SIMILITUDES E CONTRASTES ENTRE LUKÁCS E ORTEGA Y GASSET

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Alexander D. A. Couto Englander [1]
Andre Veiga Bittencourt
[2] 

BITTENCOURT, Andre Veiga; ENGLANDER, Alexander D. A. Couto. Similitudes e contrastes entre Lukács e Ortega y Gasset.
Revista Habitus: revista eletrônica dos alunos de graduação em Ciências Sociais – IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p.24-35, 30 mar. 2006. Anual.
Disponível em: www.habitus.ifcs.ufrj.br

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RESUMO: O presente artigo tem como proposta realizar uma análise comparativa entre dois importantes pensadores da primeira metade do século XX, o espanhol José Ortega y Gasset e o húngaro Georg Lukács, no que se relaciona à teoria do romance. Tomamos como recorte analítico as idéias de ambos sobre as possibilidade para o surgimento desse gênero no alvorecer do mundo moderno.

 

Só a arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes – tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte vê-se, porque dura.

                                               Fernando Pessoa, Obras Completas, 1914

 

O presente estudo foi elaborado na forma de avaliação final da disciplina “Tópicos Especiais de Sociologia I – Sociologia da Literatura”. Temos como proposta realizar uma análise comparativa entre dois importantes pensadores da primeira metade do século XX, o espanhol José Ortega y Gasset e o húngaro Georg Lukács, no que se relaciona à teoria do romance. Tomamos como recorte analítico as idéias de ambos sobre as possibilidades para o surgimento desse gênero moderno, resultado, no caso do autor espanhol, de uma alteração da sensibilidade vital e no húngaro como reflexo de um mundo deslocado, onde perdeu-se a totalidade, que passa a ser   objetivo de busca. Os livros-base para o trabalho foram Meditaciones del Quijote (1914), de Ortega y Gasset e Teoria do romance (1920), de Lukács, onde os autores procuram entender o romance em confronto com o gênero épico, e, ainda mais, como diferenciação entre o homem grego e o homem moderno.

Em relação às suas biografias, já é possível encontrar diferenças e semelhanças na trajetória dos autores estudados. Apenas dois anos os separam (Ortega nasce em Madrid, em 1883 e Lukács em Budapeste, em 1885) e estudaram na Alemanha em seus anos de formação absorvendo as influências do pensamento neokantiano e do hegelianismo. Como sugerido por Francisco Gil Villegas, nossos dois autores teriam freqüentado as aulas de Georg Simmel no segundo semestre de 1906, na Universidade de Berlim, sendo devedores deste em seus conceitos acerca da estética (VILLEGAS, 1998). Ambos também negaram essas influências, com Ortega y Gasset elaborando uma filosofia própria, o racio-vitalismo, e sendo considerado por muitos críticos como uma espécie de existencialista “avant la lettre”, e Lukács filiando-se mais tarde ao marxismo e ingressando no Partido Comunista.

Percebendo as diferenças radicais entres os autores nos campos da filosofia e da política (Ortega era um crítico ferrenho do marxismo e do materialismo), é impossível não notar as claras coincidências no campo da crítica literária, presentes nestes dois ensaios de juventude, sendo nosso objetivo mostrar suas aproximações e distanciamentos. Para tal, dividiremos o estudo em três partes, uma dedicada às idéias orteguianas, outra às de Georg Lukács e uma terceira, onde serão colocadas lado a lado as duas teorias.

 

ORTEGA Y GASSET:

“Dime lo que del hombre sientes y decirte he que arte cultivas”

                                      Ortega y Gasset, Meditaciones del Quijote, 1914

Ortega y Gasset reserva a terceira parte de seu primeiro livro, Meditaciones del Quijote (1914), para dissertar sobre a essência do romance (o subtítulo do capítulo é “Breve tratado sobre la novela”). Para poder analisar esse gênero moderno, procura traçar brevemente sua concepção de gênero literário: “certos temas radicais, irredutíveis entre si, verdadeiras categorias estéticas” (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 79). Mas o homem é sempre o tema essencial da arte, e os gêneros nada mais são do que visões acerca do humano. Como o que difere as épocas são as suas interpretações do homem, cada época tem seu gênero preferido e cada uma dessas interpretações vê em determinado gênero a melhor (e talvez única) forma de expressar-se. Para entender o romance, portanto, é fundamental compreender o que o homem moderno pensa acerca do humano, e para a investigação, Ortega procura comparar o romance moderno com o gênero épico, afinal, são exatamente o oposto, e resultados de uma perspectiva completamente diferenciadas no que tange à verdade.

“Realismo. Terrível incomoda palavra! Que faria com ela um grego se a deslizássemos em sua alma?” (IDEM, 2001, p. 87) Cada época traz consigo um conceito diferente de verdade, para os gregos o real é o essencial, o profundo, o latente; para nós, pelo contrário, a verdade é a aparência, o sensível, o que vemos e ouvimos, “fomos educados por uma idade rancorosa que havia laminado o universo e feito dele uma superfície, uma pura aparência” (IBIDEM). É dessa diametral oposição que nascem as diferenças do épico para o romance. Não fazia sentido para os helênicos retratar o mundo presente, um mundo decadente, onde as formas já foram separadas das idéias, onde homens e Deuses não pertencem mais ao mesmo plano. Os padrões gregos de estética remontam a outro tempo, outra realidade, fixa e imutável. Essa é a primeira grande característica do épico em comparação com o romance: retratar um passado imemorial. Não é um passado real, algo que possua forte ligação com o presente. Os tempos são remotos, o “ontem mítico” não se relaciona com o presente, nem tampouco com o “ontem real”. A épica é arcaica por natureza, não pode ser de outra forma: ela se preocupa em retratar o mais antigo, porque era lá onde se encontravam os princípios e as causas, a realidade mais pura, um mundo ainda ascendente, onde nosso mundo decadente não existia. “Se acreditava que o mais sagrado era o imemorial, o antiqüíssimo”, Ortega cita Aristóteles (IDEM, 2001, p. 86). Para o mundo moderno, porém, como o real está nas aparências, não há a necessidade filosófica de retratar o passado. Muito pelo contrário, se o que vemos e ouvimos é a verdade então é esta realidade das aparências que será retratada, o cotidiano, o dia-a-dia.

No mundo moderno a estética épica torna-se inconciliável com a concepção filosófica do homem. Já não se tem apreço pelo mito, “se o nosso (mundo) é o real, o mundo mítico nos parecerá irreal” (IDEM, 2001, p. 91), agora a ciência passa a ser a doadora de ideais. A necessidade passa a ser por uma forma que preencha esse novo paradigma, e é no romance que o encontro se finaliza. Dessa percepção empirista/cientificista nasce a qualidade descritiva [3] do romance, em oposição à característica lírica do épico, que é a narração, já que, segundo Ortega y Gasset, o narrar é contar algo que já passou ao passo que descrever é contar o presente. Vale notar que essa característica fundamental do romance é limitadora do próprio gênero para o pensador espanhol no sentido que, quando se abandona a narração, ou seja, a aventura, passa-se a vislumbrar os limites da própria criação; “ainda que tenhamos vivido pouco já apalpamos os confins de nossa prisão” (IDEM, 2001, p. 94). A prosa moderna é não poética no momento em que valoriza o mundano e não mais o essencial, “enquanto o imaginário era por si mesmo poético, a realidade é por si mesma antipoética” (IDEM, 2001, p. 97). É apresentando essa dupla dicotomia, “poético/antipoético” “imaginário/real”, que o livro Don Quijote de la Mancha, considerado por muitos, inclusive Ortega e Lukács, o primeiro romance moderno, surge, e tem em seu personagem principal a máxima expressão do confronto entre a poesia do passado e a realidade atual. O Quixote é a fronteira entre os dois mundos, “é a aresta onde ambos os mundos se cortam formando um bisel” (IDEM, 2001, p. 98).

Notemos então que o resultado dessa nova interpretação pode ser percebido na forma do romance. Um outro aspecto importante, além da questão do tempo e da narração, já citadas, está na construção dos personagens[4]. Em um capítulo intitulado “Helena y Madame Bovary”, Ortega argumenta que nas obras épicas os personagens são únicos, são figuras sem relação com a realidade, e por isso mesmo possuem valor poético em si mesmo: “lendo a Ilíada não nos ocorre parabenizar Homero, porque seu Aquiles é efetivamente um bom Aquiles” (IDEM, 2001, p. 89). Mas, nesse gênero surgido com o Quixote, já não há lugar para a poesia, pelo contrário, os personagens são extremamente típicos, “da rua, do mundo físico, do contorno real vivido pelo autor e pelo leitor” (IBIDEM). Sancho Panza é o exemplo simbólico do que Ortega chama de personagens extrapoéticos, afinal, “não vemos, pois, como pode sobre o real estender-se o campo da poesia” (IDEM, 2001, p. 97).         

Com o Renascimento essa nova realidade que se instaura na literatura - a realidade atual - irá se complexificar. É lá que a nova sensibilidade, a nova perspectiva de olhar o mundo (a certeza empírica) terá seu rompimento definitivo com o passado clássico. É bom lembrar que o mundo da Renascença é dominado pela heterodoxia, corrente gnóstica que professa a imanentização da realização transcendental, sendo o cientificismo imanentista uma das mais poderosas realizações dessa doutrina herética (VOEGELIN, 1982). Outra fundamental realização do Renascimento é o aparecimento do fator psicológico: “o Renascimento descobre em toda sua vasta amplitude o mundo interno, o me ipsum, a consciência, o subjetivo” (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 99). O romance é, pois, um fruto do problema do indivíduo, característico dessa época.

  Durante todo período posterior à Renascença o materialismo cresceu avassaladoramente até sufocar por completo o poético, argumenta José Ortega y Gasset, chegando ao seu apogeu na filosofia positivista de Auguste Comte e na biologia evolucionista de Charles Darwin, que “aprisiona o vital dentro da necessidade física” (IDEM, 2001, p. 118). Não é à toa que o século XIX, século que defende os ideais da democracia burguesa e do romanticismo positivista, dará autores como Émile Zola, em que o realismo chega ao ápice e o homem passa a não mais ser sujeito de seus atos, mas sim mera implicação do meio social que vive. Justamente porque os gêneros são interpretações do homem e o homem passa a ser movido pelo meio, o protagonista do naturalismo de Zola será o meio. “O belo é o verossímil e o verdadeiro é somente a física. O romance aspira à fisiologia” (IDEM, 2001, p. 119).

Para melhor compreender os conceitos literários de José Ortega y Gasset (assim como toda filosofia orteguiana) é imprescindível ter em conta a noção de “sensibilidade vital”, exposta no livro El tema de nuestro tiempo (1923). Segundo Ortega, há um arcabouço em toda e qualquer época, “o corpo da realidade histórica possui uma anatomia perfeitamente hierarquizada, uma ordem de subordinação, de dependência entre diversas classes de fatos”. (ORTEGA Y GASSET, 2003, p. 61). Mas o fator primeiro nessa hierarquização não é a política ou a economia, dependentes das idéias e dos valores éticos, mas sim a “sensação radical ante a vida, de como se sente a existência em sua integridade indiferenciada” (IBIDEM). É a esse sentir que Ortega dá o nome de sensibilidade vital. Caminhando na explicação, o pensador espanhol, indica que essa sensibilidade está ligada ao conceito de “geração”. Cada mudança de sensibilidade vital na sociedade é a mudança de uma geração que, ao mesmo tempo em que incorpora traços do passado, deixa fluir sua espontaneidade. Quando o autor destas meditações quixotescas afirma que para entender o aparecimento do romance é fundamental buscar compreender a concepção que o homem moderno tem do próprio homem, ele quer dizer exatamente que o romance moderno realista é fruto de uma nova maneira de sentir o mundo, de uma nova perspectiva ante o real – real, para Ortega y Gasset, não é nem o sujeito, como propunham os idealistas, nem o objeto, mas sim “uma perspectiva da que formam parte tanto o ponto de vista do eu vivente como o mundo ao que este ponto de vista se abre” (MEDINA, 1997, p.21) –completamente distinta da sensibilidade grega.

À guisa de conclusão, cabe inserir a crítica orteguiana aos caminhos tomados pelo romance, formulado em tom apocalíptico na última frase de seu livro: “Uma noite no Pére Lachaise, Bouvard e Pécuchet enterram a poesia – em nome da verossimilhança e do determinismo” (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 119), à própria idéia de Ortega y Gasset para o século XX. Segundo o pensador, o alvorecer do novo século apontava para uma mudança radical de perspectiva, que passava pela superação do racionalismo e do relativismo, doutrinas dominantes nos séculos anteriores, ao que Ortega dá o nome de racio-vitalismo (ou razão vital). Não cabe no presente estudo adentrar nesse aspecto fundamental da filosofia de Ortega, mas a concepção dessa nova teoria representa a abertura de uma nova possibilidade para todas as realizações humanas, incluindo aí as artes, já que a hierarquia máxima dos fatos estaria em vias de alteração. Em um livro publicado em 1925 chamado La deshumanización del Arte, Ortega sentencia de forma explícita o fim do realismo moderno e o início de um novo tempo: “É um erro ingênuo crer que a esterilidade atual de ambos gêneros (o romance e o teatro romântico-naturalista) deve-se à ausência de talentos pessoais. O que acontece é que se esgotaram as combinações possíveis dentro deles. Por esta razão, deve julgar-se venturoso que coincida com este esgotamento a emergência de uma nova sensibilidade capaz de denunciar novas fontes intactas”. (ORTEGA Y GASSET, 1997, p. 57).

 

 LUKÁCS

Origem do Romance:

Das civilizações fechadas à busca pela totalidade

É na Grécia antiga que Lukács começa a traçar a história do romance. Isso porque ele busca na forma e nas questões histórico-filosóficas os elementos fundamentais para o surgimento desse gênero literário. Para ter sentido a obra literária de forma épica deve refletir a totalidade de seu mundo exterior. E na Grécia helênica esta totalidade é imanente. Nela “o mundo e o eu, a luz e o fogo, distinguem-se nitidamente e, apesar disso, nunca se tornam definitivamente alheios um ao outro, porque o fogo é a alma de toda a luz e todo o fogo se veste de luz. Assim não há um único ato da alma que não adquira plena significação e não venha a finalizar nesta dualidade: perfeito no seu sentido e perfeito para os sentidos: perfeito porque o seu agir se destaca dela e porque, tornado autônomo encontra o seu próprio sentido e o traça como que em círculo à sua volta.” (LUKÁCS, 1962, p .27).

Dessa forma não há conflito entre o ser e o mundo, temos uma “perfeita concordância dos atos com exigências íntimas da alma: de grandeza, de realização, de plenitude”(IDEM, 1962, p.28). O herói épico parte para aventuras com uma confiança  ausente nos “heróis” do romance moderno. Não teme o “tormento efetivo da busca e o perigo real da descoberta; nunca se põe em jogo”, “ser e destino, aventura e acabamento, existência e essência são noções idênticas” (IBIDEM). Este ser ainda não sabe o que é perder-se ou contingenciar-se em sua busca. Para Lukács, este mistério da imanência de sentido da helenidade vem do fato dos gregos não conhecerem perguntas, somente respostas, por isso, responderam antes de serem interrogados.

Nesta busca pela “tipografia transcendental do espírito helênico” percebe-se a harmonia existente na relação estrutural entre experiências mundanas e forma artística, “o espírito limita-se a acolher passivamente na sua visão um sentido já acabado. O mundo da significação pode ser compreendido e abrangido com um único olhar. Trata-se apenas de encontrar nele o lugar que convém a cada indivíduo” (IDEM, 1962, p. 31). Temos então a totalidade em sua plenitude. Ela constitui-se em “realidade primeira, formadora de todo fenômeno singular”, implicando que “se possa realizar uma obra fechada sobre si mesma; perfeita porque tudo se sucede nela sem que nela seja excluído ou aí remata para uma realidade superior, tudo amadurece nela para a sua própria perfeição e, atingindo-se a si mesma, insere-se no edifício inteiro” (IDEM, 1962, p. 33).

Mas toda harmonia desta perfeita construção artístico-social do mundo helênico é muito frágil. Em meio à complexificação da sociedade novas questões surgiram, fazendo ruir o edifício épico. A epopéia, trazendo a vida humana como seu objeto, responde “como a vida se pode tornar essencial?”, mas perde-se na nova questão trazida pela tragédia: “como é que a essência se pode tornar vida?” E a resposta constitui um novo estilo, baseado “no destino que dá forma e no herói que, criando-se, se encontra a si mesmo, a pura essência desperta para a vida, enquanto que a vida pura e simples se aniquila diante da única verdadeira realidade, a da essência”. Mas a questão trágica só é realmente problematizada pelo advento da filosofia, “quando a essência, que se afastou inteiramente da vida” (IDEM, 1962, p. 35), tornando-se a única realidade transcendental. Com as questões filosóficas, até o “destino trágico se descobriu como arbitrário, empírico, bruto e despido de sentido, quando a paixão do herói se revelou comportamento terrestre e a sua realização limitação do sujeito contingente” (IBIDEM). O herói trágico muda o aspecto do “homem vivo de Homero”, mas já recebe deste “sua tocha em via de se apagar”, e a história abre-se para o homem moderno do romance, trazendo uma nova busca para as questões do ser, a totalidade.

 A partir daí temos uma grande transformação na estruturação do mundo. O nosso mundo é mais complexo e, “em cada um dos seus recantos mais ricos em dons e em perigos que o dos gregos; mas essa mesma riqueza faz desaparecer o sentido positivo no qual repousava a sua vida: a totalidade” (IDEM, 1962, p. 33).

Se o novo mundo passa a ter influências da cultura grega, o espírito grego torna-se "cada vez menos grego” (IDEM, 1962, p. 36), pois perde para sempre sua principal característica, a imanência da totalidade. “No novo mundo, ser homem é ser só”, a alma não tem mais afinidade com o mundo e nem o mundo com a alma. A modernidade é uma realidade heterogênea e incoerente, e para nela buscar seu próprio sentido a arte torna-se autônoma. É obrigada a deixar de “ser cópia, porque desapareceu qualquer modelo; é totalidade criada, porque a unidade das esferas metafísicas está para sempre quebrada” (IDEM, 1962, p. 37). As formas artísticas agora encontram-se sobrecarregadas, pois têm o trabalho de achar para si um sentido neste mundo que já não se basta. E há para elas duas possibilidades nesta nova realidade da arte. Pode-se “estreitar e volatilizar aquilo a que devem dar forma, de modo a poder suportá-lo” (IDEM, 1962, p. 39), limitando o seu conteúdo. Ou tornar claro, “de maneira crítica”, a heterogeneidade e a incoerência estrutural do mundo, assumindo-as e desenvolvendo sua relação com a realidade exterior. São estas as formas de buscar-se a totalidade no novo mundo, a modernidade. Estes são os desafios que se apresentam para a forma artística e o ser, e é neste contexto histórico-filosófico que surge o romance.         

 

O ser e a forma no romance:

Em busca do sentido

Vimos como a forma da epopéia se acabou perdendo no tempo. As transformações sociais trouxeram novas questões e com isso entrou-se em um contexto histórico filosófico diferente. As essências passam a pertencer a um mundo transcendental, o sentido não é mais imanente, cabe agora ao indivíduo (o herói romanesco), esse novo personagem, buscar a totalidade. Para tanto ele terá que enfrentar, pela primeira vez, uma aventura realmente perigosa, passando por angustiantes questões existenciais para alcançar (ou não) seu objetivo. O herói moderno pode falhar. E é este processo de surgimento do indivíduo em sua busca por sentido que dá forma ao romance. Tentaremos descrevê-lo aqui brevemente.

Enquanto na epopéia temos “uma totalidade de vida acabada por ela mesma” (LUKÁCS, 1962, p.66), no romance temos que “descobrir e edificar a totalidade da vida” (IBIDEM). O ser da epopéia perde-se em seu mundo de conceitos e suas normas indiscutidas, pois estes refletem um deve-ser, e este deve-ser (“refúgio das essências” tornadas livres no mundo) mata a vida.

Sendo o Romance “a epopéia de um tempo em que a totalidade extensiva da vida não é já dada de maneira imediata” (IDEM, 1962, p.61), abre-se espaço para a busca, para a ação individual e o indivíduo que escolhe seus caminhos e fins. E este trajeto é repleto de inseguranças, pois estes momentos já não são imediatamente dados, constituem um procedimento dialético entre o “eu” e seu desafio, o mundo. O trajeto do herói romanesco transforma-se em relação ao herói épico, o destino a ser traçado é acima de tudo pessoal, e não o de toda uma comunidade, que “é uma totalidade concreta, orgânica e, por isso, rica nela mesma de sentido”. (IDEM, 1962, p. 66). “O romance é a forma da aventura, aquela que convém ao valor próprio da interioridade”, das provas e incertezas. “O conteúdo consiste na história dessa alma que entra no mundo para aprender a conhecer-se, que procura aventuras para se experimentar nelas e, por meio desta prova, dá a sua medida e descobre a sua própria essência”. (IDEM, 1962, p.102) Na comunidade, o individual nasce de uma relação harmônica com o todo e não de uma “reflexão polêmica sobre si da personalidade solitária e descaminhada” (IDEM, 1962, p.74) das sociedades modernas; o indivíduo romanesco nasce da diversidade. A existência torna-se problemática, pois o sujeito constrói seus próprios ideais (“fatos psíquicos subjetivos”) numa tentativa de imediatizar os objetos de sua busca. Porém, na maioria das vezes esses ideais limitam-se a fatos psíquicos, pois são desconexos da realidade social, tornando-se inalcançáveis, “empiricamente falando, irreais”. (IDEM, 1962, p.87) O “eu” é capaz de sentir a intenção social estruturante (coercitiva) do mundo, e o motor da criação romanesca passa a ser esta relação entre indivíduo e sociedade (“subjetividade” e “objetividade”) e a tentativa daquele em se manter autônomo.

Mas a busca pela totalidade na forma do romance passa também pela “imperfeição” do mundo e a “resignação” da subjetividade. Dessa maneira a forma é dissolvida em “heterogeneidade desarmônica”. E é justamente este fato que consolida o romance como arte, “ele interpreta por meio de seu substrato o estado atual do espírito, mas também porque o seu caráter de processo só exclui o acabamento do ponto de vista do conteúdo” (IDEM, 1962, p.81).

Agora vejamos a forma exterior do romance. Para Lukács o romance é exteriormente “essencialmente biográfico”. Esta “significa uma vitória sobre um mal infinito” (IDEM, 1962, p.91). Ela organiza, entre as infinitas possibilidades, as experiências do mundo que farão parte do enredo, e estas limitam-se às que têm sentido para a personagem principal em sua marcha por auto-conhecimento. Ainda estrutura e seleciona as demais personagens, situações sociais e acontecimentos cotidianos conferindo-lhes razão na relação de cada um destes elementos singulares com o sujeito central da história e seu “problema vital que põe a claro o curso de sua existência” (IBIDEM). O “indivíduo problemático” da forma biográfica constitui, em sua marcha incerta para si, a forma interior do romance. Quando ele abre mão de seus ideais – que são as causas maiores de seu conflito com o mundo, tendo um caráter puramente negativo em seu destino – e se sujeita à realidade heterogênea desprovida de significação, ele passa à condição de ser. Entretanto, nunca chega a desaparecer completamente a separação entre o dever-ser. “A imanência do sentido tal como exige a forma é então obtida relativamente ao vivido de uma experiência que ensina o homem que esta simples visão do sentido é a mais alta graça que lhe pode conceder a vida, o único objetivo porque vale a pena por em jogo a vida inteira...”. (IDEM, 1962, p.90).

O indivíduo do romance termina assim sua “marcha” mostrando-se capaz de criar um mundo completo (em relação às suas experiências vividas) que se mantém em equilíbrio. E este é o ponto positivo para o “eu”. O ser que reflete as experiências mundanas encontra a totalidade, dando um teor épico para o romance. Mas devido a esta exaltação à subjetividade, o herói romanesco acaba reduzindo-se a um “instrumento cuja situação central depende exclusivamente da sua aptidão para revelar uma problemática do mundo” (IDEM, 1962, p.93). Dessa maneira o romance também confere, ironicamente, uma situação negativa ao homem moderno, sua existência está sujeita a envolver os leitores numa problemática que não é só sua, o indivíduo é também, pois, social.

 

CONCLUSÃO

Lukács e Ortega têm evidentes semelhanças em seus pensamentos acerca do romance. No entanto, seus princípios epistemológicos são diferentes, o que obviamente gera contrastes entre os dois filósofos.

Como esperamos ter ficado claro nos capítulos anteriores, Ortega y Gasset e Lukács fazem suas análises do romance na contraposição deste gênero com o épico grego. Mas já desse ponto de partida surge uma diferença importante entre os autores. Se no caso do espanhol pensar que o romance é derivado do épico é “fechar o caminho para compreender as vicissitudes do gênero romanesco (...) romance e épico são justamente o contrário” (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 83), para Lukács tanto epopéia quanto romance são “as duas objetivações da literatura épica” (LUKÁCS, 1962, p. 61), inserindo esse processo em uma “historização hegeliana”, como nos indica Medina, tendência que se torna visível em trechos como: “o romance é a forma de virilidade amadurecida; por oposição à infantilidade normativa da epopéia” (IDEM, 1962, p. 79). O húngaro, usando a dialética hegeliana, analisa o espírito humano em seu caminho por autoconhecimento. Para ele a “história eleva-se ao conceito ou pelo menos manifesta através do tempo, porque ela participa da mais elevada atividade filosófica, a que revela efetivamente o real no seu movimento. Tenhamos em mente que por conceito não se deve entender, como se fez não poucas vezes, a velha oposição que distinguia de forma estanque a essência e o fenômeno, porém ‘a mais elevada dialética’, isto é, a do espírito vivo que capta a realidade em sua totalidade”. (VÉDRINE, 1975). O romance é épico porque, com a perda imediata da totalidade, o homem tem de buscá-la, e essa procura por um sentido da vida é permeada de aventuras e perigos, já que um mundo diferente do eu passa a ser hostil. Como o homem está no mundo em busca de autoconhecimento, se quisermos compreender o sujeito temos que entender que a busca por si mesmo é uma mediação entre o seu ser atual e seu ser que virá a ser outro na sua busca pela consciência de si. A própria forma exterior do romance permite a idéia de totalidade, já que ela é, como dissemos anteriormente, essencialmente biográfica, não se perdendo assim na heterogeneidade do mundo. Esse caráter do romance possibilita, por exemplo, a simultaneidade dos fatos, a percepção simultânea das ações no espaço/tempo.

Na estética orteguiana, apesar de aceitar a diferenciação histórica dos gêneros, essa oposição se dá por uma alteração da sensibilidade vital, que é algo geracional, e encontra nos períodos grego e moderno a sua contradição máxima, o que também se expandirá para a arte literária. Na epopéia não há separação entre essência e forma. Isto porque os gregos buscam descrever um passado mítico, no qual homens e Deuses viviam na mesma esfera. O romance é o resultado do conteúdo moderno. A filosofia na modernidade é cientificista, não busca a essência e sim as aparências. Isto influencia diretamente o romance, que passa a ter como foco central o cotidiano. Ao invés de falar em uma evolução hegeliana do espírito, como parece ser o caso de Lukács, nós pensamos ser mais apropriado falar em uma mudança de categorias, em um termo mais próximo ao kantismo, que possibilitam ao homem ver o mundo (e isso implica também o deixar de ver, como aponta o próprio Ortega) de uma forma diferente, com uma intencionalidade prévia: “faz falta ir até o fundo e reconhecer que as categorias da mente humana não foram sempre as mesmas” (ORTEGA Y GASSET, 2003 p. 33). Para Ortega as categorias são a forma que se tem de entrar em contato com o real.

Esta discordância quanto à continuidade dos gêneros literários não os impede, no entanto, de apontar como causa do surgimento do romance moderno uma nova disposição do eu com o mundo. A perspectiva adotada pelo jovem Lukács se baseia em um deslocamento do eu em relação ao mundo, que se torna vasto, aberto, em comparação com as “civilizações fechadas”, que repousavam na totalidade, sendo homem e mundo um só, sem maiores segredos e mistérios. Agora um verdadeiro abismo se abre entre o indivíduo e o mundo. Nada muito diferente do que se encontram nas Meditaciones de Ortega: “o mundo antigo parece uma pura corporalidade, sem morada e segredos interiores” (ORTEGA Y GASSET, 2001, p.99).

Um aspecto significante da relação Lukács/Ortega são as noções de aventura e herói no romance. Não pretendemos nos prolongar muito neste aspecto, que já foi bem fundamentado na obra Los profetas y el mesías, de Francisco Villegas, mas vale a pena destacar algumas noções importantes. Fortemente influenciados pelo mestre kantiano George Simmel e seu ensaio “Sobre a aventura”, que coloca a aventura como “o evento que rompe a continuidade da vida cotidiana” (VILLEGAS, 1998, p. 78), Nossos autores não deixam de introduzir esse assunto de forma destacada em seus livros. A visão de Lukács sobre o tema já foi exposta na parte que dedicamos ao filósofo húngaro, e poderíamos resumir como sendo a busca (ou o processo) de um sentido para a existência, perdido na amplitude de possibilidades que o mundo moderno passa a dispor. As idéias orteguianas sobre o tema são ainda mais próximas das de Simmel, como fica inequívoco na seguinte passagem das Meditaciones: “A aventura quebra como um cristal a opressora, insistente realidade. É o imprevisto, o impensado, o novo. Cada aventura é um novo nascer do mundo, um processo único” (ORTEGA Y GASSET, 2001, p. 94). Herói é, para Ortega y Gasset, aquele que procura ser ele mesmo nas batalhas do dia-a-dia. Dom Quixote é o grande exemplo utilizado, afinal ele, “que é real, quer realmente as aventuras” (IDEM, 2001, p. 98).

         As perspectivas orteguianas e lukàcsianas também parecem ter influenciado autores modernos. Afinal, Ian Watt conclui que para termos interesse nas histórias sobre o cotidiano de pessoas comuns presentes no romance, temos o pressuposto de a sociedade dar muita importância ao indivíduo, evidenciando o individualismo moderno [5]. E Franco Moretti, assim como Ortega y Gasset, analisa a forma romanesca como resultado do conteúdo moderno, com o italiano dando ênfase ao sério século XIX, marcado pela vida calma e tranqüila da burguesia européia e seus lemas de impessoalidade, regularidade e precisão, que resultarão em longos “enchimentos”, recurso literário no qual descreve-se os fatos cotidianos da vida burguesa e que constituem a maior parte dos romances oitocentistas.

  

NOTAS

[1] Alexander D. A. Couto Englander: Graduando do 3º período do curso de Ciências Sociais da UFRJ.

[2] Andre Veiga Bittencourt: Graduando do 3º período do curso de Ciências Sociais da UFRJ.

[3] Essa característica formal da descrição é também apontada por Ian Watt no livro A ascensão do romance. Segundo o autor, isso se deve à influência do empirismo inglês (via John Locke), e tem como objetivo “fazer as palavras trazerem-nos seu objeto em toda sua particularidade concreta” (WATT, 1996, p. 29).

[4] É de se notar que estas três qualidades fundamentais do romance para Ortega y Gasset correspondem ao que Watt coloca como fator determinante do romance: a particularidade. Os personagens são individuais, o tempo é próprio e não mais imemorial e o ambiente passa a ser específico, resultado do caráter descritivo deste gênero. Há preocupação com as experiências concretas, e não mais com as verdades universais. 

[5] Ian Watt e Ortega se opõem, no entanto, no tema da função do romancista. Segundo o autor da Ascensão do romance, a técnica do escritor não pode de modo algum interferir no relato. Para o escritor espanhol, a razão do gosto que se tem pelo romance é justamente sua intervenção, que se torna necessária devido à trivialidade dos fatos descritos. Na épica, sim, afirma Ortega, seria necessária a isenção do narrador.

  

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LUKÁCS, G. Teoria do romance. Lisboa: Editorial Presença, 1962.

MEDINA, J.L. Ortega y Gasset. Madrid: Ediciones del Orto, 1997.

MORETTI, F. O século sério. Novos Estudos, São Paulo, 2003, n° 65, pp. 3-33.

ORTEGA Y GASSET, J. El tema de nuesto tiempo, Madrid: Editorial Espasa Calpe S.A., 2003

____. La deshumanización del arte. Madrid: Editorial Espasa Calpe S.A., 1997

____. Meditaciones del Quijote. Madrid: Alianza Editorial, 2001.

VÉDRINE, H. As filosofias da história – decadência ou crise. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1975.

VILLEGAS, F.B.G. Los profetas y el mesías, México, DF: Fondo de Cultura Económica, 1998.

VOEGELIN, E. A nova ciência da política. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1982.

WATT, I. A ascensão do romance. São Paulo: Cia das Letras, 1996, pp. 11-83.

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