazer nascer todas as paixões que pretendem no homem natural. Excetuado apenas o necessário físico, que a própria natureza pede, todas as nossas outras necessidades só o são pelo hábito, antes do qual não eram necessidades, ou pelos desejos, e não se deseja o que não se está em estado do conhecer. Daí resulta que, como o homem selvagem só deseja as coisas que conhece e como só conhece aquelas cuja posse está ao seu alcance, ou é fácil adquirir, nada devo ser tão tranqüilo como a sua alma e nada tão limitado como o seu espírito.
     (12). Encontro, no Governo Civil, de Locke, uma objeção que me parece muito especiosa para que me seja permitido dissimulá-la. "Como o fim da sociedade entre o macho e a fêmea, diz esse filósofo, não é simplesmente procriar, mas continuar a espécie, essa sociedade deve durar, mesmo após a. procriação, pelo menos tanto tempo quanto é necessário para a nutrição e conservação dos procriados, isto é, até que eles mesmos sejam capazes de prover às suas necessidades. Vemos que essa regra, que a sabedoria infinita do Criador estabeleceu sobre as obras de suas mãos, é constantemente observada e com exatidão pelas criaturas inferiores ao homem. Nos animais que vivem de ervas, a sociedade entre o macho e a fêmea não dura mais tempo do que o ato da copulação, porque, sendo as maminhas da mãe suficientes para nutrir os filhos até que sejam capazes de pastar as ervas, o macho se contenta em gerar e não se preocupa, depois disso, com a fêmea nem com os filhotes, para cuja subsistência em nada pode contribuir. Mas, em relação aos animais de presa, a sociedade dura mais tempo, porque, não podendo a mãe bem prover à sua própria subsistência e ao mesmo tempo nutrir os filhos somente com sua presa, o que é uma maneira de nutrir-se não só mais trabalhosa como mais perigosa do que a de se nutrir de ervas, a assistência do macho é absolutamente necessária para a manutenção de sua família comum, se se pode usar esse termo. Os filhos, enquanto não puderem procurar alguma presa, só podem subsistir pelos cuidados do macho e da fêmea. Nota-se a mesma coisa entre todos os pássaros, salvo alguns pássaros domésticos que se encontram em lugares nos quais a contínua abundância de nutrição isenta o macho de nutrir os filhotes. Vê-se que, enquanto os filhotes, ainda no ,ninho, têm necessidade de alimento, o macho e fêmea para ai o levam até que possam voar e prover à sua subsistência.
     "Nisso, a meu ver, consiste a principal, se não a única razão por que o macho e a fêmea, no gênero humano, são obrigados a uma sociedade mais longa do que a que mantêm as outras criaturas. Essa razão é que a mulher é capaz de conceber e, de ordinário, ficar grávida outra vez e ter um novo filho antes que o precedente esteja em condições de dispensar o auxílio dos pais e prover às suas necessidades. Assim, um pai, sendo obrigado a cuidar durante muito tempo daqueles que gerou, é também obrigado a continuar a viver na sociedade conjugal com a mesma mulher de quem os teve, e a ficar nessa sociedade muito mais tempo do que as outras criaturas, cujos filhos podendo subsistir por si mesmos antes de chegar o tempo de nova procriação, o laço da fêmea e do macho se rompe naturalmente e ambos se encontram em plena liberdade, até que a estação que costuma solicitar os animais a se juntarem os obrigue a escolher novas companhias. E, nisso, nunca admiraríamos bastante a sabedoria do Criador, que, tendo dado ao homem qualidades próprias, para prover tão bem ao futuro quanto presente, quis e fez de maneira que a sociedade do homem durasse muito mais tempo do que a do macho e da fêmea entre as outra criaturas, a fim de que, desse modo, a indústria do homem e da mulher fosse mais excitada e os seus interesses mais unidos, com o objetivo de fazer provisões para os filhos e lhes deixar bens, nada podendo ser mais prejudicial às crianças do que uma conjunção incerta e vaga, ou uma dissolução fácil e freqüente da sociedade conjugal"
     O mesmo amor à verdade, que me faz expor sinceramente essa objeção, me leva a acompanhá-la de algumas notas, se não para resolvê-la, ao menos para esclarecê-la.
     1. Observei, primeiro, que as provas morais não têm grande força em matéria de física, e que servem antes para explicar fatos existentes do que para constatar a existência real desses fatos. Ora, tal é o gênero de prova que Locke emprega na passagem que acabo de citar; porque, embora possa ser vantajoso para a espécie humana que a união do homem e da mulher seja permanente, não se segue que isso tenha sido estabelecido pela natureza. Do contrário, seria preciso dizer que ela instituiu também a sociedade civil, as artes, o comércio, e tudo que se pretende que seja útil aos homens.
     2. Ignoro onde Locke descobriu que entre os animais de presa a sociedade do macho e da fêmea dura mais tempo do que entre os que vivem de ervas, e que um ajuda o outro a nutrir os filhos; com efeito, não se vê o cão, o gato, o urso ou o lobo reconhecerem a fêmea melhor do que o cavalo, o carneiro, o touro, o veado, ou quaisquer outros animais quadrúpedes. Parece, ao contrário, que, se o socorro do macho fosse necessário à fêmea para conservar os filhos, assim o seria sobretudo nas espécies que só vivem de ervas, porque é preciso muito tempo à mãe para pastar, sendo forçada, durante todo esse intervalo, a se descuidar da prole, ao passo que a presa de uma ursa ou de uma loba é devorada em um instante, tendo ela, sem sofrer a fome, mais tempo para amamentar os filhos. Esse raciocínio é confirmado por uma observação sobre o número relativo de mamas e de filhos que distingue as espécies carnívoras, e de que já falei na nota 8. Se essa observação é justa e geral, só tendo a mulher dois seios, e um filho de cada vez, eis mais uma forte razão para duvidar que a espécie humana seja naturalmente carnívora; de sorte que parece que, para tirar a conclusão de Locke, seria necessário raciocinar de modo absolutamente contrário. Não há mais solidez na mesma distinção aplicada às aves. Porque quem poderá se persuadir de que a união do macho e da fêmea seja mais durável entre os abutres e os corvos do que entre as rolas? Temos duas espécies de aves domésticas, o pato e o pombo, que nos fornecem exemplos diretamente contrários ao sistema desse autor. O pombo, que só vive de grãos, fica unido à fêmea, e nutrem os filhos em comum. O pato, cuja voracidade é conhecida, não reconhece nem a fêmea nem os filhos, e em nada auxilia sua subsistência. E, entre as galinhas, espécie que não é menos carnívora, não se vê o galo incomodar-se com a ninhada. Se, em outras espécies, o macho partilha com a fêmea o cuidado de nutrir os filhos, é que as aves, que a princípio não podem voar e a mãe não pode aleitar, estão muito menos em condições de passar sem a assistência do pai do que os quadrúpedes, aos quais basta a maminha da mãe, pelo menos durante algum tempo.
     3. Há muita incerteza sobre o fato principal que serve de base a todo o raciocínio de Locke: porque, para saber, como ele pretende, se, no puro estado de natureza, a mulher fica, de ordinário, grávida outra vez e tem um novo filho muito tempo antes que o precedente possa prover suas necessidades, seriam necessárias experiências que seguramente Locke não fez e que ninguém tem facilidade em fazer. A coabitação contínua do marido e da mulher é uma ocasião tão próxima de se expor ela a uma nova gravidez, que é bem difícil acreditar que o encontro fortuito ou o simples impulso de temperamento produza efeitos tão freqüentes no puro estado de natureza como no da sociedade conjugal. Essa lentidão contribuiria, talvez, para tornar os filhos mais robustos, e poderia, aliás, ser compensada pela faculdade de conceber, prolongada a uma idade mais avançada nas mulheres que não tenham abusado dela na juventude. Em relação às crianças, há muitas razões para crer que as suas forças e os seus órgãos se desenvolvem, entre nós, mais tarde do que no estado primitivo de que falo. A fraqueza original herdada da constituição dos pais, os cuidados tomados para envolver e estorvar todos os seus membros, a moleza na qual são educadas, talvez o uso de outro leite que não o de sua mãe, tudo contraria e retarda nelas os primeiros progressos da natureza. A aplicação que são obrigadas a dar a mil coisas sobre as quais se fixa continuamente sua atenção, ao passo que não só dá nenhum exercício às suas forças corporais, pode ainda causar um desvio considerável no seu crescimento; de sorte que, se, em vez de lhes sobrecarregar e fatigar a princípio o espírito de mil maneiras, se deixasse que exercitassem o corpo nos movimentos contínuos que a natureza parece reclamar, é de se crer que estariam muito mais cedo em condições de andar, de agir e de prover às suas necessidades.
     4. Finalmente, Locke prova, quando muito, que poderia bem haver no homem um motivo de ficar ligado à mulher quando ela tem um filho; mas, não prova, de modo algum, que ele lhe deva ficar ligado antes do parto e durante os nove meses de gravidez. Se tal mulher é indiferente ao homem durante esses nove meses, se se torna mesmo desconhecida para ele, porque socorrê-la depois do parto? porque ajudá-la a criar um filho que ele sabe que não pertence somente a ele, e cujo nascimento não resolveu nem previu? Locke supõe, evidentemente, o que está em discussão, porque não se trata de saber a razão pela qual o homem ficará ligado à mulher depois do parto, mas, pela qual se ligará a ela depois da concepção. Satisfeito o apetite, e homem não tem mais necessidade de tal mulher, nem a mulher de tal homem. Este não tem a menor preocupação, nem talvez a menor idéia das conseqüências do sua ação. Um vai para um lado, e o outro para outro, não havendo aparência de que, após nove meses, tenham lembrança de se terem conhecido; porque essa espécie de lembrança, pela qual um indivíduo dá preferência a outro indivíduo para o ato da geração exige, como provo no texto, mais progressos ou corrupção no entendimento humano do que se pode supor existir no estado de animalidade de que tratamos. Uma outra mulher pode, pois, contentar os novos desejos do homem tão comodamente quanto aquela que ele já conheceu, e outro homem contentar do mesmo modo a mulher, supondo-se que ela seja premida pelo mesmo apetite durante o estado de gravidez, do que razoavelmente se pode duvidar. É que se, no estado de natureza, a mulher não sente mais a paixão do amor após a concepção do filho, o obstáculo à sua sociedade com o homem se torna ainda muito maior, pois que então ela não tem mais necessidade nem do homem que a fecundou, nem de nenhum outro. Não há, pois, no homem nenhuma razão para procurar de novo a mesma mulher, nem na mulher nenhuma razão para procurar de novo o mesmo homem. O raciocínio de Locke cai, pois, em ruínas, e toda a dialética desse filósofo não o livrou do erro que Hobbes e outros cometeram. Eles tinham que explicar um fato do estado de natureza, isto é, de um estado em que os homens viviam isolados, e em que um homem não tinha nenhum motivo para permanecer ao lado de outro, nem talvez os homens nenhum motivo para permanecer ao lado uns dos outros, o que é muito pior, e não pensaram em se transportar para além dos séculos de sociedade, isto é, além desses tempos em que os homens têm sempre uma razão para permanecer perto uns dos outros, e em que um homem tem muitas vezes uma razão para ficar ao lado de outro homem ou de outra mulher.
     (13). - Terei bem cuidado em me não comprometer nas reflexões filosóficas que seria necessário fazer sobre as vantagens e os inconvenientes dessa instituição das línguas: não é a mim que se permite atacar os erros vulgares, e o povo letrado respeita demais os seus preconceitos para suportar pacientemente os meus pretensos paradoxos. Deixemos, pois, falar as pessoas às quais não imputamos o crime de tomarem algumas vezes o partido da razão contra as opiniões da multidão. Nec quidquam felicitati humani generis decederet, si, pulsa tot linguarum peste et confusione, unam artem callerent mortales, et signis, motibus, gestibusque, licitum foret quidvis explicare. Nunc vero ita comparatum est, ut animalium quoe vulgo bruta creduntur melior longe quam nostra hac in parte videatur conditio, utpote quoe promptius, et forsan felicius, sensus et cogitationes suas sine interprete significent, quam ulli queant mortales, proesertim si peregrino utantur sermone.(Is. Vossius, De Poemat. Cant. et Viribus Rhythmi, pag. 66.)
     (14). - Platão, mostrando quanto as idéias da quantidade discreta e de suas relações são necessárias nas menores artes, ridiculariza com razão os autores do seu tempo que pretendiam que Palamedes inventara os números no cerco de Tróia, como se, diz o filósofo, Agamemnon pudesse ignorar, até então, quantas pernas tinha. Efetivamente, sente-se a impossibilidade de que a sociedade e as artes tivessem chegado aonde estavam já no tempo do cerco do Tróia, sem que os homens tivessem usado os números e os cálculos: mas, a necessidade de conhecer os números, antes de adquirir outros conhecimentos, não torna a sua invenção mais fácil de imaginar. Uma vez conhecidos os nomes dos números, é fácil explicar-lhes o sentido e excitar as idéias que esses nomes representam; mas, para os inventar, foi preciso, antes de conceber essas mesmas idéias, estar por assim dizer familiarizado com as meditações filosóficas, exercitado em considerar os seres só por sua essência e independentemente de qualquer outra percepção. Essa abstração é muito penosa, muito metafísica, muito pouco natural, e, no entanto, sem ela, essas idéias nunca teriam podido se transportar de uma espécie ou de um gênero a outro, nem os números tornarem-se universais. Um selvagem podia considerar separadamente sua perna direita e sua perna esquerda, ou as olhar em conjunto sob a idéia indivisível de um par, sem jamais pensar que tivesse duas; porque uma coisa é a idéia representativa que nos pinta um objeto, e outra coisa a idéia numérica que o determina. Menos ainda podia ele calcular até cinco, e, embora aplicando as mãos uma sobre a outra, pudesse notar que os dedos se correspondiam exatamente, estava bem longe de pensar na sua igualdade numérica; não sabia mais a soma dos seus dedos que a dos seus cabelos; e, se, depois de lhe haver feito entender o que são os números, alguém lhe dissesse que ele tinha tantos dedos nos pés quanto nas mãos, talvez tivesse ficado surpreendido, comparando-os, de ver que era verdade.
     (15). - É preciso não confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo, duas paixões muito diferentes por sua natureza e por seus efeitos. O amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a velar por sua própria conservação, e que, dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente, e que é a verdadeira fonte da honra. Bem entendido isso, repito que, no nosso estado primitivo, no verdadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe; porque, cada homem em particular olhando a si mesmo como o único espectador que o observa, como o único ser no universo que toma interesse por ele, como o único juiz do seu próprio mérito, não é possível que um sentimento que teve origem em comparações que ele não é capaz de fazer possa germinar em sua alma. Pela mesma razão, esse homem não poderia ter ódio nem desejo de vingança, paixões que só podem nascer da opinião de alguma ofensa recebida. E, como é o desprezo ou a intenção de prejudicar, e não o mal, que constitui a ofensa, homens que não sabem se apreciar nem se comparar podem fazer-se muitas violências mútuas para tirar alguma vantagem, sem jamais se ofenderem reciprocamente. Em uma palavra, cada homem, vendo seus semelhantes apenas como veria os animais de outra espécie, pode arrebatar a presa ao mais fraco ou ceder a sua ao mais forte, sem encarar essas rapinagens senão como acontecimentos naturais, sem o menor movimento de insolência ou de despeito, e sem outra paixão que a dor ou a alegria de um bom ou mau sucesso.
     (16). - É uma coisa extremamente notável que, após tantos anos que os europeus se atormentam para conduzir os selvagens de diversas regiões do mundo à sua maneira de viver, não tenham podido ainda ganhar um só item mesmo a favor do cristianismo; porque os missionários têm feito algumas vezes cristãos, mas jamais homens civilizados. Nada pode sobrepujar a invencível repugnância que têm eles em tomar os nossos costumes e em viver à nossa maneira. Se esses pobres selvagens são tão desgraçados como se pretende, por que inconcebível depravação de julgamento recusam constantemente policiar-se como nós, ou aprender a viver felizes entre nós, quando se lê, em milhares de passagens, que os franceses e outros europeus se refugiaram voluntariamente nessas nações e nelas passaram a vida inteira sem poder mais deixar tão estranha maneira de viver, e quando se vêem até missionários sensatos ter saudades dos dias calmos e inocentes que passaram entre povos tão desprezados. Se se responde que eles não têm bastantes luzes para julgar de maneira sã o seu estado e o nosso, replicarei que a estima da felicidade é menos negócio da razão que do sentimento. Aliás, essa resposta pede voltar-se contra nós com mais força ainda; porque as nossas idéias estão mais longe da disposição de espírito necessária para conceber o gosto que encontram os selvagens na sua maneira de viver do que as idéias dos selvagens das que lhes podem fazer conceber a nossa. Com efeito, depois de algumas observações, é-lhes fácil ver que todos os nossos trabalhos se dirigem para dois únicos objetivos, a saber: as comodidades da vida para si, e a consideração para os outros. Mas, para nós, qual é o meio de imaginar a espécie de prazer que um selvagem tem em passar a vida só no meio das florestas, ou pescando, ou soprando em uma péssima flauta, sem jamais saber tirar dela um único som e sem se importar de aprendê-lo?
     Muitas vezes, têm-se trazido selvagens a Paris, a Londres e a outras cidades, e tido pressa em lhes expor o nosso luxo, as nossas riquezas e todas as nossas artes mais úteis e mais curiosas: tudo isso lhes despertou uma admiração estúpida, sem o menor movimento de cobiça. Lembro-me, entre outras, da história de um chefe de alguns americanos setentrionais levados à corte da Inglaterra, há uns trinta anos: fizeram-lhe passar milhares de coisas diante dos olhos, para lhe fazerem presente do que lhe pudesse agradar, sem que se achasse nada que parecesse impressioná-lo. Nossas armas lhe pareciam pesadas e incômodas, nossos sapatos lhe feriam os pés, nossas roupas o incomodavam, e tudo ele recusava. Finalmente, percebeu-se que, tendo tomado um cobertor de lã, parecia sentir prazer em envolver com ele os ombros. - "Convence-se ao menos, - perguntaram-lhe, - da utilidade disso," - "Sim, - respondeu, - isso me parece quase tão bom como uma pele de animal". Mas, nem isso diria se tivesse levado as duas coisas à chuva.
     - Dir-me-ão, talvez, que é o hábito que, ligando cada um à sua maneira de viver, impede os selvagens de sentir o que há de bom na nossa: e, sendo assim, deve parecer ao menos bem extraordinário que o hábito tenha mais força para manter os selvagens no gosto de sua miséria do que os europeus no gozo de sua felicidade. Mas, para dar a essa última objeção uma resposta para a qual não haja uma palavra que replicar, sem alegar todos os jovens selvagens que inutilmente se tem procurado civilizar e sem falar dos groenlandeses e dos habitantes da Islândia, que se tentou educar e nutrir na Dinamarca, e que morreram todos de tristeza e desespero, ou por causa do langor, ou no mar, porque tentaram fugir a nado, contentar-me-ei de citar um só exemplo bem atestado, e que dou aos admiradores da polícia européia para examinar.
     "Todos os esforços dos missionários holandeses do Cabo da Boa Esperança jamais foram capazes de converter um só hotentote. Van der Stel, governador do Cabo, tendo tomado um desde a infância, fê-lo educar nos princípios da religião cristã, e na prática dos usos da Europa. Vestiram-no ricamente, ensinaram-lhe diversas línguas, e seus progressos corresponderam muito bem aos cuidados tomados com sua educação. O governador, esperando muito de seu espírito, enviou-o às Índias com um comissário geral que o empregou utilmente nos negócios da companhia. Ele voltou ao Cabo depois da morte do comissário. Poucos dias depois da sua volta, em uma visita que fez a uns hotentotes sem parentes, tomou a decisão de se despojar dos seus ornamentos europeus para se vestir com uma pele de carneiro. Voltou ao forte nesses novos trajes, carregando um pacote contendo as suas roupas; e, apresentando-as, ao governador, lhe disse:
     Tende a bondade, senhor, de prestar atenção a que renuncio para sempre, a todo esse aparelhamento; renuncio também, para toda a vida, à religião cristã; minha resolução é viver e morrer na religião, maneiras e usos dos meus ancestrais. A graça único que vos peço é deixar-me o colar e o cutelo que trago; eu os guardarei por amor a vós. Logo que acabou de falar, sem esperar a resposta de Van der Stel, saiu em fuga, e jamais foi visto no Cabo." (História das Viagens, tomo V, pag. 175.)
     (17). - Poderiam objetar-me que, em uma semelhante desordem, os homens, em vez de se degolarem mútua e obstinadamente, se dispersariam, se não houvesse limites à sua dispersão; mas, primeiramente, esses limites seriam pelo menos os do mundo; e, se se pensa na excessiva população que resulta do estado de natureza, julgar-se-á que a terra, nesse estado, não tardaria a ser coberta de homens assim forçados a se manter reunidos. Aliás, eles se dispersariam se o mal fosse rápido, e se a mudança fosse feita da noite para o dia: mas, nasciam sob o jugo; tinham o hábito de o conduzir, quando lhe sentiam o peso, e se contentavam em esperar a ocasião de o sacudir. Enfim, já acostumados a mil comodidades que os forçavam a se manter reunidos, a dispersão não era assim tão fácil como nos primeiros tempos, em que, ninguém tendo necessidade senão de si mesmo, cada qual tomava seu partido sem esperar o consentimento do outro.
     (18). - O marechal de Villars contava que, em uma de suas campanhas, as excessivas ladroeiras de um comissário de víveres tendo feito sofrer e murmurar o exército, ele o repreendeu rudemente e o ameaçou de mandar enforcá-lo. "Essa ameaça nada tem que ver comigo, - respondeu-lhe ousadamente o velhaco, e me é muito fácil dizer-lhe que não se enforca um homem que dispõe de cem mil escudos." -- "Não sei como foi, - acrescenta ingenuamente o marechal, - mas, com efeito, ele não foi enforcado, embora tivesse merecido cem vezes o castigo."
     (19). - A justiça distributiva se oporia mesmo a essa igualdade rigorosa do estado de natureza, quando fosse praticável na sociedade civil; e, como todos os membros do Estado lhe devem serviços proporcionais aos seus talentos e às suas forças, os cidadãos, por sua vez, devem ser distinguidos e favorecidos à proporção dos seus serviços. É nesse sentido que é preciso compreender uma passagem de Isócrates na qual louva ele os primeiros atenienses por terem sabido bem distinguir qual era a mais vantajosa das duas espécies de igualdade, uma das quais consiste em conceder as mesmas vantagens a todos os cidadãos indiferentemente, e a outra em distribuí-las segundo o mérito de cada um. Esses hábeis políticos, acrescenta o orador, banindo essa injusta igualdade que não estabelece nenhuma diferença entre os maus e os bons, apegaram-se inviolavelmente àquela que recompensa e pune cada um segundo o seu mérito. Mas, primeiramente, jamais existiu sociedade, por maior que tenha sido o grau de corrupção a que tivesse podido chegar, na qual não se fizesse nenhuma diferença entre os maus e os bons; e, em matéria de costumes, em que a lei não pode fixar medida bastante exata para servir de regra ao magistrado, é muito sabiamente que, para não deixar a sorte ou a posição dos cidadãos à sua discrição, ela lhe não permite o julgamento das pessoas, para só lhe deixar o das ações. Não há costumes tão puros, como os dos antigos romanos, que possam suportar censores; e semelhantes tribunais logo teriam transtornado tudo entre nós. Cabe à estima pública estabelecer a diferença entre os maus e os bons. O magistrado só é juiz do direito rigoroso: mas, o povo é o verdadeiro juiz dos costumes, juiz íntegro e mesmo esclarecido sobre esse ponto, do qual se abusa algumas vezes, porém que jamais se consegue corromper. As posições dos cidadãos devem, pois, ser reguladas, não segundo o seu mérito pessoal, o que seria deixar ao magistrado o meio de fazer uma aplicação quase arbitrária da lei, mas segundo os serviços reais que prestam ao Estado, e que são suscetíveis de uma estimação mais exata.

 

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