A CONCEPÇÃO DA DIFERENÇA EM BERGSON (DL)

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Gilles Deleuze (1956)

 

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tomado de

GILLES DELEUZE

A ILHA DESERTA E OUTROS TEXTOS

Textos e entrevistas

(1953-1974)

Edição preparada por David Lapoujade

Tradução brasileira

Editora Iluminuras

2004

 

A noção de diferença deve lançar uma certa luz sobre a filosofia de Bergson, mas, inversamente, o bergsonismo deve trazer a maior contribuição para uma filosofia da diferença. Uma tal filosofia opera sempre sobre dois planos, metodológico e ontológico. De um lado, trata-se de determinar as diferenças de natureza entre as coisas: é somente assim que se poderá “retornar” às próprias coisas, dar conta delas sem reduzi-las a outra coisa, apreendê-las em seu ser. Mas, por outro lado, se o ser das coisas está de um certo modo em suas diferenças de natureza, podemos esperar que a própria diferença seja alguma coisa, que ela tenha uma natureza, que ela nos confiará enfim o Ser. Esses dois problemas, metodológico e ontológico, remetem-se perpetuamente um ao outro: o problema das diferenças de natureza e o da natureza da diferença. Em Bergson, nós os reencontramos em seu liame,  nós  surpreendemos a passagem de um ao outro.

O que Bergson censura essencialmente a seus antecessores é não terem visto as verdadeiras diferenças de natureza. A constância de uma tal crítica nos mostra ao mesmo tempo a importância do tema em Bergson. Aí onde havia diferenças de natureza foram retidas apenas diferenças de grau. Sem dúvida, surge por vezes a censura inversa; aí onde havia somente diferenças de grau foram postas diferenças de natureza, por exemplo, entre a faculdade dita perceptiva do cérebro e as funções reflexas da medula, entre a percepção da matéria e a própria matéria[1].  Mas esse segundo aspecto da mesma crítica não tem a freqüência nem a importância do primeiro.  Para julgar acerca do mais importante, é preciso que se interrogue a respeito do alvo da filosofia. Se a filosofia tem uma relação  positiva e direta com as coisas,  isso somente ocorre na  medida em que ela pretende apreender a coisa mesma a partir daquilo que tal coisa é,  em sua diferença a respeito de tudo aquilo que não é ela, ou seja, em sua diferença interna. Objetar-se-á que a diferença interna não tem sentido, que uma tal noção é absurda; mas, então, negar-se-á, ao mesmo tempo, que haja diferenças de natureza entre coisas do mesmo gênero. Ora, se há diferenças de natureza entre indivíduos de um mesmo gênero, deveremos reconhecer, com efeito, que a própria diferença não é simplesmente espaço-temporal, que não é tampouco genérica ou específica, enfim, que não é exterior ou superior à coisa. Eis por que é importante, segundo Bergson, mostrar que as idéias gerais nos apresentam, ao menos mais freqüentemente, dados extremamente diferentes em um agrupamento tão-só utilitário: “Suponhais que, examinando os estados agrupados sob o nome de prazer, nada de comum se descubra entre eles,  a não ser serem estados buscados pelo homem: a humanidade terá classificado coisas muito diferentes em um mesmo gênero, porque encontrava nelas o mesmo interesse prático e reagia a todas da mesma maneira” [2]. É nesse sentido que as diferenças de natureza são já a chave de tudo: é preciso partir delas, é preciso inicialmente reencontrá-las.  Sem prejulgar a natureza da diferença como diferença interna, sabemos já que ela existe, supondo-se que haja diferenças de natureza entre coisas de um mesmo gênero.  Logo, ou bem a filosofia se proporá esse meio e esse alvo (diferenças de natureza para chegar à diferença interna), ou bem ela só terá com as coisas uma relação negativa ou genérica, ela desembocará no elemento da crítica ou da generalidade, em todo caso em um estado da reflexão tão-só exterior. Situando-se no primeiro ponto de vista, Bergson propõe o ideal da filosofia: talhar, “para o objeto, um conceito apropriado tão-somente ao objeto, conceito do qual mal se pode dizer que seja ainda um conceito, uma vez que só se aplica unicamente a esta coisa” [3]. Essa unidade da coisa e do conceito é a diferença interna, à qual nos elevamos pelas diferenças de natureza.

 

A intuição é o gozo da diferença. Mas ela não é somente o gozo do resultado do método, ela própria é o método. Como tal, ela não é um ato único, ela nos propõe  uma pluralidade de atos, uma pluralidade de esforços e de direções[4]. Em seu primeiro esforço, a intuição é a determinação das diferenças de natureza. E como essas diferenças estão entre as coisas,  trata-se de uma verdadeira distribuição, de um problema de distribuição. É  preciso dividir a realidade segundo suas articulações[5], e Bergson cita de bom grado o famoso texto de Platão sobre o corte e o bom cozinheiro. Mas a diferença de natureza entre duas coisas não é ainda a diferença interna da própria coisa. Das articulações do real devemos distinguir as linhas de fatos [6], que definem um outro esforço da intuição. E, se em relação às articulações do real a filosofia bergsoniana se apresenta como um verdadeiro “empirismo”, em relação às linhas de fatos ela se apresentará sobretudo como um “positivismo”, e mesmo como um probabilismo. As articulações do real distribuem as coisas segundo suas diferenças de natureza, formam uma diferenciação. As linhas de fatos são direções, cada uma das quais se segue até a extremidade, direções que convergem para uma única e mesma coisa; elas definem uma integração, constituindo cada qual uma linha de probabilidade. Em A energia espiritual, Bergson nos mostra a natureza da consciência no ponto de convergência de três linhas de fatos[7]. Em As duas fontes, a imortalidade da alma está na convergência de duas linhas de fatos[8]. Neste sentido, a intuição não se opõe à hipótese, mas a engloba como hipótese. Em resumo, as articulações do real correspondem a um corte e as linhas de fato correspondem a uma “interseção” [9]. O real, a um só tempo, é o que se corta e se interseciona. Seguramente, os caminhos são os mesmos nos dois casos, mas o importante é o sentido que se tome neles, seguindo a divergência ou pegando o rumo da convergência. Pressentimos sempre dois aspectos da diferença: as articulações do real nos dão as diferenças de natureza entre as coisas; as linhas de fatos nos mostram a coisa mesma idêntica a sua diferença, a diferença interna idêntica a alguma coisa.   

Negligenciar as diferenças de natureza em proveito dos gêneros é, portanto, mentir para com a filosofia. Perdemos as diferenças de natureza. Encontramo-nos diante de uma ciência que as substituiu por simples diferenças de grau, e diante de uma metafísica que, mais especialmente, as substituiu  por simples diferenças de intensidade. A primeira questão é concernente à ciência: como fazemos para ver somente diferenças de grau?  “Dissolvemos as diferenças qualitativas na homogeneidade do espaço que as subtende” [10]. Sabemos que Bergson invoca as operações conjugadas da necessidade, da vida social e da linguagem, da  inteligência e do espaço,  sendo o  espaço aquilo que  a inteligência faz de uma matéria que a isso se presta. Em resumo, substituímos as articulações do real pelos modos só utilitários de agrupamento. Mas não é isso o mais importante; a utilidade não pode fundar o que a torna possível. Assim, é preciso insistir sobre dois pontos. Primeiramente, os graus têm uma realidade efetiva e, sob uma outra forma que não a espacial, estão eles já compreendidos de um certo modo nas diferenças de natureza: “por detrás de nossas distinções de qualidade”, há quase sempre números[11]. Veremos que uma  das idéias mais curiosas de Bergson é que a própria diferença tem um número, um número virtual,  uma espécie de número numerante. A utilidade, portanto, tão-somente libera e expõe os graus compreendidos na diferença até que esta seja apenas uma diferença de grau. Mas, por outro lado, se os graus podem se liberar para, por si sós,  formar diferenças, devemos buscar a razão disso no estado da experiência. O que o espaço apresenta ao entendimento, o que o entendimento encontra no espaço, são coisas, produtos, resultados e nada mais. Ora, entre coisas (no sentido de resultados), só há e só pode haver diferenças de proporção[12] . O que difere por natureza não são as coisas, nem os estados de coisas, não são as características, mas as tendências. Eis porque a concepção da diferença específica não é satisfatória: é preciso estar atento não à presença de características, mas a sua tendência a desenvolver-se. “O grupo não se definirá mais pela  posse  de  certas características,  mas  por sua tendência a acentuá-las” [13]. Assim, em toda sua obra, Bergson mostrará que a tendência é primeira não só em relação ao seu produto, mas em relação às causas deste no tempo, sendo as causas sempre obtidas retroativamente a partir do próprio produto: em si mesma e em sua verdadeira natureza, uma coisa é a expressão de uma tendência antes de ser o efeito de uma causa. Em uma palavra, a simples diferença de grau será o justo estatuto das coisas separadas da tendência e apreendidas em suas causas elementares. As causas são efetivamente do domínio da quantidade. Consoante seja ele encarado em seu produto ou em sua tendência, o cérebro humano, por exemplo,  apresentará com o cérebro animal uma simples diferença de grau ou toda uma diferença de natureza [14]. Assim, diz Bergson, de um certo ponto de vista,  as  diferenças  de  natureza  desaparecem  ou  antes  não  podem  aparecer. “Colocando-se nesse ponto de vista”,  escreve ele a propósito da religião estática e da religião dinâmica, “aperceber-se-iam uma série de transições e como que diferenças de grau, lá onde realmente há uma diferença radical de natureza” [15]. As coisas, os produtos, os resultados, são sempre mistos. O espaço apresentará sempre e a inteligência só encontrará mistos, misto do fechado e do aberto, da ordem geométrica e da ordem vital, da percepção e da afecção, da percepção e da memória...etc. É preciso compreender que o misto é sem dúvida uma mistura de tendências que diferem por natureza,  mas,  como mistura, é um estado de coisas em que é impossível apontar qualquer diferença de natureza. O misto é o que se vê do ponto de vista em que, por natureza, nada difere de nada. O homogêneo é o misto por definição, porque o simples é sempre alguma coisa que difere por natureza: somente as tendências são simples,  puras. Assim, só podemos encontrar o que difere realmente reencontrando a tendência para além de seu produto. É preciso que nos sirvamos daquilo que o misto nos apresenta, das diferenças de grau ou de proporção, uma vez que não dispomos de outra coisa, mas delas nos serviremos somente como uma medida da tendência para chegar à tendência como à razão suficiente da proporção. “Esta diferença de proporção bastará para definir o grupo em que ela se encontra, se se pode estabelecer que ela não é acidental e que o grupo, à medida que evoluía, tendia cada vez mais a pôr o acento sobre essas características particulares” [16].

 

A metafísica, por sua vez, só retém diferenças de intensidade. Bergson nos mostra essa visão da intensidade percorrendo a metafísica grega: como esta define o espaço e o tempo como uma simples distensão, uma diminuição de ser, ela só encontra entre os seres propriamente ditos diferenças de intensidade, situando-os entre os dois limites de uma perfeição e de um nada [17]. Precisamos ver como nasce tal ilusão, o que a leva a fundar-se, por sua vez, nas próprias diferenças de natureza. Notemos, desde já, que ela repousa menos sobre as idéias mistas do que sobre as pseudo-idéias, a desordem, o nada. Mas estas são ainda uma espécie de idéias mistas [18],  e a ilusão de intensidade repousa em última instância sobre a de espaço. Finalmente, só    um tipo de falsos problemas, os problemas que não respeitam em seu enunciado as diferenças de natureza. É um dos papéis da intuição o de denunciar  seu caráter arbitrário.

Para chegar às verdadeiras diferenças, é preciso reencontrar o ponto de vista que permita dividir o misto. São as tendências que se opõem duas a duas, que diferem por natureza. A tendência é que é sujeito. Um ser não é o sujeito, mas a expressão da tendência, e, ainda, um ser é somente a expressão da tendência à medida que ela é contrariada por uma outra tendência. Assim, a intuição apresenta-se como um método da diferença ou da divisão: dividir o misto em duas tendências. Esse método é coisa distinta de uma análise espacial, é mais do que uma descrição da experiência e menos (aparentemente) do que uma análise transcendental. Ele eleva-se até as condições do dado, mas tais condições são tendências-sujeito, são elas mesmas dadas de uma certa maneira, são vividas. Além disso. são ao mesmo tempo o puro e o vivido, o vivente e o vivido, o absoluto e o vivido. Que o fundamento seja fundamento, mas que não deixe de ser constatado, é isso o essencial, e sabemos o quanto Bergson insiste sobre o caráter empírico do impulso vital. Não devemos então nos elevar às condições como às condições de toda experiência possível, mas como às condições da experiência real: Schelling já se propunha esse alvo e definia sua filosofia como um empirismo superior. A fórmula é também adequada ao bergsonismo. Se tais condições podem e devem ser apreendidas em uma intuição, é justamente porque elas são  as condições da experiência real,  porque elas não são mais amplas que o condicionado, porque o conceito que elas formam é idêntico ao seu objeto. Portanto, não é o caso de se espantar quando se encontra em Bergson uma espécie de princípio de razão suficiente e dos indiscerníveis. O que ele recusa é uma distribuição que põe a razão no gênero ou na categoria e que deixa o indivíduo na contingência, ou seja, no espaço. É preciso que a razão vá até ao indivíduo, que o verdadeiro conceito vá até a coisa, que a compreensão chegue até o “isto”. Por que isto antes que aquilo, eis a questão da diferença, que Bergson propõe sempre. Por que uma  percepção vai evocar tal lembrança antes que uma outra? [19]  Por que a percepção vai “colher” certas freqüências, por que estas antes que outras? [20]  Por que tal tensão da duração? [21] De fato, é preciso que a razão seja razão disso que Bergson denomina nuança. Na vida psíquica não há acidentes [22]: a nuança é a essência. Enquanto não achamos o conceito que só convenha ao próprio objeto, “o conceito único”, contentamo-nos com explicar o objeto por meio de vários conceitos, de idéias gerais “das quais se supõe que ele participe” [23] : o que escapa, então, é que o objeto seja este antes que um outro do mesmo gênero, e que neste gênero haja tais proporções antes que outras. Só a tendência é a unidade do conceito e de seu objeto, de tal  modo que o objeto não é mais contingente nem o conceito geral. Mas é provável que todas essas precisões concernentes ao método não evitem o impasse em que esse parece culminar. Com efeito, o misto deve ser dividido em duas tendências: as diferenças de proporção no próprio misto não nos dizem como encontraremos tais  tendências,  qual é a regra de divisão. Ainda mais, das duas tendências, qual será a boa? As duas não se equivalem,  diferem em valor,  havendo sempre uma tendência dominante. E é somente a tendência dominante que define a verdadeira natureza do misto,  apenas ela é conceito único e só ela  é pura,  pois ela é a pureza da coisa correspondente: a outra tendência é a impureza que vem comprometer a primeira, contrariá-la. Os comportamentos animais nos apresentam o instinto como tendência dominante, e os comportamentos humanos apresentam a inteligência. No misto da percepção e da afecção, a afecção desempenha o papel da impureza que se mistura à percepção pura [24]. Em outros termos, na divisão, há uma metade esquerda e uma metade direita. Sobre o que nos regulamos para determiná-las? Reencontramos sob essa forma uma dificuldade que Platão já encontrava. Como responder a Aristóteles, quando este notava que o método platônico da diferença era apenas um silogismo fraco, incapaz de concluir em qual metade do gênero dividido se alinhava a idéia buscada, uma vez que o termo médio faltava? E Platão parece ainda mais bem armado que Bergson,  porque a idéia de um Bem transcendente pode efetivamente guiar a escolha da boa metade. Mas Bergson recusa em geral o recurso à finalidade, como se ele quisesse que o método da diferença se bastasse a si  próprio.

 

A dificuldade talvez seja ilusória. Sabemos que as articulações do real não definem a essência e o alvo do método. A diferença de natureza entre as duas tendências é sem dúvida um progresso sobre a diferença de grau entre as coisas, sobre a diferença de intensidade entre os seres. Mas ela não deixa de ser uma diferença exterior, uma diferença ainda externa. Nesse ponto não falta à intuição bergsoniana, para ser completa, um termo exterior que lhe possa servir de regra; ao contrário, ela apresenta ainda muita exterioridade. Tomemos um exemplo: Bergson mostra que o tempo abstrato é um misto de espaço e de duração e que, mais profundamente, o próprio espaço é um misto de matéria e duração, de matéria e memória. Então, eis que o misto se divide em duas tendências: com efeito, a matéria é uma tendência, já que é definida como um afrouxamento; a duração é uma tendência, sendo uma contração. Mas, se consideramos todas as definições, as descrições e as características da duração na obra de Bergson, apercebemo-nos que a diferença de natureza, finalmente, não está entre essas duas tendências. Finalmente, a própria diferença de natureza é uma das duas tendências, e se opõe à outra. Com efeito, o que é a duração? Tudo o que Bergson diz acerca dela volta sempre a isto: a duração é o que difere de si. A  matéria, ao contrário, é o que não difere de si, o que se repete. Em Os dados imediatos, Bergson não mostra somente que a intensidade é um misto que se divide em duas tendências, qualidade pura e quantidade extensiva, mas, sobretudo, que a intensidade não é uma propriedade da sensação, que a sensação é qualidade pura, e que a qualidade pura ou a sensação difere por natureza de si mesma. A sensação é o que muda de natureza e não de grandeza[25]. A vida psíquica, portanto, é a própria diferença de natureza: na vida psíquica há sempre outro sem jamais haver número ou vários[26]. Bergson distingue três tipos de movimentos, qualitativo, evolutivo e extensivo[27], mas a essência de todos eles, mesmo da pura translação como o percurso de Aquiles, é a alteração. O movimento é mudança qualitativa, e a mudança qualitativa é movimento[28]. Em suma, a duração é o que difere, e o que difere não é mais o que difere de outra coisa, mas o que difere de si. O que difere tornou-se ele próprio uma coisa, uma substância. A tese de Bergson poderia exprimir-se assim: o tempo real é alteração, e a alteração é substância. A diferença de natureza, portanto, não está mais entre duas coisas, entre duas tendências, sendo ela própria uma coisa, uma tendência que se opõe à outra. A decomposição do misto não nos dá simplesmente duas tendências que diferem por natureza, ela nos dá a diferença de natureza como uma das duas tendências. E, do mesmo modo que a diferença se tornou substância, o movimento não é mais a característica de alguma coisa, mas tomou ele próprio um caráter substancial, não pressupõe qualquer outra coisa,  qualquer móvel [29]. A duração, a tendência é a diferença de si para consigo; e o que difere de si mesmo é  imediatamente a unidade da substância e do sujeito.

 

Sabemos, ao mesmo tempo, dividir o misto e escolher a boa tendência, uma vez que há sempre à direita o que difere de si mesmo, ou seja,  a duração, que nos é revelada em cada caso sob um aspecto,  em uma de suas “nuanças”. Notar-se-á, entretanto, que, segundo o misto, um mesmo termo está ora à direita, ora à esquerda. A divisão dos comportamentos  animais põe a inteligência do lado esquerdo – uma vez que a duração, o impulso vital, se exprime através deles como instinto – ao passo que está à direita na análise dos comportamentos humanos. Mas a inteligência só pode mudar de lado ao revelar-se, por sua vez, como uma expressão da duração, agora na humanidade: se a inteligência tem a forma da matéria, ela tem o sentido da duração, porque é órgão de dominação da matéria, sentido unicamente manifestado no homem [30]. Não é de admirar que a duração tenha, assim, vários aspectos, que são as nuanças, pois ela é o que difere de si mesmo; e será preciso ir mais longe, até o fim, até ver enfim na matéria uma derradeira nuança da duração. Mas, para compreendermos esse último ponto, o mais importante, precisamos, inicialmente, lembrar o que a diferença deveio. Ela não está entre duas tendências, ela própria é uma das tendências e se põe sempre à direita. A diferença externa deveio diferença interna. A diferença de natureza, ela própria, deveio uma natureza. Bem mais, ela o era desde o início. É nesse sentido que as articulações do real e as linhas de fatos remetiam umas às outras: as articulações do real desenhavam também linhas de fatos que nos mostravam, ao menos, a diferença interna como o limite de sua convergência, e, inversamente, as linhas de fatos nos davam também as articulações do real; por exemplo, em Matéria e memória, a convergência de três linhas diversas nos leva à verdadeira distribuição do que cabe ao sujeito, do que cabe ao objeto [31]. A diferença de natureza era exterior somente em aparência. Nessa mesma aparência, ela já se distinguia da diferença de grau, da diferença de intensidade, da diferença específica. Mas, no estado da diferença interna, outras distinções devem ser feitas agora. Com efeito, se a duração pode ser apresentada como a própria substância, é por ser ela simples, indivisível. A alteração deve, então, manter-se e achar seu estatuto sem se deixar reduzir à pluralidade, nem mesmo à contradição, nem mesmo à alteridade. A diferença interna deverá se  distinguir da contradição, da alteridade e da negação. É aí que o método e a teoria bergsoniana da diferença se oporão a esse outro método, a essa outra teoria da diferença que se chama dialética, tanto a dialética da alteridade, de Platão, quanto a dialética da contradição, de Hegel, ambas implicando a presença e o poder do negativo. A originalidade da concepção bergsoniana está em mostrar que a diferença interna não vai e não deve ir até a contradição, até a alteridade, até o negativo, porque essas três noções são de fato menos profundas que ela ou são visões que incidem sobre ela apenas de fora. Pensar a diferença interna como tal, como pura diferença interna, chegar até o puro conceito de diferença, elevar a diferença ao absoluto, tal é o sentido do esforço de Bergson.

 

A duração é somente uma das duas tendências, uma das duas metades;  mas, se é verdadeiro que em todo seu ser ela difere de si mesma, não conteria ela o segredo da outra metade? Como deixaria ainda no exterior de si isto de que ela difere, a outra tendência? Se a duração difere de si mesma, isto de que ela difere é ainda duração, de um certo modo. Não se trata de dividir a duração como se dividia o misto: ela é simples, indivisível,  pura. Trata-se de uma outra coisa: o simples não se divide, ele se diferencia. Diferenciar-se é a própria essência do simples ou o movimento da diferença. Assim, o misto se decompõe em duas tendências, uma das quais é o indivisível, mas o indivisível se diferencia em duas tendências, uma das quais, a outra, é o princípio do divisível. O espaço é decomposto em matéria e duração, mas a duração se diferencia em contração e distensão, sendo a distensão o princípio da  matéria. A forma orgânica é decomposta em matéria e impulso vital, mas o impulso  vital se diferencia em instinto e em inteligência,  sendo a inteligência  princípio da transformação da matéria em espaço. Não é da mesma maneira, evidentemente, que o misto é decomposto e que o simples se diferencia: o método da diferença é o conjunto desses dois movimentos. Mas, agora, é a respeito deste poder de diferenciação que é preciso interrogar. É ele que nos levará até o conceito puro da diferença interna. Determinar esse conceito, enfim, será mostrar de que modo o que difere da duração, a outra metade, pode ser ainda duração. 

   Em Duração e simultaneidade, Bergson atribui à duração um curioso poder de englobar a si própria e, ao mesmo tempo, de se repartir em fluxo e de se concentrar em uma só corrente, segundo a natureza da atenção[32]. Em Os dados imediatos, aparece a idéia fundamental de virtualidade, que será retomada e desenvolvida em Matéria e memória: a duração, o indivisível, não é exatamente o que não se deixa dividir,  mas o que muda de natureza ao dividir-se, e o que muda assim de natureza define o virtual ou o subjetivo. Mas é sobretudo em A evolução criadora que acharemos os ensinamentos necessários. A biologia nos mostra o processo da diferenciação operando-se. Buscamos o conceito da diferença enquanto esta não se deixa reduzir ao grau, nem à intensidade, nem à alteridade, nem à contradição: uma tal diferença é vital, mesmo que seu conceito não seja  propriamente biológico. A vida é o processo da diferença. Aqui Bergson pensa menos na diferenciação embriológica do que na diferenciação das espécies, ou seja, na evolução. Com Darwin, o problema da diferença e o da vida foram identificados nessa idéia de evolução, ainda que Darwin, ele próprio, tenha chegado a uma falsa concepção da diferença vital. Contra um certo mecanicismo, Bergson mostra que a diferença vital é uma diferença interna. Mas ele também mostra que a diferença interna não pode ser concebida como uma simples determinação: uma determinação pode ser acidental, ao menos ela só pode dever o seu ser a uma causa, a um fim ou a um acaso, implicando, portanto, uma exterioridade subsistente; além do mais, a relação de várias determinações é tão-somente de associação ou de adição[33]. A diferença vital não só deixa de ser uma determinação, como é ela o contrário disso; é, se se quiser, a própria indeterminação. Bergson insiste sempre no caráter imprevisível das formas vivas: “indeterminadas, quero dizer,  imprevisíveis”  [34]; e, para ele, o imprevisível, o indeterminado não é o acidental, mas, ao contrário,  o essencial, a negação do acidente. Fazendo da diferença uma simples determinação, ou bem a entregamos ao acaso, ou bem a tornamos necessária em função de alguma coisa, mas tornando-a acidental ainda em relação à vida. Mas, em relação à vida, a tendência para mudar não é acidental; mais ainda, as próprias mudanças não são acidentais[35], sendo o impulso vital “a causa profunda das variações” [36]. Isso quer dizer que a diferença não é uma determinação, mas é, nessa relação essencial com a vida, uma diferenciação. Sem dúvida, a diferenciação vem da resistência encontrada pela vida do lado da matéria, mas, inicialmente, ela vem, sobretudo, da força explosiva interna que a vida traz em si. “A essência de uma tendência vital é desenvolver-se em forma de feixe, criando, tão-só pelo fato do seu crescimento, direções divergentes entre as quais se distribuirá o impulso” [37]: a virtualidade existe de tal modo que se realiza dissociando-se, sendo forçada a dissociar-se para se realizar. Diferenciar-se é o movimento de uma virtualidade que se atualiza. A vida difere de si mesma, de tal modo que nos acharemos diante de linhas de evolução divergentes e, em cada linha, diante de procedimentos originais; mas é ainda e somente de si mesma que ela difere, de tal modo que, também em cada linha acharemos certos aparelhos, certas estruturas de órgãos idênticos obtidos por meios diferentes [38]. Divergência das séries, identidade de certos aparelhos, tal é o duplo movimento da vida como um todo. A noção de diferenciação traz ao mesmo tempo a simplicidade de um virtual, a divergência das séries nas quais ele se realiza e a semelhança de certos resultados fundamentais que ele produz nessas séries. Bergson explica a que ponto a semelhança é uma categoria biológica importante [39] : ela é a identidade do que difere de si mesmo, ela prova que uma mesma virtualidade se realiza na divergência das séries, ela mostra a essência subsistindo na mudança, assim como a divergência mostrava a própria mudança agindo na essência. “Que chance haveria para que duas evoluções totalmente diferentes culminassem em resultados similares através de duas séries inteiramente diferentes de acidentes que se adicionam?” [40].

 

Em As duas fontes, Bergson retorna a esse processo de diferenciação: a dicotomia é a lei da vida [41]. Mas aparece algo de novo: ao lado da diferenciação biológica aparece uma diferenciação propriamente histórica. Sem dúvida, a diferenciação biológica encontra seu princípio na própria vida, mas ela não está menos ligada à matéria, de tal modo que seus produtos permanecem separados, exteriores um ao outro. “A materialidade que elas”, as espécies, “deram a si as impede de voltar a unir-se para restabelecer de maneira mais forte, mais complexa, mais evoluída, a tendência original” DLa. No plano da história, ao contrário, é no mesmo indivíduo e na mesma sociedade que evoluem as tendências que se constituíram por dissociação. Desde então elas evoluem sucessivamente, mas no mesmo ser: o homem irá o  mais longe possível em uma direção, depois retornará rumo à outra [42]. Esse texto é ainda mais importante por ser um dos raros em que Bergson reconhece uma especificidade do histórico em relação ao vital. Qual é o seu sentido?  Significa que com o homem, e somente com o homem, a diferença torna-se consciente, eleva-se à consciência de si. Se a própria diferença é biológica,  a consciência da diferença é histórica. É verdade que não se deveria exagerar a função dessa consciência histórica da diferença. Segundo Bergson, mais ainda do que trazer o novo, ela libera do antigo. A consciência já estava aí, com e na própria diferença. A duração por si mesma é consciência, a vida por si mesma é consciência, mas ela o é de direito [43]. Se a história é o que reanima a consciência, ou, antes, o lugar no qual ela se reanima e se coloca de fato, é somente porque essa consciência idêntica à vida estava adormecida, entorpecida na matéria, consciência anulada, não consciência nula[44]. De maneira alguma a consciência é histórica em Bergson, e a história é somente o único ponto em que a consciência sobressai, tendo atravessado a matéria. Desse modo, há uma identidade de direito entre a própria diferença e a consciência da diferença: a história sempre é tão-somente de fato. Tal identidade de direito da diferença e da consciência da diferença é a memória: ela deve nos propiciar, enfim, a natureza do puro conceito.

 

Porém, antes de chegar aí, é preciso ainda ver como o processo da diferenciação basta para distinguir o método bergsoniano e a dialética. A grande semelhança entre Platão e Bergson é que ambos fizeram uma filosofia da diferença em que esta é pensada como tal e não se reduz à contradição, não vai até a contradição[45]. Mas o ponto de separação, não o único, mas o mais importante, parece estar na presença necessária de um princípio de finalidade em Platão: apenas o Bem dá conta da diferença da coisa e nos faz compreendê-la em si mesma, como no exemplo famoso de Sócrates sentado em sua prisão. Ademais, em sua dicotomia, Platão tem necessidade do Bem como da regra da escolha. Não há intuição em Platão, mas uma inspiração pelo Bem. Nesse sentido, pelo menos um texto de Bergson seria muito platônico: em  As duas fontes, ele mostra que, para encontrar as verdadeiras articulações do real, é preciso interrogar a respeito das funções. Para que serve cada faculdade, qual é, por exemplo, a função da fabulação?[46]. A diferença da coisa lhe vem aqui do seu uso, do seu fim, da sua destinação, do Bem. Mas sabemos que o recorte ou as articulações do real são tão-somente uma primeira expressão do método. O que preside o recorte das coisas é efetivamente sua função, seu fim, de tal modo que, nesse nível, elas parecem receber de fora sua própria diferença. Mas é justamente por essa razão que Bergson, ao mesmo tempo, critica a finalidade e não se atém às articulações do real: a própria coisa e o fim correspondente são de fato uma única e mesma coisa, que, de um lado, é encarada como o misto que ela forma no espaço e, por outro, como a diferença e a simplicidade de sua duração pura [47]. Já não se trata de falar de fim: quando a diferença tornou-se a própria coisa, não há mais lugar para dizer que a coisa recebe sua diferença de um fim. Assim, a concepção que Bergson tem da diferença de natureza permite-lhe evitar, ao contrário de Platão, um verdadeiro recurso à finalidade. Do mesmo modo, a partir de alguns textos de Bergson, pode-se prever as objeções que ele faria a uma dialética de tipo hegeliano, da qual, aliás, ele está muito mais longe do que daquela de Platão. Em Bergson, e graças à noção de virtual, a coisa, inicialmente, difere imediatamente de si mesma. Segundo Hegel, a coisa difere de si mesma porque ela, primeiramente, difere de tudo o que ela não é, de tal maneira que a diferença vai até à contradição. Pouco nos importa aqui a distinção do contrário e da contradição, sendo esta tão-só a apresentação de um todo como contrário. De qualquer maneira, nos dois casos, substituiu-se a diferença pelo jogo da determinação. “Não há realidade concreta em relação à qual não se possa ter ao mesmo tempo as duas visões opostas, e que, por conseguinte, não se subsuma aos dois conceitos antagonistas”[48].  Com essas duas visões pretende-se em seguida recompor a coisa, dizendo-se, por exemplo, que a duração é síntese da unidade e da multiplicidade. Ora, se a objeção que Bergson podia fazer ao platonismo era a de ater-se este a uma concepção da diferença ainda externa, a objeção que ele fez a uma dialética da contradição é a de ater-se esta a uma concepção da diferença somente abstrata. “Essa combinação (de dois conceitos contraditórios) não poderá apresentar nem uma diversidade de graus nem uma variedade de formas: ela é ou não é”[49]. O que não comporta nem graus nem nuanças é uma abstração. Assim, a dialética da contradição falseia a própria diferença, que é a razão da nuança. E a contradição, finalmente, é tão-só uma das numerosas ilusões retrospectivas que Bergson denuncia. Aquilo que se diferencia em duas tendências divergentes é uma virtualidade e, como tal, é algo de absolutamente simples que se realiza. Nós o tratamos como um real, compondo-o com os elementos característicos de duas tendências, que, todavia, só foram criadas pelo seu próprio desenvolvimento.  Acreditamos que a duração difere de si mesma por ser ela, inicialmente, o produto de duas determinações contrárias; esquecemos que ela se diferenciou por ser de início, justamente, o que difere de si mesma. Tudo retorna à crítica que Bergson faz do negativo: chegar à concepção de uma diferença sem negação, que não contenha o negativo, é este o maior esforço de Bergson. Tanto em sua crítica da desordem, quanto do nada ou da contradição, ele tenta mostrar que a negação de um termo real por outro é somente a realização positiva de uma virtualidade que continha ao mesmo tempo os dois termos. “A luta é aqui tão-só o aspecto superficial de um progresso”[50]. Então, é por ignorância do virtual que se crê na contradição, na negação. A oposição dos dois termos é somente a realização da virtualidade que continha todos dois: isso quer dizer que a diferença é mais profunda que a negação, que a contradição.

 

Seja qual for a importância da diferenciação, ela não é o mais profundo. Se o fosse, não haveria qualquer razão para falar de um conceito da diferença: a diferenciação é uma ação, uma realização. O que se diferencia é, primeiramente, o  que  difere de si mesmo, isto  é,  o  virtual.  A diferenciação não  é  o conceito, mas a produção de objetos que acham sua razão no conceito. Ocorre que, se é verdadeiro que o que difere de si deve ser um tal conceito, é necessário que o virtual tenha uma consistência, consistência objetiva que o torne capaz de se diferenciar, que o torne apto a produzir tais objetos. Em páginas essenciais consagradas a Ravaisson, Bergson explica que há duas maneiras de determinar o que as cores têm em comum[51] . Ou bem extraímos a idéia abstrata e geral de cor, “apagando do vermelho o que faz dele vermelho, do azul o que faz dele azul, do verde o que faz dele verde”, o que, então, nos coloca diante de um conceito que é um gênero, diante de objetos que são vários para um mesmo conceito, de modo que o conceito e o objeto fazem dois, sendo de subsunção a relação entre ambos, enquanto permanecemos, assim, nas distinções espaciais, em um estado da diferença exterior à coisa. Ou bem fazemos que as coisas sejam atravessadas por uma lente convergente que as conduza a um mesmo ponto, e, neste caso, o que obtemos é “a pura luz branca”, aquela que “fazia ressaltar as diferenças entre as tintas”, de modo que, então, as diferentes cores já não são objetos sob um conceito, mas as nuanças ou os graus do próprio conceito, graus da própria diferença, e não diferenças de graus, sendo agora a relação não mais de subsunção, mas de participação. A luz branca é ainda um universal, mas um universal concreto, que nos faz compreender o particular, porque está ele próprio no extremo do particular. Assim como as coisas se tornaram nuanças ou graus do conceito, o próprio conceito tornou-se a coisa. É uma coisa universal, se se quer, uma vez que os objetos se desenham aí como graus, mas um concreto, não um gênero ou uma generalidade. Propriamente falando, não há vários objetos para um mesmo conceito, mas o conceito é idêntico à própria coisa; ele é a diferença entre si dos objetos que lhe são relacionados, não sua semelhança. O conceito devindo conceito da diferença: é esta a diferença interna. O que era preciso fazer para atingir esse objetivo filosófico superior?  Era preciso renunciar a pensar no espaço: a distinção espacial, com efeito, “não comporta graus”[52]. Era preciso substituir as diferenças espaciais pelas diferenças temporais. O próprio da diferença temporal é fazer do conceito uma coisa concreta, porque as coisas aí são nuanças ou graus que se apresentam no seio do conceito. É nesse sentido que o bergsonismo pôs no tempo a diferença e, com ela, o conceito. “Se o  mais humilde papel do espírito é ligar os momentos sucessivos da duração das coisas, se é nessa operação que ele toma contato com a matéria, e se é também graças a esta operação que ele, inicialmente, se distingue da matéria, concebe-se uma infinidade de graus entre a matéria e o espírito plenamente desenvolvido”[53]. As distinções do sujeito e do objeto, do corpo e do espírito são temporais e, nesse sentido, dizem respeito a graus[54], mas não são simples diferenças de grau. Vemos, portanto, como o virtual torna-se o conceito puro da diferença, e o que um tal conceito pode ser: um tal conceito é a coexistência possível dos graus ou das nuanças. Se, malgrado o paradoxo aparente, chamamos memória essa coexistência possível, como o faz Bergson, devemos dizer que o impulso vital é menos profundo que a memória, e esta menos profunda que a duração. Duração, memória, impulso vital formam três aspectos do conceito, aspectos que se distinguem com precisão. A duração é a diferença consigo mesma; a memória é a coexistência dos graus da diferença; o impulso vital é a diferenciação da diferença. Esses três níveis definem um esquematismo na filosofia de Bergson. O sentido da memória é dar à virtualidade da própria duração uma consistência objetiva que faça desta um universal concreto, que a torne apta a se realizar. Quando a virtualidade se realiza, isto é, quando ela se diferencia, é pela vida e é sob uma forma vital;  nesse sentido, é verdadeiro que a diferença é vital. Mas a virtualidade só pôde diferenciar-se a partir dos graus que coexistiam nela. A diferenciação é somente a separação do que coexistia na duração. As diferenciações do impulso vital são mais profundamente os graus da própria diferença. E os produtos da diferenciação são objetos absolutamente conformes ao conceito, pelo menos em sua pureza, porque, na verdade, são tão-somente a posição complementar dos diferentes graus do próprio conceito. É sempre nesse sentido que a teoria da diferenciação é menos profunda que a teoria das nuanças ou dos graus.

 

O virtual define agora um modo de existência absolutamente positivo. A duração é o virtual; e este ou aquele grau da duração é real à medida que esse grau se diferencia. Por exemplo, a duração não é em si psicológica, mas o psicológico representa um certo grau da duração, grau que se realiza dentre outros e no meio de outros [55]. Sem dúvida, o virtual é em si o modo daquilo que não age, uma vez que ele só agirá diferenciando-se, deixando de ser em si, mas  guardando algo de sua origem. Mas, por isso mesmo, ele é o modo daquilo que é. Essa tese de Bergson é particularmente célebre: o virtual é a lembrança pura, e a lembrança pura é a diferença. A lembrança pura é virtual, porque seria absurdo buscar a marca do passado em algo de atual e já realizado [56]; a lembrança não é a representação de alguma coisa, ela nada representa, ela é, ou, se continuamos a falar ainda de representação, “ela não nos representa algo que tenha sido, mas simplesmente algo que é [...] é uma lembrança do presente” [57]. Com efeito, ela não tem que se fazer, formar-se, não tem que esperar que a percepção desapareça, ela não é posterior à percepção. A coexistência do passado com o presente que ele foi é um tema essencial do bergsonismo. Mas, a partir dessas características, quando dizemos que a lembrança assim definida é a própria diferença, estamos dizendo duas coisas ao mesmo tempo. De um lado, a lembrança pura é a diferença, porque nenhuma lembrança se assemelha a uma outra, porque cada lembrança é imediatamente perfeita, porque ela é uma vez o que será sempre: a diferença é o objeto da lembrança, como a semelhança é o objeto da percepção [58]. Basta sonhar para se aproximar desse mundo onde nada se assemelha a nada; um puro sonhador jamais sairia do particular, ele só apreenderia diferenças. Mas a lembrança é a diferença em um outro sentido ainda, ela é portadora da diferença; pois, se é verdadeiro que as exigências do presente introduzem alguma semelhança entre nossas lembranças, inversamente a lembrança introduz a diferença no presente, no sentido de que ela constitui cada momento seguinte como algo novo. Do fato mesmo de que o passado se conserva, “o momento seguinte contém sempre, além do precedente, a lembrança que este lhe deixou” [59]; “a duração interior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra diretamenteNRT a imagem sempre crescente do passado, seja, sobretudo, porque ele, pela sua contínua mudança de qualidade, dá testemunho da carga cada vez mais pesada que alguém carrega em suas costas à medida que vai cada vez mais envelhecendo” [60]. De uma maneira distinta da de Freud, mas tão profundamente quanto, Bergson viu que a memória era uma função do futuro, que a memória e a vontade eram  tão-só uma mesma função, que somente um ser capaz de memória podia desviar-se do seu passado, desligar-se dele, não repeti-lo, fazer o novo. Assim, a palavra “diferença” designa, ao mesmo tempo, o particular que é e o novo que se faz.  A lembrança é definida em relação à percepção da qual é contemporânea e, ao mesmo tempo, em relação ao momento seguinte no qual ela  se prolonga. Reunindo-se os dois sentidos, tem-se uma impressão incomum: a de ser agido e a de agir ao mesmo tempo[61]. Mas como deixar de reunir esses dois sentidos, uma vez que minha percepção é já o momento seguinte?

 

Comecemos pelo segundo sentido. Sabe-se qual é a importância que a idéia de novidade terá para Bergson em sua teoria do futuro e da liberdade. Mas devemos estudar essa noção no nível mais preciso, quando ela se forma, parece-nos que no segundo capítulo do Ensaio sobre os dados Imediatos . Dizer que o passado se conserva em si e que se prolonga no presente é dizer que o momento seguinte aparece sem que o precedente tenha desaparecido. Isso supõe uma contração, e é a contração que define a duração [62]. O que se opõe à contração é a repetição pura ou a matéria: a repetição é o modo de um presente que só aparece quando o outro desapareceu, o próprio instante ou a exterioridade, a vibração, a distensão. A contração, ao contrário, designa a diferença, porque, em sua essência, ela torna impossível uma repetição, porque ela destrói a própria condição de toda repetição possível. Nesse sentido, a diferença é o novo, a própria novidade.  Mas como definir a aparição de algo de novo em geral?  No segundo capítulo do Ensaio, encontra-se a retomada desse problema, ao qual Hume tinha vinculado seu nome. Hume propunha o problema da causalidade, perguntando como uma pura repetição, repetição de casos semelhantes que nada produz de novo no objeto, pode, entretanto, produzir algo de novo no espírito que a contempla.  Esse “algo de novo”, a espera da milionésima vez, eis a diferença. A resposta era que, se a repetição produzia uma diferença no espírito que a observava, isso ocorria em virtude de princípios da natureza humana e, notadamente, do princípio do hábito. Quando Bergson analisa o exemplo das batidas do relógio ou do martelo, ele propõe o problema do mesmo modo e o resolve de maneira análoga : o que se produz de novo nada é nos objetos, mas no espírito que os  contempla, é uma “fusão”, uma “interpenetração”, uma “organização”, uma conservação do precedente que não desaparece quando o outro aparece, enfim, uma contração que se faz no espírito. A semelhança vai ainda mais longe entre Hume e Bergson: assim como, em Hume, os casos semelhantes se fundiam na imaginação, mas permaneciam ao mesmo tempo distintos no entendimento, em Bergson os estados se fundem na duração, mas guardam ao mesmo tempo algo da exterioridade da qual eles advêm; é graças a esse último ponto que Bergson dá conta da construção do espaço. Portanto, a contração começa por se fazer de algum modo no espírito; ela é como que a origem do espírito; ela faz nascer a diferença. Em seguida, mas somente em seguida, o espírito a retoma por sua conta,  ele contrai e se contrai,  como se vê na doutrina bergsoniana da liberdade [63]. Mas já nos basta ter apreendido a noção em sua origem.

 

Não somente a duração e a matéria diferem por natureza, mas o que assim difere é a própria diferença e a repetição. Reencontramos, então, uma antiga dificuldade: havia diferença de natureza entre duas tendências e, ao mesmo tempo e mais profundamente, ela era uma das duas tendências. E não havia apenas esses dois estados da diferença, mas dois outros ainda: a tendência privilegiada, a tendência direita diferenciando-se em dois estados, e podendo diferenciar-se porque, mais profundamente, havia graus na diferença. São esses quatro estados que é preciso agora reagrupar: a diferença de natureza, a diferença interna, a diferenciação e os graus da diferença. Nosso fio condutor é este: a diferença (interna) difere (por natureza) da repetição. Mas vemos muito bem que uma tal frase não se equilibra: simultaneamente, a diferença aí é dita interna e difere no exterior. Entretanto, se antevemos o esboço de uma solução, é porque Bergson se dedica a nos mostrar que a diferença é ainda uma repetição e que a repetição é já uma diferença. Com efeito, a repetição, a matéria é bem uma diferença; as oscilações são bem distintas, uma vez que “uma se esvanece quando a outra aparece”. Bergson admite que a ciência tente atingir a própria diferença e possa consegui-lo; ele vê na análise infinitesimal um esforço desse gênero, uma verdadeira ciência da diferença [64]. Mais ainda: quando Bergson nos mostra o sonhador vivendo no particular até apreender somente as diferenças puras, ele nos diz que essa região do espírito reencontra a matéria[65], e que sonhar é desinteressar-se, é ser indiferente. Portanto, seria incorreto confundir a repetição com a generalidade, pois esta, ao contrário, supõe a contração do espírito. A repetição nada cria no objeto, deixa-o subsistir, e mesmo o mantém em sua particularidade. Sem dúvida, a repetição forma gêneros objetivos; porém, em si mesmos, tais gêneros não são idéias gerais, pois não englobam uma pluralidade de objetos que se assemelham, mas nos apresentam somente a particularidade de um objeto que se repete idêntico a si mesmo [66]. A repetição, portanto, é uma espécie de diferença, mas uma diferença sempre no exterior de si, uma diferença indiferente a si. Inversamente, a diferença, por sua vez,  é uma repetição. Com efeito, vimos que, em sua  própria origem e no ato dessa origem, a diferença era uma contração. Mas qual é o efeito de tal contração? Ela eleva à coexistência o que se repetia em outra parte. Em sua origem, o espírito é tão-somente a contração dos elementos idênticos, e por isso ele é memória. Quando Bergson nos fala da memória, ele a apresenta sempre sob dois aspectos, dos quais o segundo é mais profundo que o primeiro: a memória-lembrança e a memória-contração [67]. Contraindo-se,  o elemento da repetição coexiste consigo, multiplica-se se se quer, retém-se a si mesmo. Assim, definem-se graus de contração, cada um dos quais, no seu nível, apresenta-nos a coexistência consigo mesmo do próprio elemento, ou seja o todo. Portanto, é sem paradoxo que a memória é definida como a coexistência em pessoa, pois, por sua vez, todos os graus possíveis de coexistência coexistem consigo mesmos e formam a memória. Os elementos idênticos da repetição material fundem-se em uma contração; tal contração apresenta-nos, ao mesmo tempo, algo de novo, a diferença, e graus que são os graus dessa própria diferença. É nesse sentido que a diferença é ainda uma repetição, tema este ao qual Bergson retorna constantemente: “A mesma vida psicológica, portanto, seria repetida um número indefinido de vezes, em níveis sucessivos da memória, e o mesmo ato do espírito poderia efetuar-se em alturas diferentes” [68]; as seções do cone são “outras tantas repetições de nossa vida passada inteira” [69]; “tudo se passa, pois,  como se nossas lembranças fossem repetidas um número indefinido de vezes nessas mil reduções possíveis de nossa vida passada” [70]. Vê-se a distinção que resta a fazer entre a repetição material e essa repetição psíquica: é no mesmo momento em que toda nossa vida passada é infinitamente repetida; vale dizer, a repetição é virtual. Além disso, a virtualidade não tem outra consistência além daquela que recebe de tal repetição original. “Esses planos não são dados [...] como coisas prontas, superpostas umas às outras. Eles existem, sobretudo, virtualmente, gozam dessa existência que é própria das coisas do espírito” [71]. Nesse ponto, seria quase possível dizer que, em Bergson, é a matéria que é sucessão, e a duração, coexistência: “Uma atenção à vida que fosse suficientemente potente, e suficientemente destacada de todo interesse prático, abarcaria assim em um presente indiviso toda a história  passada da pessoa consciente” [72]. Mas a duração é uma coexistência virtual; o espaço é uma coexistência de um gênero inteiramente distinto, uma coexistência real, uma simultaneidade. Eis por que a coexistência virtual, que define a duração, é ao mesmo tempo uma sucessão real, ao passo que a matéria, finalmente, nos dá menos uma sucessão do que a simples matéria de uma simultaneidade, de uma coexistência real, de uma justaposição. Em resumo, os graus psíquicos são outros tantos planos virtuais de contração, de níveis de tensão. A filosofia de Bergson remata-se em uma cosmologia, na qual tudo é mudança de tensão e de energia e nada mais.[73] A duração, tal como se dá à intuição, apresenta-se como capaz de mil tensões possíveis, de uma diversidade infinita de distensões e contrações. A combinação de conceitos antagonistas é censurada por Bergson pelo fato de só poder nos apresentar uma coisa em um bloco, sem graus nem nuanças, ao passo que a intuição, contrariamente, nos dá “uma escolha entre uma infinidade de durações possíveis” [74], “uma continuidade de durações que devemos tentar seguir seja para baixo, seja para cima” [75].

 

Como se reúnem os dois sentidos da diferença: a diferença como particularidade que é, e a diferença como personalidade, indeterminação, novidade que se faz?  Os dois sentidos só podem se unir por e nos graus coexistentes da contração. A particularidade apresenta-se efetivamente como a maior distensão, um desdobramento, uma expansão; nas seções do cone, é a base a portadora das lembranças sob sua forma individual. “Elas tomam uma forma mais banal quando a memória se fecha mais, mais pessoal quando ela se dilata” [76]. Quanto mais a contração se distende, mais as lembranças são individuais, distintas uma das outras, e se localizam [77]. O particular encontra-se no limite da distensão ou da expansão, e seu movimento será prolongado pela própria matéria que ele prepara. A matéria e a duração são dois níveis extremos de distensão e da contração, como o são, na própria duração, o passado puro e o puro presente, a lembrança e a percepção. Vê-se, portanto, que o presente, em sua oposição à particularidade, se definirá como a semelhança ou mesmo como a universalidade. Um ser que vivesse no presente puro evoluiria no universal; “o hábito é para a ação o que a generalidade é para o pensamento” [78]. Mas os dois termos que assim se opõem são somente os dois graus extremos que coexistem. A oposição é sempre apenas a coexistência virtual de dois graus extremos: a lembrança coexiste com aquilo de que ela é a lembrança, coexiste com a percepção correspondente; o presente é tão-somente o grau mais contraído da memória, é um passado imediato [79]. Entre os dois, portanto, encontraremos todos os graus intermediários, que são os da generalidade ou, antes, os que formam eles próprios a idéia geral. Vê-se a que ponto a matéria não era a generalidade: a verdadeira generalidade supõe uma percepção das semelhanças, uma contração. A idéia geral é um todo dinâmico, uma oscilação; “a essência da idéia geral é  mover-se sem cessar entre a esfera da ação e a da memória pura”, “ ela consiste na dupla corrente que vai de uma à outra” [80]. Ora, sabemos que os graus intermediários entre dois extremos estão aptos a restituir esses extremos como os próprios produtos de uma diferenciação. Sabemos que a teoria dos graus funda uma teoria da diferenciação: basta que dois graus possam ser opostos um ao outro na memória para que, ao mesmo tempo, sejam a diferenciação do intermediário em duas tendências ou movimentos que se distinguem por natureza. Por serem o presente e o passado dois graus inversos, eles se distinguem por natureza, são a diferenciação, o desdobramento do todo. A cada instante, a duração se desdobra em dois jatos simétricos, ”um dos quais recai em direção ao passado, enquanto o outro se lança para o futuro” [81]. Dizer que o presente é o grau mais contraído do passado é dizer também que ele se opõe por natureza ao passado, que é um porvir iminente. Entramos no segundo sentido da diferença: algo de novo. Mas o que é esse novo, exatamente? A idéia geral é esse todo que se diferencia em imagens particulares e em atitude corporal, mas tal diferenciação é ainda o todo dos graus que vão de um extremo a outro, e que põe um no outro [82]. A idéia geral é o que põe a lembrança na ação, o que organiza as lembranças com os atos, o que transforma a lembrança em percepção; mais exatamente, ela é o que torna as imagens oriundas do próprio passado cada vez mais “capazes de se inserir no esquema motor” [83]. O particular posto no universal, eis a função da idéia geral. A novidade, o algo de novo, é justamente que o particular esteja no universal. O novo não é evidentemente o presente puro: este, tanto quanto a lembrança particular, tende para o estado da matéria, não em virtude do seu desdobramento, mas de sua instantaneidade. Mas, quando o particular desce no universal ou a lembrança no movimento, o ato automático dá lugar à ação voluntária e livre.  A novidade é o próprio de um ser que, ao mesmo tempo, vai e vem do universal ao particular, opõe um ao outro e coloca este naquele. Um tal ser pensa, quer e lembra-se ao mesmo tempo. Em resumo, o que une e reúne os dois sentidos da diferença são todos os graus da generalidade.

 

Para muitos leitores, Bergson dá uma certa impressão de vagueza e de incoerência. De vagueza, porque o que ele nos ensina, finalmente, é que a diferença é o imprevisível, a própria indeterminação. De incoerência, porque ele, por sua vez, parece retomar uma após outra cada uma das noções que criticou. Sua crítica incidiu sobre os graus, mas ei-los retornando ao primeiro plano da própria duração, a tal ponto que o bergsonismo é uma filosofia dos graus: “Por graus insensíveis, passamos das lembranças dispostas ao longo do tempo aos movimentos que desenham sua ação nascente ou possível no espaço” [84]; “assim, a lembrança transforma-se gradualmente em percepção” [85]. Do mesmo modo, há graus da liberdade [86]. A crítica bergsoniana incidiu especialmente sobre a intensidade, mas eis que a distensão e a contração são invocadas como princípios de explicação fundamentais;  “entre a matéria bruta e o espírito mais capaz de reflexão, há todas as intensidades possíveis da memória ou, o que dá no mesmo, todos os graus da liberdade” [87]. Finalmente, sua crítica incidiu sobre o negativo e a oposição, mas ei-los reintroduzidos com a inversão: a ordem geométrica diz respeito ao negativo, nasceu da “inversão da positividade verdadeira”, de uma “interrupção” [88];  se  comparamos a ciência e a filosofia, vemos que a ciência não é relativa, mas “diz respeito a uma realidade de ordem inversa” [89]. – Todavia, não acreditamos que essa impressão de incoerência seja justificada. Inicialmente, é verdadeiro que Bergson retorna aos graus, mas não às diferenças de grau. Toda sua idéia é a seguinte: que não há diferenças de grau no ser, mas graus da própria diferença. As teorias que procedem por diferenças de grau confundiram precisamente tudo, porque não viram as diferenças de natureza, perderam-se no espaço e nos mistos que este nos apresenta. Acontece que o que difere por natureza é, finalmente, aquilo que, por natureza, difere de si próprio, de modo que aquilo de que ele difere é somente seu mais baixo grau; o que assim difere de si próprio é a duração, definida como a diferença de natureza em pessoa. Quando a diferença de natureza entre duas coisas torna-se uma das duas coisas, a outra é somente o último grau desta. É assim que, em pessoa, a diferença de natureza é exatamente a coexistência virtual de dois graus extremos. Como eles são extremos, a dupla corrente que vai de um a outro forma graus intermediários. Estes constituirão o princípio dos mistos, e nos farão crer em diferenças de grau, mas somente se os consideramos em si mesmos, esquecendo que as extremidades que reúnem são duas coisas que diferem por natureza, sendo na verdade os graus da própria diferença. Portanto, o que difere é a distensão e a contração, a matéria e a duração como graus, como intensidades da diferença. E se Bergson não cai assim em uma simples visão das diferenças de grau em geral, ele tampouco retorna, em particular, à visão das diferenças de intensidade. A distensão e a contração são graus da própria diferença tão-somente porque se opõem e enquanto se opõem. Extremos, eles são inversos. O que Bergson censura na metafísica é não ter ela visto que a distensão e a contração são o inverso, e ter, assim, acreditado que se tratava apenas de dois graus mais ou menos intensos na degradação de um mesmo Ser imóvel, estável, eterno[90]. De fato, assim como os graus se explicam pela diferença e não o contrário, as intensidades se explicam pela inversão e a supõem. Não há no princípio um Ser imóvel e estável; aquilo de que é preciso partir é a própria contração, é a duração, da qual a distensão é a inversão. Encontrar-se-á sempre em Bergson esse cuidado de achar o verdadeiro começo, o verdadeiro ponto do qual é preciso partir: assim, quanto à percepção e à afecção, “em lugar  de partir da afecção, da qual nada se pode dizer, pois não há qualquer razão para que ela seja o que é e não seja qualquer outra coisa, partimos da ação” [91]. Por que é a distensão o inverso da contração, e não a contração o inverso da distensão? Porque fazer filosofia é justamente começar pela diferença, e porque a diferença de natureza é a duração, da qual a matéria é somente o mais baixo grau. A diferença é o verdadeiro começo; é por aí que Bergson se separaria mais de Schelling, pelo menos em aparência; começando por outra coisa, por um Ser imóvel e estável, coloca-se no princípio um indiferente, toma-se um menos por um mais, cai-se numa simples visão das intensidades. Mas, quando funda a intensidade na inversão, Bergson parece escapar dessa visão, mas para tão-somente retornar ao negativo, à oposição. Mesmo nesse caso, tal censura não seria exata. Em última instância, a oposição dos dois termos que diferem por natureza é tão-só a realização positiva de uma virtualidade que continha a ambos. O papel dos graus intermediários está justamente nessa realização: eles põem um no outro, a lembrança no movimento. Não pensamos, portanto, que haja incoerência na filosofia de Bergson, mas, ao contrário, um grande aprofundamento do conceito de diferença. Finalmente, não pensamos tampouco que a indeterminação seja um conceito vago. Indeterminação, imprevisibilidade, contingência, liberdade significam sempre uma independência em relação às causas: é neste sentido que Bergson enaltece o impulso vital com muitas contingências [92]. O que ele quer dizer é que, de algum modo, a coisa vem antes de suas causas, que é preciso começar pela própria coisa, pois as causas vêm depois. Mas a indeterminação jamais significa  que a coisa ou a ação teriam podido ser outras. “Poderia o ato ser outro?” é uma questão vazia de sentido. A exigência bergsoniana é a de levar a compreender por que a coisa é mais isto do que outra coisa. A diferença é que é explicativa da própria coisa, e não suas causas. “É preciso buscar a liberdade em uma certa nuança ou qualidade da própria ação e não em uma relação desse ato com o que ele não é ou teria podido ser” [93]. O bergsonismo é uma filosofia da diferença e da realização da diferença: há a diferença em pessoa, e esta se realiza como novidade.

. . .

Tradução de

Lia Guarino e Fernando Fagundes RibeiroNRT

Notas

DL Les Etudes bergsoniennes, vol IV, 1956, p. 77-112. (As referências em nota foram reatualizadas e completadas. A paginação remete à edição corrente de cada obra de Bergson pelas ed. PUF, col. “Quadrige).

[1] MM, p. 19, p. 62-63.

[2] PM,  p. 52-53.

[3] PM, p. 197.

[4] PM, p. 207.

[5] PM, p. 23.

[6] ES,  p. 4.

[7] ES,  primeiro capítulo.

[8] MR, p. 263.

[9] MR, p. 292.

[10] E.C.,  p. 217.

[11] PM, p. 61.  

[12] EC, p. 107.

[13] EC, p. 107.

[14] EC, pp. 184; 264-265.

[15]MR, p. 225.

[16]EC, p. 107.

[17]EC, p. 316 ss.

[18]EC, p. 233, 235.

[19]MM, p. 182.

[20]PM, p. 61.

[21]PM, p. 208.

[22]PM, p. 179.

[23]PM, p. 199.

[24]MM, p. 59.

[25]DI, 41 primeiro capítulo.

[26]DI, p. 90.

[27]EC, p.302-303.

[28]MM, p. 219.

[29]PM, pp. 163, 167.

[30]EC, pp. 267, 270.

[31]PM, p. 81.

[32]DS, p. 67.

[33]EC, cap. I.

[34]EC, p. 127.

[35]EC, p. 86.

[36]EC, p. 88.

[37]MR, p. 313.

[38]EC, p. 53 ss.

[39]PM, p. 58.

[40]EC, p. 54.

[41]MR, p. 316.

DLa MR, p. 314.

[42]MR, p. 313-315.

[43]ES, p.13.

[44]ES, p. 11.

[45]Entretanto, sobre esse ponto, não pensamos que Bergson tenha sofrido a influência do platonismo. Mais perto dele havia Gabriel Tarde, que caracterizava sua própria filosofia como uma filosofia da diferença e a distinguia das filosofias da oposição. Mas a concepção que Bergson tem da essência e do processo da diferença é totalmente distinta da de Tarde.

[46]MR, p. 111.

[47]EC, p. 88 ss.

[48]PM, p. 198.

[49]PM, p. 207.

[50]MR, p. 317.

[51]PM, p. 259-260.

[52]MM, p. 247. [NRT: 249, não 247].

[53]MM, p. 249.

[54]MM, p. 74.

[55]PM, p. 210.

[56]MM, p. 150.

[57]ES, p. 140.

[58]MM, p. 172-173.

[59]PM, p. 183-184.

NRT [Na passagem citada, Bergson escreve “distintamente”, não diretamente, como está aqui transcrito por Deleuze que, por sua vez, transcreve corretamente a mesma passagem em Le bergsonisme, Paris, PUF,1966, p. 45].

[60]PM, p.200-201.

[61]ES, p. 140.

[62]EC, p. 201.

[63] DI, Terceiro capítulo.

[64]PM, p. 214.

[65]EC, p. 203 ss.

[66]PM, p. 59.

[67]MM, p. 83 ss.

[68]MM, p. 115.

[69]MM, p. 188.

[70]MM, p. 188.

[71]MM, p. 272.

[72]PM, p. 169-170.

[73]MM, p. 226.

[74]PM, p. 208.

[75]PM, p. 210.

[76]MM, p. 188.

[77]MM, p. 190.

[78]MM, p. 173.

[79]MM, p. 168.

[80]MM, p. 180.

[81]ES, 132.

[82]MM, p. 180.

[83]MM, p. 135.

[84]MM, p.83.

[85]MM, p. 139. [RT: 144 não 139]

[86]DI, p. 180.

[87]MM, p. 250.

[88]EC, p. 220.

[89]EC, p. 231.

[90]EC,p. 319-326.

[91]MM, p. 65.

[92]EC, p. 255.

[93]DI, p. 137.

NRT [Tradução originalmente publicada como anexo em Gilles Deleuze, Bergsonismo, tr. br. de Luiz B. L. Orlandi, SP, Ed. 34, 1999, pp. 95-123]. 

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