ABUSO SEXUAL NA ADOLESCÊNCIA

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Discussões Teóricas e Possibilidades Terapêuticas

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Adriana Bisi Nicolau

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Resumo
Neste artigo pretendo desenvolver uma articulação teórico-clínica sobre o tema do abuso sexual a partir do caso de duas adolescentes que trouxeram uma queixa em comum: a situação de abuso sexual tendo o pai como protagonista. A história trazida por elas ilustra o que estou chamando de sedução, trauma e defesas, dentro do contexto de um abuso sexual. Para desenvolver este tema, percorrerei a adolescência, dando ênfase à revivência edípica; a sedução em seu aspecto constitucional para o sujeito; o trauma enquanto repetição e fundador de uma nova ordem. E no que diz respeito à clínica, abordarei questões relacionadas à transferência e à contra-transferência, assim como, as possibilidades de elaboração encontradas pelas adolescentes para lidar com a experiência vivida.

Summary
In this article, I intend to develop a theoretic-clinical articulation about the sexual abuse theme derived from the case of two adolescents who brought up the same complaint: the situation of sexual abuse having the father as the protagonist. The story brought up by them illustrates what I'm calling seduction, trauma, and defenses, within the context of sexual abuse. In order to develop this theme, I'll go through the adolescence period, giving emphasis to the oedipus revival, the seduction in its constitutional aspect for the being and, the trauma as repetition and founder of a new order. In relation to the clinic, I'll cover some issues related to transference and counter-transference, as well as the possibilities of elaboration found by the adolescents in order to deal with what they had experienced.

Penso nos frutos que ficam maduros rápido demais,
e saborosos, quando o bico de um pássaro os feriu,
e na maturidade precoce de um fruto bichado.
S. Ferenczi

Introdução
O interesse em desenvolver um trabalho tendo como tema o abuso sexual e a sua articulação com as teorias da sedução e do trauma, partiu de minha experiência clínica de base psicanalítica com duas adolescentes de quinze e dezesseis anos. O que chamou atenção nestes dois casos foi a forma pela qual as duas lidaram com uma questão em comum: um abuso sexual tendo o pai como protagonista. As duas tiveram reações diferentes, sendo que uma delas com maior possibilidade de elaboração do que a outra. Com a expressão “abuso sexual”, quero me referir ao contato sexual entre pai e filha, realizado pelo pai, com o objetivo de se excitar ou de se satisfazer sexualmente.
Na busca de um respaldo teórico que sustentasse a clínica destas adolescentes, se fez importante recorrer à Freud, no que se refere a teoria da Sedução Infantil e sobre a teoria do Trauma; à Laplanche em seu trabalho sobre a teoria da Sedução Generalizada, onde encontrei uma leitura crítica e uma amplificação da teoria da sedução infantil de Freud, assim como em Ferenczi, onde pude compreender melhor o universo da linguagem do adulto e da criança, que é permeado por códigos e pelo não dito em que a criança busca decodificá-los participando, muitas vezes, da confusão de linguagem entre os dois universos, o adulto e o infantil.
Juntamente com o tema do abuso sexual buscarei relacionar os mecanismos de defesa observados nas pacientes; apresentar o campo da sedução, a qual é estruturante, inevitável e fundamental na vida do sujeito e o campo do excesso, onde uma quantidade muito grande de energia invade o aparelho psíquico fazendo com que o sujeito entre em choque, caracterizando o trauma.
Penso que este episódio pode ter sido vivido pelas adolescentes como uma experiência traumática, se levar em consideração as conseqüências surgidas a partir desta situação e os mecanismos de defesa que parecem ter sido ativados na tentativa de elaborar e/ou conter tal situação. Pude observar durante o tratamento psicoterápico que estas defesas, aparentemente articuladas à experiência traumática, refletiram no convívio social, familiar, no corpo destas adolescentes e, principalmente, em seu estado emocional, o qual ficou severamente marcado.

O reencontro com o complexo de Édipo
A adolescência é reconhecida como uma fase onde irá ocorrer a revivência inconsciente das fantasias edipianas. Os conflitos na adolescência refletem a modificação, sobretudo econômica, das pulsões e a tentativa de colocá-las em harmonia com o ego, o superego e a condição somática da puberdade. Nesta fase, o indivíduo deve renunciar aos objetivos sexuais endereçados aos seus primeiros objetos amorosos, pois, assim, reafirma o interdito do incesto e se sente “livre” para exercitar a sua sexualidade genital a partir das escolhas que fará, de acordo com a construção de sua identidade sexual. É a partir desta renúncia, e consequentemente, do investimento em novos objetos, que surgirá no sujeito transformações produzindo mudanças que levam a uma instabilidade da imagem corporal e de identidade, que até então eram desconhecidas.
O abuso sexual é um acontecimento grave e que passa a ter um peso muito maior quando ocorre nesta fase, onde o conflito edípico é revivido e onde o medo do incesto está mais forte do que anteriormente, agora que o sujeito tem seu aparato biológico maduro que possibilita a realização de qualquer desejo sexual.
A vida sexual dos jovens em amadurecimento é quase inteiramente restrita ao terreno da fantasia, isto é, há idéias não destinadas a serem concretizadas. De acordo com Freud no texto “A dissolução do complexo de Édipo” (1924), a falha na estruturação edípica não estabelece a interdição do desejo incestuoso, assim, “o ego não provoca mais do que um recalcamento; o complexo permanece no id no estado inconsciente, mais tarde irá manifestar a sua ação patológica” (Ibid., p.222).
Entendo pela expressão “mais tarde” usada por Freud, como o tempo do desenvolvimento da sexualidade em que já existe uma representação sexual e que irá promover sentido às experiências pré-sexuais do sujeito. Dessa forma, no presente, a experiência pré-sexual passa a ser representada como uma vivência excessiva que o sujeito não pode elaborar satisfatoriamente, tendo, dessa forma, um efeito traumatizante.
No caso das duas adolescentes atendidas pude perceber que a revivência edípica foi sentida por elas como algo muito ameaçador, pois a marca edípica da qual têm registro, está relacionada à uma experiência sexual com o pai, que rompeu a barreira da fantasia e invadiu o campo da realidade. Portanto, reviver o Édipo é correr o risco de novamente realizar uma atividade sexual com o pai, seu objeto de amor fantasmático.
A terapia também despertou a possibilidade de transformar a revivência edípica numa simbolização edípica, deslocando o pai do lugar de objeto de desejo sexual para um novo lugar como personagem de suas fantasias, o que possibilitava, através desta mudança, uma reorganização de papéis definitiva na adolescência, o que se faz fundamental para uma vida adulta sexual menos conflituosa. Do ponto de vista do pai que abusa sexualmente, penso que se trata de um pai que não simbolizou suas questões edípicas e foi remetido a sua revivência, onde provavelmente falhou o processo de interdição.

Sedução e Trauma em psicanálise
Pretendo articular a Teoria da Sedução com o abuso sexual, pensando a sedução como fundamental para o funcionamento sadio do sujeito, uma vez que permeia todas as relações interpessoais, promove as primeiras marcas, e é sexual, no sentido em que a sexualidade é o que move e impulsiona o sujeito para o prazer. É a partir desta experiência de sedução que o bebê se organiza e se estrutura, com alguém que exercendo a função materna erotize o seu corpo instaurando o movimento desejante, que caracteriza o homem como humano e portanto, como “simbolizante”, “teorizante” e “interpretante” por excelência, uma vez que tem a possibilidade de resignificar constantemente e construir novas versões de sua história pessoal (LAPLANCHE, 1988, p.120).
Uma das questões que se coloca é se é possível reconhecer a partir de qual momento a sedução passa a ser invasiva, tornando-se abusiva e desorganizadora?
A Teoria da Sedução Infantil de Freud se desenvolve em três registros solitários e complementares entre si: o temporal, o tópico e o tradutivo. O registro temporal refere-se a dois acontecimentos separados no tempo e que permite ao sujeito reagir no segundo tempo de forma diferente da primeira experiência. O primeiro tempo seria o do terror, em que o sujeito no estado de despreparo se confronta com uma ação sexual sem que possa assimilar um sentido para a mesma. A revivescência e o caráter traumatizante ocorrem a partir da segunda cena, a atual, que entra em “ressonância associativa” (LAPLANCHE, 1988) com a primeira experiência. Assim, é a lembrança que funciona como fonte de energia libidinal interna, autotraumatizante e não a nova cena. Podemos pensar que no primeiro ataque, o externo, o ego está sem defesas e no segundo tempo já tem defesas adequadas, mas é atacado pelo seu interior, por suas pulsões. A defesa encontrada pelo ego é o recalcamento o que Freud chamou de “defesa patológica” (1926). O registro tópico está associado ao ego como instância mediadora dos ataques internos; e, o tradutivo engloba a linguagem e todas as formas de comunicação, seria o que Laplanche chama de “laços interpretativos entre os cenários e as cenas” (1988, p.112).
Laplanche enuncia que “a confrontação adulto-criança engloba uma relação essencial de atividade-passividade, e leva em consideração o fato de que o psiquismo parental é mais rico que o da criança” (Ibid., p.118). Utiliza o termo confrontação como uma inadequação de linguagem entre o adulto e a criança, como já havia formulado Ferenczi, para se referir a um questionamento feito à criança, o qual, antes que ela compreenda, deve dar sentido e resposta. Uma linguagem que manifesta o inconsciente parental com o sentido “de si mesmo ignorado” (Ibid., p.118). Lebovici compartilha da leitura de Laplanche quando diz que em todo adulto perverso existe uma criança perversa e é está quem está atuando (1995).
Laplanche ainda alerta para que não se confunda sedução originária com atentado sexual. Descreve três níveis de sedução que atribuem importância aos fatos da sedução infantil: a “sedução pedófila” (1988, p.119), a qual é dotada de um caráter perverso e patológico; a “sedução precoce pela mãe” (Id.), onde Laplanche coloca que no aprofundamento da factualidade o nível da sedução precoce se esboça, e o pai que outrora era o maior agente da sedução infantil cede lugar à mãe, especialmente na fase pré-sexual, através dos cuidados maternos, os quais, além de suprirem as necessidades fisiológicas do bebê também erotizam as zonas erógenas; e a “sedução originária dos significantes enigmáticos” (Id.), que estabelece na teoria outros níveis de sedução.
Assim, percebo que toda sedução é traumática porque deixa marcas que são sinalizadas pelo significante enigmático e que tanto a sedução quanto o processo do trauma situam-se num tempo aposteriori, numa sucessão de traduções onde apenas no segundo momento o sujeito reativa a experiência e ao mesmo tempo se defende recalcando os representantes pulsionais evocados pela lembrança, uma alternativa encontrada pelo ego para “resolver” este conflito.
Outra pergunta que surgiu trabalho com as duas adolescentes foi em relação aos transtornos possivelmente deixados pela experiência do abuso. Pois, nesses dois casos em particular, a questão referente ao abuso foi construída durante a análise, não apareceu como queixa inicial. Foi a partir das atitudes das pacientes que percebi a desorganização provocada pelo abuso, no caso de Clara2, fazendo-a atuar constantemente com ações impulsivas e auto-agressivas e, no caso de Ana3, pela grande necessidade que demonstrava em racionalizar seus sentimentos fazendo uma grande tentativa em se distanciar dos afetos e daquilo que lhe afetava, o abuso sexual. Assim, levantei a hipótese de que tais reações eram o resultado de uma experiência traumática que havia desencadeado uma desordem emocional.
Freud formula o trauma como um acontecimento que ocorre em dois tempos. No primeiro tempo a criança vive a sedução de forma passiva, sem a possibilidade de significá-la sexualmente, o tempo pré-sexual e, no segundo tempo, um acontecimento atual desperta esta lembrança que agora, em função da maturidade sexual do sujeito, pode ser significada promovendo o caráter traumático da vivência. Neste processo o ego é invadido pelas representações do primeiro tempo do trauma e fica impossibilitado de se defender pelos meios habituais, tornando-se inundado de tensão e de desprazer, constituindo o efeito traumático da recordação.
Freud também nos fala que não é só a criança que está sujeita ao trauma, pois esta não é uma questão apenas cronológica, o estado de despreparo no adulto ou na criança é o necessário para que aconteça o traumatismo. A criança, em particular, já se encontra neste estado de desamparo essencial por natureza e sem recursos diante da linguagem sexual do adulto (FREUD apud LAPLANCHE, 1988).
O trauma, como disse anteriormente, é um acontecimento em dois tempos, sendo assim, um fato atual pode desencadear uma série de pequenos traumas, pré-existentes, fazendo com que o acúmulo pertinente a sua soma provoque um excesso de excitação no aparelho psíquico. A função do ambiente nesse caso, seria a de estimular as fantasias que ativam o afluxo de excitação pulsional. “...Ocorre uma espécie de simetria entre o perigo externo e o perigo interno: o ego é atacado de dentro, pelas excitações pulsionais, como é atacado de fora” (Ibid., p.683).
A partir deste percurso feito sobre a teoria do trauma, percebo que a sedução originária, o trauma e as defesas do ego estão diretamente associados. A sedução enquanto fator que funda o trauma e as defesas como a única possibilidade do ego de lidar com os representantes derivados da sedução, para não se deixar sucumbir pelo trauma ocasionado pelo acúmulo de excitação. Portanto, o trabalho relacionado as defesas é uma das alternativas que o terapeuta encontra para pode situar o momento de vida do sujeito e a forma pela qual está lidando com seus representantes pulsionais, defensivamente ou em harmonia com as instâncias psíquicas, sem causar maiores danos ao ego e a sua organização.

Abuso sexual: possibilidades terapêuticas
Este trabalho exigiu muita dedicação, tanto por parte da analista quanto das pacientes. A analista foi colocada à prova diversas vezes pelas pacientes, para poder estabelecer uma relação de confiança. As faltas intercaladas e o silêncio, algumas vezes intenso, provocavam desconforto pelos sentimentos que suscitavam na analista, como o de abandono e de descaso. Tais sentimentos impulsionavam a analista a tomar alguma atitude que pudesse livrá-la deste desconforto. Contudo, pôde-se perceber a tempo, através de sua análise pessoal e da supervisão dos casos, que se tratavam de sentimentos contra-transferenciais, os quais, faziam parte da dialética analista-paciente e poderiam dar preciosas indicações a respeito do próprio paciente. O comportamento de ambas adolescentes evidenciava uma enorme dificuldade em realizar investimentos libidinais e em estabelecer vínculos. Assim, quando estes sentimentos entre outros puderam ser trabalhados no processo analítico, foi possível afastar o fantasma da insegurança e construir uma relação de confiança. A analista permitiu ser objeto de projeções, aceitando o que elas precisavam colocar nela naquele momento de intensos conflitos e de ambivalência emocional e, dessa forma, ganhar a confiança que fora depositada nela e que se instaurou como condição fundamental para a evolução do processo.
O sentimento de confiança foi peça e chave fundamental em terapia para que as recordações traumáticas pudessem ser resgatadas e assim, progressivamente, elaboradas, pois, a marca do abuso permanecia bastante atuante apesar de estar num estado latente e mostrava que elas haviam sido abusadas por alguém que desfrutavam de uma relação de confiança como aquela em que agora eram chamadas a reproduzir. “Esta confiança é aquele algo que estabelece o contraste entre o presente e um passado insuportável e traumatógeno” (FERENCZI, s.d., p.350). Portanto, levando-se em consideração que o trauma também é caracterizado pelo seu caráter repetitivo, era esperado que os receios e medos fossem revividos nesta relação transferencial, o que se tornou condição para que pudéssemos alcançar e reconstruir as representações daquilo que as traumatizou.
Penso que a repetição atualiza o evento traumático, possibilitando ao paciente em terapia a criação de um sentido para o trauma, pois sem a atualização dos conflitos, como promover as transformações? Ferenczi compartilha desta afirmativa quando infere que “...é possível reproduzir pelo pensamento os acontecimentos trágicos do passado sem que a reprodução traga uma nova perda do equilíbrio psíquico” (s.d., p.349). Portanto, é a produção de sentidos que preenche esta lacuna deixada pela experiência traumática possibilitando a revivência da mesma sem que isto cause maiores danos ao sujeito, caso contrário, a evocação do trauma ficaria no vazio quando não é fornecida a possibilidade de traduzi-lo em linguagem, o que o mantém na esfera da atuação e não integrado à consciência.
Neste processo analítico também foi importante lhes mostrar que o setting analítico era um espaço singular e que ali poderiam falar livremente, podendo a partir daí promover encontros e desencontros com sua história de vida, o que se fazia fundamental para poderem lidar com suas frustrações e derrotas e, assim, conseguirem encontrar novas saídas para seus conflitos. Este era um espaço também, onde as lembranças se tornariam atuais e passíveis de transformação, marcando a diferença entre a vivência traumática passada e a revivência atual, a qual estaria permeada por um sentimento de confiança reconquistado e pela disponibilidade em realizar investimentos. “A lembrança destes conhecimentos é, aliás, reprimida, até o tratamento psicanalítico, que lhe dá sua verdadeira significação, não por causa de sua própria natureza, mas em virtude do sentimento de culpa que exprime a provocação que os fantasmas contemporâneos organizaram” (LEBOVICI, 1980, p.125).
Entendo por “fantasmas contemporâneos” a alternativa encontrada pelo sujeito para falar daquilo que não tem alcance direto, neste caso o trauma. Assim, a partir de seus conflitos atuais encontramos uma ponte para alcançar as lembranças que continuam encobertas, disfarçadas. Dessa forma, “a recordação e a repetição daquilo que não é lembrado se esgotam na elaboração interpretativa, que permite as construções” (LEBOVICI, Ibid., p.133). Foi trabalhando com as questões atuais trazidas pelas pacientes que cheguei ao encontro da expressão da experiência traumática, o que veremos adiante em cada caso em particular.
Como já frisei algumas vezes, a necessidade de falar da experiência do abuso se fez durante a terapia, pois as pacientes não chegaram com o reconhecimento de que este fato lhes trazia desconforto e angústia. O que revelou que além de algumas dificuldades já citadas, também existem outras questões que estão inseridas no processo de avaliação dos aspectos do trauma, quando estes incidem sobre o sujeito. Na clínica, pude perceber pelo menos três, que estariam diretamente relacionadas ao abuso: a sedução, a culpa e o segredo. A sedução estaria relacionada ao excesso, naquilo que extrapola o limite do afeto e aparece como atuação na realização do desejo incestuoso; o segredo estaria relacionado ao fato de se sentirem física e moralmente sem defesa, para poder protestar contra a força do agressor, como também, contra o sentimento de descredibilidade da família, tornando o fato banal e fruto de uma imaginação criativa; e o sentimento de culpa surgiria enquanto experiência de terrível realização dos desejos infantis incestuosos, o que poderia resultar para o sujeito em castigos, punições e retaliações, comandados por um superego severo. Dessa forma, criar um sentido para a culpa é uma grande tarefa que possibilita a relativização das pressões e cobranças feitas ao ego, transformando toda a dinâmica psíquica e sua organização, promovendo a tradução da culpa em linguagem acessível à consciência.
Como nos diz Ferenczi, “o sujeito é ao mesmo tempo inocente e culpado, e sua confiança no testemunho de seus próprios sentidos está quebrada” (s.d., p.352). O que me faz lembrar a fase inicial da terapia de Ana, onde afirmava que o que havia acontecido “não tinha sido nada” e achava que “estava tudo bem”. Não se permitia sentir e nem reconhecer o mal-estar provocado pela situação do abuso, apenas se limitava a dizer “quero amadurecer”, o que no seu discurso significava “entender melhor as coisas”.

Conclusão
Neste artigo procurei desenvolver algumas teorias que penso estarem diretamente ligadas com o tema do abuso sexual, tema este que surgiu na clínica com as duas adolescentes, mas que também tem grande importância no campo da saúde mental.
Freud em 1896, não usou termos como abuso (missbrauch), estupro (vergewaltigung), ataque (angriff), entre outros, para se referir às crianças que ele supunha terem sido seduzidas sexualmente por um adulto. Preferiu substituí-los por sedução (verführung), o que implicava, na visão de alguns autores, alguma forma de participação de um outro.
Os mecanismos de defesa me mostraram que muitas defesas são resultantes de uma vivência traumática. Por isso é importante perceber os recursos defensivos usados pelas pacientes para tentar se livrar da angústia, daquilo que não conseguem dar direção e nem sentido. Na terapia, o trabalho relacionado à produção de sentidos, veio principalmente como suporte para que estas adolescentes pudessem simbolizar seus afetos. Aqueles que estavam sendo experimentados numa esfera literal, em função do período da adolescência, e também em decorrência da experiência traumática que viveram, onde o real rompeu o campo da fantasia arbitrariamente.
Abordar a questão referente ao trauma também foi fundamental neste trabalho, para que pudesse entender como se organizam as defesas resultantes do mesmo. Quando entendemos o trauma como a primeira experiência, como a marca deixada pela sedução, percebemos que esta marca só vai receber um sentido quando for representada, quando o sujeito vivenciar uma experiência que o remeta associativamente a esta marca original, à sedução original, para a partir daí, ter um sentido traumático, pois como sabemos, na primeira experiência de sedução o sujeito não tem recursos para representá-la e ao fazer, percebe que se trata de algo que não pode elaborar pelas vias habituais por ser muito intenso e paralisante para o ego, alterando sua organização. Foi no trabalho de análise que surgiu a possibilidade de organizar essas questões, que outrora estavam imersas no caos, onde as pacientes procuraram encontrar vias de simbolização e novos recursos para lidar com conteúdos da sua sexualidade.
A partir da abordagem psicanalítica, como base teórica do trabalho, reafirmo a importância que a psicanálise atribui à realidade psíquica do sujeito, sem que este pressuposto leve-a a negar a importância dos acontecimentos concretos da realidade externa, uma vez que, em alguns casos é necessário que a família possa ser orientada quanto aos recursos assistenciais complementares existentes.
Estou me referindo neste artigo à sedução estruturante explicada por Laplanche e também à sedução exercida pelo pai das adolescentes. Acredito que a segunda sedução, ao contrário da primeira, seja desorganizadora e não estruturante, e seus efeitos podem ser devastadores, como pretendi ilustrar com os casos clínicos. Porém, é importante enfatizar, que toda sedução é traumática, porque deixa marcas. Marcas que na infância ainda não podem ser representadas sexualmente, por se tratar de um período da sexualidade chamado de pré-sexual, onde o sujeito se encontra sem recursos diante desta linguagem do adulto, constituída por mensagens sexuais, as quais fazem parte do inconsciente parental.
O trabalho realizado na clínica com as adolescentes, veio nos mostrar que apesar da questão delas terem o mesmo fundamento, o abuso, foi importante preservar a singularidade de cada uma, permitindo assim, que o processo analítico acompanhasse o ritmo das pacientes.

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