O PENSAMENTO ÉTICO DE JUNG E A GLOBALIZAÇÃO

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Trabalho apresentado como tema livre no IX Simpósio Nacional da Associação Junguiana do Brasil, Lindóia, SP. Outubro de 2001.

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Um ente atravessou meu caminho. Epifanicamente mostrou sua face,obrigando-me a pensar algo sobre ele, como fazem os símbolos segundo Paul Ricoeur: eles se dão a pensar. Estou falando de um pequeno morcego que apareceu no exato instante em que recebia o prospecto deste congresso junguiano, forçando-me a seguí-lo por uma série de associações que me forneceram a temática do que vou tratar aqui. A esse morcego dedico este trabalho. Farei mais. Vou compartilhá-lo com vocês, ao mesmo tempo que sou obrigado a lhe pedir desculpas, pois corro o risco de ser profundamente injusto e falar coisas que ele pode, absolutamente, não concordar. Pensei este morcego como um vampiro chupador de sangue alheio. É nesse momento que posso estar sendo injusto com este pequeno animal. Primeiro, fazendo um grande bloco e reduzindo todos os morcegos a um único tipo, aqueles que se alimentam de sangue. Segundo, moralizando um fenômeno natural: os morcegos que se alimentam de sangue são apenas seres que fazem parte de uma complexa cadeia alimentar. Em seu comportamento, obviamente, nada há de condenatório, pois apenas seguem o seu programa biológico. Segundo Jung, são pios, ou seja, são obedientes e cumprem a vontade de Deus. Eles não estão sendo anti-éticos. Porém, no momento em que comparo este comportamento com formas semelhantes de agir dos seres humanos é que podemos pensar em abuso, agressão, erro, ou seja, toda uma família de palavras usadas para condenar algum tipo de ação.
Foi por esse caminho que o morcego me conduziu, ou que eu conduzi o morcego: pensá-lo como vampiro, compará-lo com ações humanas para, no final, condená-las como anti-éticas.
Tudo isto me veio porque me lembrei de dois filmes que vi há muito tempo atrás, que tratam destas questões. Mais do que os filmes, lembrei-me de seus títulos. Duas palavras da língua dos indios Hopi, simples e profundas ao mesmo tempo, quase conceitos filosóficos. A primeira é Koyaanisqatsi. Seus significados são vários: vida louca; vida confusa; vida desintegradora; vida desequilibrada; e a última e mais interessante, um estado de vida que exige outro modo de viver. A segunda palavra é Powaqqatsi, substantivo composto por powaq, que significa feiticeiro e qatsi, vida. O sentido geral se refere a uma entidade ou modo de vida que consome as forças vitais de outros seres, com o intuito de aumentar suas próprias forças. É a partir destas duas palavras que quero pensar a globalização, pois ela é muito mais do que simplesmente a possibilidade de comprarmos canetas coloridas e cheirosas, fabricadas no Japão. Há toda uma série de conseqüências políticas e econômicas nefastas nesse processo, especialmente para nós, brasileiros e latinoamericanos, que fazemos parte do terceiro mundo, que é, dependendo do ponto de vista, quase mundo nenhum. Por exemplo, em Espectros de Marx, Jacques Derrida faz um comentário que em nada nos espanta.

Portanto, deve ser anunciado, no momento em que alguém tem a audácia de neo-evangelizar em nome do ideal de uma democracia liberal que finalmente compreendeu a si-mesma como o ideal da história humana: nunca a violência, desigualdade, exclusão, fome e opressão econômica afetaram tantos seres humanos na história da terra e da humanidade.

Falei em ponto de vista. Essa é uma das questões cruciais em relação ao problema da globalização. Além do mais, ela nos remete a um dos efeitos mais aberrantes deste pensamento, a idéia de fim da história, desenvolvida pelo cientista político americano Francis Fukuyama. Segundo seu entendimento, nós atingimos “o ponto final da evolução ideológica da humanidade”. Este ponto final é, obviamente, a democracia liberal. Todos os povos devem se encaminhar para esta forma de governo e sua ideologia capitalista. Mais grave ainda é que esta posição não se vê como um ponto de vista ou como ideologia. Ela é apresentada como o produto lógico de fatos materiais. Zygmunt Bauman, um dos grandes teóricos da globalização e do pós-modernismo, escreveu que a globalização "reivindica sua própria imunidade ao questionamento" e que, embutida nesta proposta, está um "viver sem alternativas".
Resumindo: a democracia liberal capitalista, movida por leis de mercado cada vez mais abstratas e desterritorializadas, é concebida como a meta, o telos, da história. Alcançado este ponto, não haveria mais mudanças, a não ser aguardar pacientemente que todos os povos atinjam este mesmo estágio de desenvolvimento. Vou insistir. Tudo isto é passado como se fosse o processo natural da evolução histórica e não como uma ideologia que é imposta a todos, gerando, nas palavras de Bauman, "a tentação de reduzir a diferença à força".
Neste instante lanço duas questões. A psicologia junguiana é passível de ser contaminada por este pensamento globalizante? É possível, através das idéias e conceitos junguianos, criticar este movimento de globalização e o telos do fim da história?
Como podemos observar, duas questões opostas. A ambas eu respondo afirmativamente. A própria psicologia analítica é habitada por forças globalizantes e totalitárias, ao mesmo tempo em que podemos encontrar em seu corpus momentos onde ela cria resistências e problematizações destas mesmas posições globalizantes.
Minha proposta aqui está, devo confessar, destinada ao fracasso, devido ao escasso tempo para desenvolvê-la. Peço, portanto, que recebam esta comunicação como uma introdução a uma introdução de um trabalho que desejo escrever. Em resumo, desejo aproximar a psicologia de Jung das questões levantadas pelo filósofo Emmanuel Levinas, um dos principais pensadores franceses cuja obra gira em torno das questões éticas. Através de Levinas farei uma crítica a momentos de totalização, termo que passa próximo ao de totalidade, que habitam, segundo minha leitura, algumas posições de Jung e de autores junguianos. Para tanto será imprescindível desconstruir os conceitos de individuação, si-mesmo e totalidade.
O maior exemplo de risco de globalização totalizante na psicologia de Jung está na expressão utilizada por Aniela Jaffè em seu livro O Mito do Significado na Obra de Jung. Trata-se daquilo que ela denominou individuação da humanidade. A humanidade, conceito por si só globalizante, caminha em direção à individuação que é apresentada como tornar-se um todo. Nenhuma palavra sobre a individuação como um processo de diferenciação. Podemos imaginar uma escala hierarquizada, onde algumas culturas estariam mais próximas desta meta idealizada, enquanto outras estariam mais distantes. Não é difícil pensar isto, pois o próprio Jung nos fornece, através da imagem da árvore, com seu desenvolvimento que vai da semente à plenitude, uma das metáforas principais do processo de individuação. Através de etapas arquetípicas, posições vão sendo superadas ou integradas até atingirmos a plenitude da totalidade, numa concepção teleológica do psiquismo. Nesta corrida de obstáculos, mesmo que se afirme que esta totalidade nunca é realmente atingida, podemos chegar facilmente a uma descrição etnocêntrica da "meta". Francis Fukuyama entenderia a individuação da humanidade como o desenvolvimento inexorável em direção à democracia liberal capitalista. Toda e qualquer posição teleleológica, como a de Jung, por exemplo, facilmente nos conduziria ao estabelecimento de algum objetivo que, de longe, condicionaria todo o processo.
Aqui, porém, começarei a desconstruir. Como nos ensina Derrida, desconstruir é destacar pontos nos textos de um determinado autor onde ele próprio cria rupturas que abalam seu pensamento. Portanto, é Jung que, a despeito de falar, em toda sua obra, de teleologia, critica e refuta esta perspectiva. Isto aconteceu no primeiro seminário que proferiu em língua inglêsa, no ano de 1925. Em determinado momento, Jung advertiu contra o perigo de se estabelecer uma meta para o desenvolvimento psíquico. Faz, então, a distinção crucial entre teleologia e propósito.

A teleologia diz que há uma meta em direção a qual tudo se inclina, mas tal meta não pode existir sem pressupor uma mente que está nos dirigindo, um ponto insustentável para nós. Contudo, os processos podem possuir um caráter proposital sem ter a ver com uma meta pré-concebida. Todos os processos biológicos possuem um propósito... Fala-se da cegueira do instinto, contudo, o instinto tem um propósito.

Leio este trecho como Jung nos mostrando que psiquismo é movimento, mas um movimento inespecífico. Não há ponto de chegada, mas há movimento. Unindo isto a uma outra conceituação de Jung sobre o psiquismo, ou seja, que psique é igual à imagem, podemos lançar a seguinte proposição: psiquismo é igual a movimento em direção às imagens, não esquecendo de se enfatizar o "s" plural.
Isto me recorda um trecho de Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, onde o personagem Riobaldo fala:

O senhor... Mira veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas -- mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.

O pensamento de Levinas pode nos ajudar a realçar a força radical desta formulação e apontar o caráter essencialmente ético do processo de individuação expresso através da relação do eu com o Outro.
Segundo Levinas, o pensamento ocidental é caracterizado por um esquecimento sistemático do Outro. Este só é permitido como um momento de um processo em que ele irá, finalmente, ser compreendido, incorporado e integrado no Mesmo, um outro nome do eu. Mesmo e Outro formam uma oposição que será, em última instância, unificada. Levinas chamou esta unificação de totalidade. Como deseja pensar o homem a partir de uma posição essencialmente ética, julga imprescindível proteger o Outro de ser reduzido ao Mesmo. Em outras palavras, deseja que o Outro seja recebido em sua irredutível estranheza. A subjetividade passa a ser entendida como a abertura original ao Outro. Isto é colocado através da expressão il y a, há, ou seja, há existência e existentes, eles me antecedem e eu sou totalmente incapaz de assimilá-los. Este Outro não é um outro que eu possa compreender pela empatia. Ele é sempre um mistério essencial, nunca conhecido nem conhecível. Levinas substitui a filosofia do fenômeno pela filosofia do enigma, uma filosofia da escuridão na qual o Outro nunca é plenamente visto, conhecido ou possuído.
A problemática do Mesmo e do Outro é exemplicada por duas personagens conhecidas por todos: Ulisses e Abraão. Enquanto o primeiro parte de Ítaca em direção a Tróia, se perde por 10 anos, mas retorna ao seu ponto de origem, Abraão parte em busca de uma terra desconhecida, estabelecendo uma eterna errância. Em Ulisses, o Outro é reduzido ao Mesmo; em Abraão, o Outro é mantido inatingível enquanto Outro.
O Outro me coloca em questão e é este colocar-me em questão pelo Outro que Levinas denomina ética. Por isso, a ética é uma ótica, brota da percepção impossível do Outro que mostra sua face, se revela epifanicamente, mas nunca se constitui um objeto de percepção ou conhecimento. A imagem é sempre um discurso que nunca consigo compreender em sua plenitude.
Levinas irá acrescentar ao pensamento da totalidade, que nunca tem um fora, a idéia de infinito, inspirando-se na terceira meditação de Descartes. Nesta meditação, Descartes acrescenta à certeza da existência do eu, até então, a única não passível de dúvida, uma outra certeza. Como explicar que um ser finito pode conceber o infinito? Esta idéia só pode ter sido criada por um ser infinito. Descartes concluiu que além do sujeito há um outro ente, Deus, que Levinas reinterpreta como o absolutamente Outro que nunca poderá ser plenamente falado. O Outro é, portanto, o infinito. A relação ética me faz desejar este Outro, um desejo que nunca será satisfeito, pois não brota da falta nem se dirige à totalidade. Não é necessidade que se esforça por ser saciada, mas é desejo de infinito e transcendência.
Em seu livro mais importante, Outramente que Ser, ou Além da Essência, Levinas acrescenta uma diferenciação crucial que muito nos ajudará neste projeto de ler Jung com Levinas. Trata-se da distinção entre o Dizer e o Dito. Estes são dois aspectos da linguagem. Enquanto o dito se constitui de temas, idéias ou observações que comunicamos através do discurso, o Dizer nunca pode ser encapsulado no Dito, nunca está plenamente presente, mas apenas deixa traços nele. O Dizer é o lugar utópico onde me aproximo do Outro, onde o infinito, aquilo que me escapa, é buscado e desejado, mas, novamente, nunca plenamente apreendido.
O Dizer é, portanto, da ordem da significância, enquanto o Dito o é do significado. O Dizer nada diz que possa ser tematizado. É meramente um aqui estou ao qual estou exposto como sujeito. É um diálogo responsável com o vizinho, outro nome com que Levinas se refere ao Outro, um nome menos abstrato e mais corporal. Dialogo com o vizinho, contudo, porque não sei o que ele está me dizendo. Esta é a essência ética da minha subjetividade.
Embora tenha que reconhecer a violência que estou fazendo a Levinas, com a presunção de resumir seu complexo pensamento em poucos parágrafos, creio que o que foi apresentado já seja suficiente, neste momento, para colocá-lo em diálogo com Jung e nos ajudar a perceber a eticidade de sua psicologia.
Para isso, devemos re-pensar as considereções que Jung tece sobre o arquétipo do si-mesmo a partir das considerações levinasianas da radical alteridade do Outro. Isto não é muito difícil, pois Jung, em seu fabuloso ensaio “Sobre o Renascimento”, já estabeleceu esta alteridade. Neste texto o si-mesmo é concebido como um não-eu e a individuação uma derrota do ego. Além do mais, da mesma forma que, segundo Levinas, o Outro antecede ao sujeito, o si-mesmo, enquanto estrutura arquetípica, antecede ao ego. Uma divisão que não se deve a um processo de recalque, mas que se dá como a condição original do ser humano. Isto Levinas denomina a presença do infinito no finito. Vamos, portanto, deixar de pensar o processo de individuação como o movimento em direção à totalidade, mas pensá-lo como um movimento em direção ao infinito, o reconhecimento da existência de um Outro que epifanicamente revela sua face, dizendo-me “aqui estou”, convidando-me a ouvir seu discurso, aquilo que James Hillman chamou de retórica das imagens, sem, é importante realçar, chegar a qualquer tipo de integração total ou a qualquer espécie de deciframento final. Somos, portanto, anti-édipos, sempre devorados pelo Outro e nunca capazes de decifrar seus enigmas.
Aqui a diferença proposta por Levinas entre o Dizer e o Dito é fundamental e se encaixa perfeitamente nas reflexões de Jung sobre a formação simbólica. Se o símbolo é a melhor tentativa de se formular algo desconhecido, o que dele podemos pensar é sempre da ordem de uma aproximação, nunca de um esgotamento. À tradução completa em algo conhecido Jung chamou de signo, que podemos dizer que é a morte do desconhecido, a morte do Outro: sua radical estranheza é reduzida ao meu total conhecimento de seu sentido, dando vazão ao nosso sonho de estabilidade. A imagem simbólica se revela como um Dizer ao qual só posso responder aproximadamente com um Dito. Cada imagem é uma alteridade radical e absoluta, infinitamente me instigando. Com isso, o si-mesmo deixa de ser o arquétipo do significado, que pode ser esgotado em um Dito, passando a ser o arquétipo da significância, da ordem do Dizer, um enigma que provoca minha responsabilidade.
Se a ática da psicanálise, como sugere Lacan, é a ética do desejo, em termos de um Jung atravessado por Levinas, este desejo é desejo de si-mesmo, mas um si-mesmo como um Outro, utilizando-me da expressão de Paul Ricoeur, cuja distinção entre idem-tidade e ipsei-dade infelizmente não posso desenvolver aqui.
Como afirma Levinas, para concluir, a hospitalidade antecede a propriedade, donde podemos falar que hospedo o si-mesmo antes mesmo de me possuir. Assim, ao invés de sugar a libido das imagens do inconsciente para o engrandecimento do eu, tal qual um vampiro, a ética do processo de individuação me diz, ao contrário, para doar meu sangue, pacificamente oferecendo meu pescoço ao vizinho. Quem é, verdadeiramente, capaz disso? Este é o desafio ético lançado por Jung.

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