PERCEPÇÃO E COMUNICAÇÃO: MITOS E PROBLEMAS CONTEMPORÂNEOS

archivo del portal de recursos para estudiantes
robertexto.com

ligação do origem

Professor Adjunto  IV  da Universidade Federal Fluminense – Doutor (USP – 1992) - em regime de dedicação exclusiva, com pós-doutorado na Universidade de Montreal (1997-1998); professor do Departamento de Comunicação Social e do corpo permanente do Programa de Pós-graduação em Comunicação, Imagem e Informação do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense.

 

 

IMPRIMIR 

Resumo

Este trabalho é um pequeno ensaio em que se examinam teorias da percepção, representação e comunicação, com o enfoque centrado nas primeiras. Verifica-se a aplicabilidade das teorias da percepção aos estudos sobre o processo comunicacional.  A partir de um re-exame do ‘mito da caverna’ de Platão, foram lidos e comentados vários autores dos campos da filosofia, psicologia, biologia, neurociências e comunicação. Buscou-se situar o problema de modo transdisciplinar no campo dos estudos comunicacionais, valorizando autores que tiveram ou têm grande influência na formação intelectual dos pesquisadores do campo da comunicação e outros, que mesmo menos conhecidos, possam ter importantes contribuições para os nossos estudos. Em várias partes, o texto contém exemplos concretos relativos à percepção humana dos meios, enfatizando o papel da consciência e os padrões perceptivos individuais e coletivos. As idéias dos autores citados também foram tratadas como percepções dos problemas levantados.

Abstract

This work is a short essay where the theories of perception, representation and communication are discussed, focusing the two former ones. Throughout this paper the main intention is to verify the possibility of applying such theories to the communicative process. From the re-reading of the ‘ myth of the cave’ by Plato, several books concerned with philosophy, psychology, biology, neurosciences and communication were read, in order to support this research. There was an intention of debating the present subject according to a multidisciplinary point of view as well. Besides of that, we worked with authors, famous or not, that we think had great influences on the intellectual formation of those ones that usually write about communicative questions. As a consequence, such text uses lots of concrete examples related to the means of human perception, pointing out the role of the consciousness as well as the individual and collective patterns of perception. Finally, it is important to say that the author’s ideas showed in this text were also analyzed as perceptions.             

 

Introdução

Tomando o fenômeno da percepção como ponto de passagem do processo comunicacional, surgem vários problemas. Como, por exemplo, interagimos com o meio externo, tanto no sentido da emissão, como no da recepção? Ao conversarmos com os outros, o que se passaria no domínio do entendimento mútuo ou da polarização das diferenças? Ao observarmos a paisagem ou fecharmos os olhos frente à luz, como o faríamos e o que sentiríamos? Ao escutar música, assistir TV ou ler, o que se daria em nossas mentes? Ao silenciar e pensar, como representaríamos a ambiência externa e a nós mesmos?

Se a comunicação é um agir (comportamento) social, como quer Habermas, ela só é possível pelo efeito perceptivo. Se imaginarmos um mundo em que os homens e as mulheres não pudessem captar a ambiência que os cerca (recepção), também não poderiam reagir ao meio (emissão), ou produzir algum efeito comunicacional, lingüístico ou extra-linguístico.

Assim como a emissão e a recepção podem ser individuais ou coletivas, a percepção apresenta estas mesmas possibilidades. Percebemos o mundo como indivíduos e como membros de um entorno social. Se tivermos o mesmo status social, cultura, faixa etária etc, tenderemos a perceber a ambiência externa direta e o bombardeio de mensagens midiáticas de modo similar.

Mas é um equívoco imaginar que isto se daria de forma exatamente igual para todos. Há diferenças na percepção dos indivíduos. Estas revelam especificidades da natureza físico-biológica e psicológica da capacidade perceptiva de cada um. As diferenças sociais e culturais também delineiam  padrões de percepção coletivos, definindo para as classes,  grupos e  indivíduos como devem entender a ambiência externa e a si próprios (identidades).  Não considerar estas diferenças implica tratar os indivíduos como máquinas programáveis, andróides incapazes de pensar por motu-próprio. Significa igualmente perceber a sociedade como uma engrenagem de uma máquina ou um formigueiro. Nesta, os homens  e as mulheres agiriam sem quaisquer vontades próprias.

Se é verdade que alguns atos comunicacionais tais como a propaganda política e a publicidade do consumo buscam reduzir os homens e as mulheres a seres repetidores acríticos de mensagens; é também verdadeiro que só funcionam a contento, quando conseguem atingir e mediar com algo previamente existente na capacidade perceptiva dos indivíduos, classes e grupos sócioculturais.

No plano dos estudos comunicacionais, estudar a percepção significa, ao nosso ver, aproximar a recepção da emissão. Estas podem se realizar de modo direto por pessoas ou, indiretamente, com o auxílio de máquinas. Neste último caso, é preciso situá-lo no tempo, demonstrando que data da última centúria a interveniência cada vez maior destas no processo comunicacional.

Atualmente, a mediação maquínica é a regra hegemônica do processo comunicacional. Grande parte do que sentimos, sabemos ou dizemos relaciona-se com o que recebemos das mídias eletro-eletrônicas e impressas. Não que tenham deixado de existir as tradicionais sociabilidades comunicacionais, tais como a conversa, a reunião, a aula, a missa, o culto, o comício etc, que podem funcionar ou não independentes de quaisquer artefatos que precisem de energia não-humana. Mas essas não são imunes às mídias e seus meios tecnológicos. De uma ligeira aproximação, passou-se para a tendência de se integrarem a um único sistema de trocas de mensagens entre pessoas, máquinas e pessoas, configurando a atual sociedade midiática.

As mídias são as referências de percepção básicas disponíveis para a grande maioria das pessoas do mundo contemporâneo. Destas, as emissões de programas de TV ainda reinam como soberanas. A Internet, crescendo diariamente, é mais um meio, por vezes interativo em graus distintos, de distribuição de mensagens com impacto social significativo. O cinema, já centenário, cada vez é mais dependente dos outros meios, assim como o rádio, a telefonia, os jornais, as revistas e os livros. Pode-se dizer que as mídias convencionais e eletrônicas estão também interligadas, em que pese uma certa autonomia de funcionamento de cada um dos meios de comunicação. 

 

Este quadro, certamente, mudou os padrões da percepção, sem alterar suas referências biológicas e sociais básicas. Afinal, continuamos a necessitar ver, ouvir, sentir e  elaborar mentalmente o resultado das emissões e, por fim ou ao mesmo tempo, reagir de algum modo a elas. Seguimos conferindo o que os outros pensam sobre o que nos afeta, inclusive sobre o mesmo conteúdo informacional obtido em alguma mídia. Por isto e assim, discutimos política, telenovela, futebol etc.

A escolha da percepção como ponto de passagem do processo da comunicação acontece na defesa da filosofia dos sujeitos, na crença de que uma possível hermenêutica do agir comunicacional deve estar centrada na compreensão da ação individual e coletiva dos seres humanos, com suas peculiaridades e inserções no contexto histórico. Em outras palavras, a comunicação não é exterior aos homens e às mulheres, às suas crenças e desejos mais evidentes ou íntimos, os quais podem e devem ser interpretados.

Esta hermenêutica deve ser positiva, ao modo de Habermas, quando analisarmos objetos e atos frutos de um agir racional. Negativa, quando tratarmos da irracionalidade. O autor alemão chama de “comunicação perturbada” e “pseudocomunicação” as que não se enquadram no agir racional. Entretanto, elas são tantas e tão importantes que vê-las assim significa estar a ponto de descartá-las. Não se acredita que elas necessariamente encubram algo ou revelem somente aspectos psicopatológicos do comportamento humano. Podem ser, apenas, modos de pensar a vida e o mundo, com base nas tradições e no senso comum,  sem qualquer compromisso com a razão.  E se essas manifestações forem essenciais para a compreensão do agir comunicacional?

O agir racional, no nosso entender, consiste em uma construção sócio-histórica-cultural, portanto, não é natural. Precisa ser aprendido e delimitado dentro de consensos e contextos sócio-culturais precisos. Dentro desta proposição pode-se dizer que existe uma miríade de opções humanas entre o que, por consenso fundado na modernidade, considera-se como razão ou não-razão. Aliás, o que se chamou de irracional em outras épocas, é considerado hoje como pressuposto da razão e vice-versa.

Parte-se da hipótese de que uma hermenêutica negativa seria, em situações onde a razão ou o nosso conceito de razão não prevaleça, mais útil do que a crença na existência de uma racionalidade apriorística do agir social. As regras desta hermenêutica negativa seriam as mesmas da positiva, isto é, o estudo do contexto, sujeitos envolvidos na ação, discursos e limites da interpretação pretendida. Compreender a irracionalidade não consiste em transformá-la em racionalidade ou entendê-la como sendo, obrigatoriamente, uma máscara desta. O agir irracional existe a partir de uma percepção também irracional em muitos casos, a única possível em determinados contextos e para determinados sujeitos. A diferença entre ambas hermenêuticas residiria no fato da negativa buscar o desnudamento, retirando o véu de preconceitos contra o agir não-racional, tratando-o como uma expressão humana, aliás, ao nosso ver, a mais significativa.

 

O entendimento (comunicação) entre pessoas, sejam elas social e culturalmente iguais ou diferentes, não precisa ser pautado no agir racional. A irracionalidade também constrói formas de compreensão mútua, com a criação ou a partir de afinidades entre as partes. Estas afinidades têm inúmeras cores e gradações infinitas, tais como as derivadas do agir racional. Neste modo de ver o problema, marcamos diferença da compreensão habermassiana.

É preciso pontuar que o agir racional e o irracional não conferem maior ou menor humanidade ou superioridade moral a ninguém. Em nome de ambos, foram cometidos e ainda se cometem crimes contra os habitantes da Terra. Não cedemos ao irracionalismo. Achamos que a razão é um instrumento importante para compreensão e possível mudança do que nos cerca. Entretanto, não cremos em um agir racional asséptico e intrinsecamente progressivo. Isto equivaleria a pensar que seria possível uma consciência social absolutamente crítica, sem qualquer tipo de contaminação. Pensamos que a idéia de razão deve ser usada, inclusive, para verificar os interesses de quem diz que a defende e a propõe como solução dos problemas humanos. Serve, igualmente, para compreender os atos, falas e percepções irracionais, de um ponto de vista externo aos mesmos.

A percepção e o mito da caverna

Compreender a percepção consiste em mergulhar na questão que remonta às origens do pensamento ocidental. Platão abordou o problema em suas obras, o que vem servindo de base para discussões sobre o tema, nos últimos dois milênios e meio. Pode parecer estranho voltar a Platão, em um mundo tão diverso, com suas máquinas maravilhosas e conhecimentos acumulados de modo multidisciplinar. Entretanto, Platão continua vivo e legível, por vezes mais e melhor do que as idéias que o mercado nos impõe na chamada pós-modernidade.

De certo modo, o mito ou alegoria da caverna, que está no livro A República, célebre por imortalizar a utopia e o pensamento do filósofo grego, relaciona-se com o modo que percebemos o mundo. Vamos a mais uma viagem a esta velha caverna tão freqüentada por inúmeros autores. Como toda leitura de uma obra, povoada por idéias de outro tempo, estaremos inefavelmente contaminados por problemas de nossa época. Buscaremos, no passado, inspiração para compreender o presente.

Na caverna de Platão, seus habitantes são tangidos a perceber o mundo em uma única direção, a das sombras e dos ruídos de vozes. Estão amarrados, não é possível outro tipo de visão. A luz, as sombras e as vozes por eles visualizadas e ouvidas seriam os objetos  perceptíveis e percebidos. Suas crenças seriam deste modo montadas a partir desta experiência. Desenvolveriam, assim, suas noções do que seria o real e o verdadeiro. Se algum preso se soltasse, ao se mover pouco a pouco pelo mesmo espaço, com a ampliação de suas possibilidades perceptivas, poderia, com alguma dificuldade, mudar seu ponto de vista e passar a considerar como falso antes. Ao completar seu percurso para fora da caverna, em plena luz solar, perceberia sua ignorância anterior e concluiria que o real seria o agora visível. Seu amor individual ao próximo o faria retornar às profundezas da caverna e contar a boa-nova aos seus companheiros de infortúnio. Nesta volta triunfal, o ‘herói’ seria recebido como um louco, não-adaptável à realidade considerada consensualmente como possível. Por conseqüência, seria desprezado por seus iguais, que considerariam até a possibilidade de matá-lo.

Na tentativa de interpretar Platão, pode-se dizer que a caverna representa o mundo, a luz solar, o conhecimento, a escuridão da caverna, a ignorância. A percepção dar-se-ia pela experiência direta em condições propícias; quem a viver conseguirá saber, mesmo que seus iguais não alcancem a mesma luminosidade. As crenças dos homens seriam fruto dos limites de suas percepções, entendidas como a experiência direta e a conseqüente elaboração mental.

 

O preso que se liberta representa a possibilidade de alcançar o conhecimento. Sua rejeição pelos demais é explicável porque eles continuam, apesar da mesma origem, vendo o mundo – a caverna – em uma só direção. Pode-se, com licença poética, deduzir que se todos se soltassem e fizessem o mesmo percurso do primeiro, estabeleceriam e compartilhariam de modo consensual a mesma idéia sobre a importância do Sol, entendido como o fogo do saber.

Mas, a idéia de um preso, tal como está no livro, libertando-se e movendo-se em direção à luz, também pode significar que o conhecimento é possível para poucos, inacessível para a maioria condenada à escuridão. A gradação de seu percurso e a dificuldade de seu movimento em direção ao saber significa a impossibilidade da ascensão imediata e a necessidade do trabalho físico e intelectual para obtê-la.  A rejeição dos outros à boa-nova pode também significar sua naturalização, isto é, a ignorância e o saber são percepções próprias da natureza humana. Diversas leituras do mito são possíveis e complementares.

A noção normativa (moral) de verdadeiro e falso balizaria a idéia de que a percepção determina a formação do juízo de valor e é por ele determinada. Existiria quem perceba o mundo com melhor ou pior ponto de vista, dependendo da posição que se encontra, preso ou liberto. Os sentimentos de amor e rejeição seriam compatíveis com esta posição e vinculados respectivamente ao conhecimento e à ignorância.

Sócrates, falando nos seus derradeiros diálogos (Fédon), pela pena de Platão, ou este falando por aquele, acreditava que nas idéias (idealismo) seria possível achar a verdade e que a observação direta  – percepção com uso dos sentidos – deveria ser feita com cautela. No exemplo que usou, observar um eclipse, olhando diretamente para o sol, estragaria os olhos. Devia-se, portanto, tentar vê-lo através de seu reflexo, de modo indireto. O filósofo temia pela “cegueira de sua alma” se insistisse em ver os objetos e tentar compreendê-los unicamente pelo exame dos sentidos, isto é, de modo direto. Na sua formulação, refletir sobre as imagens das coisas – percepção “por imagens”, estritamente mental, e buscar no pensamento suas respostas, seria mais eficiente. Entretanto, o autor não demonstrou segurança absoluta entre as duas opções, apesar de ter manifestado a preferência pela segunda, sem descartar a primeira. De uma coisa tinha certeza, a reação humana básica ao ambiente social – o que chamamos hoje de comunicação – era, para ele, intervinculável à percepção.

A percepção platônica, ainda com grande força nos dias que correm, implica acreditar que a ambiência explica o que percebemos; e que a nossa comunicação com os outros dar-se-ia a partir das imagens mentais construídas por meio da captação dos sentidos. Mas, Platão, como vimos, valida igualmente um caminho próprio das imagens – idéias – vistas como verdadeira fonte do conhecimento. O homem transcenderia ou poderia transcender aos sentidos, vendo o mundo, isto é, os outros e os objetos, a partir de um acúmulo mental de suas imagens. A experiência direta deveria ser subordinada a valores absolutos, ao bem e ao belo em si, tal como o amor ao próximo, tão decantado pela filosofia cristã.

Voltando à caverna o que ocorreria se todos fizessem o percurso do ‘herói’ que se liberta? Para Platão, deduz-se que todos teriam a mesma percepção do mundo. Teriam como real a construção e visão do primeiro a sair. Eles não teriam aceitado a boa-nova, porque se mantiveram na posição anterior.  O filósofo toma como ‘verdadeiras’ e auto-sustentáveis as imagens vistas sob a luz. Considera, nos meandros do seu modo de pensar, a possibilidade do conhecimento integral e transcendente obtido pela combinação da experiência direta e a imanência dos valores em si.

 

O mito ou alegoria da caverna, lido de modo metafórico (Será possível lê-lo de outro modo?), representa o difícil percurso entre a ignorância e o conhecimento. A tragédia narrada consiste na dificuldade de socializá-lo. Nada muito diverso da atualidade onde se continua satanizando pessoas, povos, raças, crenças e países. Nem diferente das dificuldades presentes de criticar a banalização da ignorância, violência e  preconceitos veiculados ad nausea na grande mídia. O mundo da vida continua sendo formado, no plano de suas representações, por várias cavernas, agora com sinalizadores e outros artefatos eletrônicos que determinam sua incrível profundidade e dimensões universais naturalizantes.

Admitindo-se que se vive na escuridão, será que a destruição das  cavernas modernas implicaria o desaparecimento das crenças dos que as habitam? Estas cavernas são naturais ou construídas pelo braço e pela mente humana? Qual a relação entre elas e os desejos e crenças dos seus habitantes? Dependendo das respostas obtidas, ter-se-ão opções diferentes sobre a percepção, a comunicação, o conhecimento e o devir social e histórico.

A discussão de como percebemos o mundo atravessou a história da filosofia, chegando aos nossos dias. Vincula-se a outras questões como o da formação da consciência, as pretensas diferenças entre a mente e atividade cerebral e ao modo como adquirimos conhecimentos. As dualidades representadas pela alma e corpo, ‘real’ e ‘verdadeiro’,   razão e emoção, existentes desde Platão, chegaram ao mundo contemporâneo como herança do Iluminismo, notadamente, nos argumentos cartesianos. Há quem saia por linha tangencial, como Baudrillard, com seu conceito de hiperreal, ou muitos que mantêm com poucas variações a crença na existência de um muro abissal entre as imagens mentais construídas pelos homens e mulheres e o mundo real.

Preferimos opor o material ao simbólico, procurando descobrir como isto se passa nas nossas faculdades perceptivas e que resultados provocam na formação de nossas consciências.

Mas, hipoteticamente,  homens de outras épocas veriam os exemplos de Platão?

Alguns dos filósofos e escritores medievais, possivelmente, comparariam a caverna ao paraíso, outros ao inferno, e entenderiam sua necessidade. Se fossem integrados ao poder temporal e espiritual da Igreja, criticariam o que desobedeceu a ordem das coisas e tentou subverter o real, traindo os impulsos naturais de suas almas. Se pudessem, mandariam queimar-lhe a carne, para purificá-lo. Se fossem críticos da ordem de seu tempo, heréticos ou livre-pensadores, legitimariam a rebeldia do ‘herói’ e buscariam compreendê-lo.

Pouco a pouco, a percepção deixou de ser considerada uma faculdade da alma, transformando-se em propriedade físico-biológica dos homens e das mulheres. Com o abandono gradual do pressuposto mágico, novas formulações puderam ser construídas e novos problemas apontados, apesar da forte base platônica que envolve esta questão até nossos dias.

 

De acordo com Kant, todo o nosso conhecimento começa pela experiência, mas não necessariamente se origina da experiência. Esta difícil formulação é justificada pela fórmula de que o conhecimento recebido pelos sentidos, isto é, a percepção, seria um composto das impressões captadas por esses somado à nossa faculdade de saber, abstrair e atentar sobre e para os objetos e os homens. O organizador da racionalidade ocidental chamou de conhecimento a priori, o que seria independente da experiência e, de empírico, compreendido como a posteriori, o advindo desta.  Dentre o primeiro, haveria os  “conhecimentos puros”, isto é, completamente separados da experiência, enquanto juízos, tais como leis  universais. Obviamente, o filósofo referia-se à experiência individual passada e presente e à compartilhada ou compartilhável coletivamente. Vê-se que Kant, como outros, leu e reinterpretou Platão, adaptando-o ao seu mundo.

Lendo a caverna de Platão, pela lente de Kant, diríamos que a reação do ‘herói’ que se liberta seria produto da experiência e de seus conhecimentos a priori. Se outros se libertassem e vissem a luz poderiam não reagir do mesmo modo. Suas percepções dependeriam de suas faculdades de saber, abstrair e propor novas visões.

A partir da filosofia da práxis do século XIX (Marx) e de seus desdobramentos posteriores (Ver Gramsci, a teoria crítica, Habermas etc), a existência do conhecimento enquanto teoria separada da experiência vem sendo criticada como um idealismo. Qualquer conhecimento seria fruto da práxis, teria que se vincular à empiria ou se poderia buscar as relações desse e a materialidade, por mais abstrato que esse saber pudesse resultar. A ‘pureza’ da razão seria um mito, tal como o da neutralidade e universalidade absolutas da ciência. Obviamente isto não impediu que se continuasse a crer nesta possibilidade.

Os positivistas das mais variadas tendências e os neopositivistas contemporâneos, com variações políticas e filosóficas, deificaram a razão e aceitaram, por vezes com reservas, o mito eurocêntrico da pureza da ciência. Bertrand Russell, por exemplo, incluiu a teoria da percepção como ponto de partida de sua teoria do conhecimento, diferenciando “dados sensórios” de “sensações”. Os primeiros seriam os captados pelos sentidos e os segundos, as ‘experiências de consciência imediata’ dos primeiros. Sua releitura de Platão atualiza o conceito de percepção à luz da física do século XX, tentando associá-lo à materialidade dos objetos, tal como explica Ayer.

A filosofia analítica norte-americana, ao partilhar problemas e examiná-los com rigor pragmático, pôde reafirmar o velho princípio da anterioridade da matéria frente nossa capacidade de percebê-la (Ver, por exemplo, a obra de Searle). Entretanto, no afã de demonstrar que os problemas da consciência humana têm dimensões individuais e biológicas, os analíticos desprezaram qualquer explicação proveniente da filosofia da consciência clássica de inspiração em Marx, tendo grande expressão na obra de Lukács e Gramsci. Pensamos que ambos saberes são complementares e não excludentes. Os aspectos sóciopolíticos e culturais do processo da formação da consciência, apontados por estes últimos autores, não são descartáveis. Entretanto, são dimensões externas ao ato da percepção, que não explicam de modo convincente as internas, também importantes para uma compreensão mais global do problema.

 

A filosofia da práxis não ficou imune ao processo de fechamento de  vertentes de compreensão unilateral dos mesmos problemas. Em muitos casos, mas não em todos, propôs-se como explicação exclusiva e totalizante, condenou qualquer argumento que não fosse fundado nos seus textos fundadores. A vulgata marxista contemporânea, muitas vezes por razões de Estado ou leituras feitas em culturas distintas, considerou textos fundadores como talmúdicos, substitutos das velhas crenças metafísicas.

Para Marx, a caverna de Platão, caso entendida como espaço de sua época, seria o reino da alienação provocado pelas condições objetivas de vida de seus habitantes. O ‘herói’ que se liberta seria aquele portador da consciência de classe, que tentou ‘assaltar os céus como um raio em um dia de céu azul’, sem a compreensão de seus pares. Seria uma questão de tempo e práxis, para que os demais prisioneiros compreendessem sua real situação e lutassem com unhas e dentes pela liberdade e, sobretudo, pela igualdade.

O famoso filósofo alemão denunciaria (Assim ousamos pensar!) a situação e o modo de pensar dos prisioneiros como fruto objetivo/subjetivo de um modo de produção que exploraria ao máximo seus trabalhadores. Iria procurar descobrir como, por quem e porquê os homens foram amarrados e obrigados a ver o mundo de uma só forma. 

No mesmo sentido, Gramsci pregaria a conquista progressiva da hegemonia dos trabalhadores aprisionados na caverna, por meio da ação revolucionária consciente, até alcançar o poder.

Adorno veria na revolta e na disseminação da alta cultura a forma de se conseguir a libertação do jugo da caverna. Habermas defenderia a possibilidade do entendimento mútuo, por meio do agir comunicativo, que terminaria por libertar, sem guerras ou violências de qualquer natureza, os habitantes da mítica caverna. Seus críticos, como Luhmann, veriam no insucesso do ‘herói’ a prova da “improbabilidade” da comunicação.

Os positivistas legitimariam a caverna, desde que não estivessem presos nela, e estariam mais interessados em ver o que poderia ser extraído como riqueza e poder do local e da situação. Os neopositivistas entenderiam a caverna como um mal necessário para o desenvolvimento do sistema de liberdade e inclusão de suas pretensas ‘sociedades abertas’. Se estes últimos forem da corrente analítica, desejariam examinar em detalhes o comportamento dos seus habitantes sob os aspectos biológicos e psicológicos. Estariam mais interessados nos indivíduos e menos no comportamento coletivo.

Em que pesem as possíveis ironias e incorreções, de modo geral, todos estariam certos ao analisar a caverna a partir de suas convicções e inserções no mundo da vida. Tal como dissemos, teriam que pensar a caverna em seu tempo, nos limites de suas crenças morais, científicas, religiosas, filosóficas etc. Mas, não é assim que percebemos o mundo, inclusive, nestas linhas?

A percepção e as várias dimensões do real

A percepção, de acordo com a fenomenologia de Merleau-Ponty, é uma operação do sujeito, algo entre o objetivo e subjetivo, e nisto as suas proposições teóricas têm méritos indiscutíveis. O autor desloca o eixo tradicional da compreensão do problema para o corpo e a mente de quem percebe, que executaria esta ação de determinado modo, apreensível pelo conhecimento mais integral do fenômeno. Diferenciando sentidos de intelecção, ele lembra que a percepção é um fenômeno da consciência. Nossos sentidos captariam o mundo exterior, com todos os seus limites, e com eles construiríamos mentalmente a imagem do que vemos, ouvimos etc para além do que sentimos.

 

A percepção, na forma que aqui a entendemos, seria uma representação, no sentido que Putnam dá a esta palavra, isto é, uma construção que nos permite situar a nós mesmos no tempo e no espaço; aplicar critérios normativos (moral) e agir de acordo com a nossa consciência. Portanto, aos percebermos o exterior e a nossa própria condição, agimos de acordo com a nossa elaboração representacional e não com algo igual aos sentidos.  Ao dizer que temos determinado sentimento sobre algo, estamos nos referindo não aos fenômenos e objetos em si mesmos, e sim ao modo que eles foram construídos em nossa consciência. O que o senso comum chama de intuição, convicção, acerto, erro ou auto-engano não passam de representações que fazemos do mundo, de nosso enfoque construído de fora para dentro e de dentro para fora.

A subjetividade não é um espelho perfeito ou invertido da objetividade. Ao contrário, ela a transcende, é algo mais elaborado que caminha pela materialidade de nossos neurônios. Trata-se de uma reconstrução do que é capturado pelos sentidos, que por sua vez são instrumentos limitados que nos vinculam ao mundo exterior. Quando ouvimos o latido de um cachorro, podemos interpretá-lo de diversos modos. Estes irão depender de outras informações e, sobretudo, da nossa consciência, que, por sua vez, tem estados psicológicos, fisiológicos e emocionais múltiplos e variáveis. Podemos estar tristes, felizes, coléricos, plácidos, despertos, sonolentos, sóbrios, embriagados etc. Além da percepção depender de fatores momentâneos como esses, depende ainda mais de nossa estrutura e características neuropsíquicas mais profundas, incluindo o que acumulamos como memória ao longo da vida. Não seria diferente ao conversar ou presenciar alguém falando, ao ouvir rádio, assistir TV, ver um filme ou ler os jornais.

Reconstruímos o que capturamos por meio dos sentidos, a partir do que somos integral e episodicamente. O corpo e o cérebro não são meios translúcidos e imateriais. Reprocessamos de modo ininterrupto, até dormindo, nos sonhos, o que nossos sentidos capturam e o que imaginamos que somos. Nossa percepção não é igual ao mundo exterior e ao mundo físico-químico-biológico interior. Trata-se de um fenômeno da consciência, no sentido neurológico e social do termo, uma forma de acesso à ambiência externa e uma compreensão de nossa natureza interior com limitações inerentes à espécie.

Para o senso comum contemporâneo, o que sentimos e processamos é igual para muitos ao real material. É difícil perceber, sem acesso às informações científicas, os limites de nossos sentidos. Pensamos que para resolver este impasse é melhor trabalhar com duas dimensões do real: a simbólica, criada nas nossas consciências; e a material, que é independente destas. Aí, temos um problema a ser enfrentado, porque a tradição ocidental, de origem cartesiana, crê nas dualidades do real como verdadeiro e do representacional como falso. Pertence à mesma tradição; a visão platônica do representacional como verdadeiro e o real material como falso. No modo diverso com que vemos esta questão, ambos são verdadeiros em planos diversos. As representações, para existirem, precisam estar apoiadas na materialidade do sistema nervoso e são reais para quem nelas acredita, mesmo que para outros sejam crenças absurdas e sem quaisquer possibilidades de comprovação. Implicam práticas concretas como derivações de crenças estabelecidas. Sobre o real material é preciso lembrar que é muito anterior à existência da espécie humana sobre a Terra e ao próprio planeta, sendo independente de qualquer pensamento a respeito de tudo isto.

A percepção individual e a social teriam como fontes a memória, a inserção social e a vivência direta. O que gera, deste modo, novos problemas, os quais consideramos em parte respondidos pelas modernas teorias sociais (Ver Bourdieu e seus críticos.) e incursões da sociologia e da filosofia sobre o agir comunicacional (Ver Habermas e seus críticos.).

Do modo que pensamos hoje, no momento em que escrevemos este texto, ao perceber o mundo, os homens e as mulheres o fazem a partir do que são – experiência acumulada – e por efeito do momento vivido – experiência imediata. Suas crenças ou teorias (também crenças) seriam construídas a partir da cultura (experiências acumuladas orais, visuais, auditivas, táteis ou registradas em cérebros ou em suportes externos  possíveis de serem acessadas) e de sua relação material com o mundo da vida. Mas isto valeria para a percepção individual, assim como para a de natureza social? E o quê os homens realmente são?

 

A partir destas indagações, é preciso lembrar da natureza biológica dos seres humanos. As representações que fazemos são possíveis em determinados estados de nossos corpos e cérebros. Para sonhar de fato, e não metaforicamente, é preciso estar dormindo. Para resolver um complexo problema matemático e, principalmente, comunicar o resultado a outros, é preciso estar bem desperto. Não poderia estar escrevendo este texto se estivesse profundamente cansado ou cheio de dores agudas no meu intratável nervo ciático. Teria que parar e continuar em outra oportunidade.

O impressionante desenvolvimento recente das neurociências e dos argumentos das chamadas ciências cognitivas tem dado o que pensar sobre nossas anteriores certezas filosóficas e sociológicas.  Ler autores como Jacob, Monod, Penrose, Changeux, Damásio, Sacks, Varela, Maturana etc (Ver bibliografia) demonstram nossa ignorância anterior sobre o funcionamento cerebral, por mais que algumas teorias destes autores sejam ainda hipóteses sem comprovação e outras sejam – como qualquer investigação científica – contaminadas por ideologias de época, notadamente pelo individualismo.  Não é mais possível procurar entender a percepção sem recorrer a alguns destes conhecimentos.

É mais ou menos consensual entre estes especialistas que o homem é mais do que um simples ente que captura do meio as informações de que necessita. Neste antigo modo de ver o problema, tal como em Platão, a mudança da ambiência resultaria na mudança perceptiva e, logicamente, comportamental. De acordo com as neurociências, o fulcro da percepção estaria na estrutura interna biológica e não no meio envolvente. Nossas ‘antenas’ ou sentidos captariam informações de modo seletivo e vistas de acordo com necessidades geradas por nossa biologia. Como nosso herói, seríamos movidos em direção à luz porque nossa biologia nos empurraria nesta direção.

As respostas ao meio seriam determinadas pela estrutura interna, sob o efeito que causariam nas pessoas as sensações captadas de fora para dentro. Estas não podem alterar prontamente o que existe de modo prévio na consciência individual e na percepção coletiva. Os estímulos externos são percebidos a partir do que somos e são vivenciados nos limites biológicos da existência humana. Desaparece, neste novo paradigma, de acordo, fundamentalmente, com a obra de Maturana e Varela, a  velha idéia da soberania absoluta do meio sobre a percepção humana. O meio é filtrado por nossa natureza material (neurológica)  e por aquilo que antes foi cristalizado.

Um ser humano poderá ter, em um exemplo recente, um surto epilético ao assistir um determinado desenho animado porque biologicamente está sujeito a este acidente e não ao contrário. Obviamente, se existem pessoas com tal predisposição, acredita-se que este tipo de estímulo público deve ser controlado em nome dos direitos humanos. Em outro exemplo, a reprodução sistemática da violência pela violência (banalização), uma das várias dimensões do irracionalismo midiático contemporâneo, está, certamente, como um dos elementos da reprodução infinita e concreta de atos anti-sociais radicais legitimados pela ficção. Obviamente,  um dos componentes destas práticas encontra-se na natureza social e individual de seus praticantes, outro, na pressão externa. Desperta-se  a ‘besta’, que bem poderia ficar adormecida em um mundo, mesmo que utópico, mais delicado, afetivo e compreensivo. 

Tal visão da natureza humana explicaria, por exemplo, porque algumas teorias e análises sociológicas empacam frente à dificuldade de explicar porque, em determinadas condições, homens e mulheres fogem aos padrões estabelecidos consensualmente, lembrando que o consenso pode ser outro nome da imposição e dominação por suas classes, grupos, crenças e culturas. Agem contra o estabelecido, contra a norma, desviam-se do controle e das ‘verdades’ ou ‘mentiras’ compartilhadas e tidas como  ‘certas ‘ ou ‘erradas’ em determinado contexto. Daria sentido, não-mágico, ao fato de um dos aprisionados na caverna ter saído em direção à luz e apreciado a liberdade conquistada. Os seres humanos são organismos autônomos, por mais que precisem da vida social e de suas culturas. Podem, dentro de certos limites, fazer escolhas, usando suas capacidades perceptivas. Explicaria, portanto, a exceção frente à regra.

Nada disso invalida completamente o efeito do ambiente sobre as pessoas. Ele continua sendo poderoso ao fornecer os instrumentos – informações – que serão retrabalhados e conformarão as crenças – representações – que guiam a práxis. Vendo este problema, com o auxílio das neurociências, passamos a duvidar da teoria da ‘tábula rasa’, da idéia ingênua de que os  sentimentos, conhecimentos e práticas que dispomos e desenvolvemos seriam externos ou simplesmente impostos de fora para dentro.

Deste novo paradigma, podemos dizer que as prerrogativas humanas de sentir, conhecer e praticar funcionariam interiorizadas, aceitas e compreendidas como parte da nossa natureza biológica e social. Entenderíamos nossas mentes como parte de nossa natureza material, superando a dicotomia mente/corpo. Veríamos a nossa percepção como resultado da interação entre o meio e as nossas características e conformações corpóreo-cerebrais. Nada disso piora ou melhora a nossa acepção da condição humana ou as possibilidades de uma vida melhor,mais digna. Só serve para aumentar o nosso autoconhecimento e buscar soluções que considerem este aspecto do problema..

 

Na busca das relações entre a percepção e a comunicação

Sob o ponto de vista hermenêutico, não se pode deixar de compreender que as teorias da comunicação são percepções registradas em contextos específicos. São proposições que para serem entendidas é necessário estudá-las e vinculá-las às condições de seus estabelecimentos espaciais e temporais. O casal Mattelart produziu um painel bastante abrangente, registrando algumas das propostas para compreender o fenômeno comunicacional, formuladas ao longo do século passado.

Não se conseguiu construir, como diz Muniz Sodré, uma só teoria da comunicação. Existem várias e continuam sendo criadas tentativas de se explicar o fenômeno por meio dos mais diversos ângulos e abordagens. Consideramos que nosso esforço em enfatizar o papel da percepção nos campos teóricos e práticos dos estudos comunicacionais, é mais um no leque de proposições existentes.

No campo teórico da comunicação, o debate entre os partidários da emissão e da recepção assenta-se no modo em que os atos comunicacionais são percebidos. Apesar de o problema não ser sempre posto de modo claro, quem teoriza sobre o poder da emissão tende a pensar que o público-alvo é fundamentalmente passivo. Na teoria da recepção, ele seria ativo, chamando-se a atenção para importância do receptor que, em gradações diversas, participaria e/ou retrabalharia a emissão. Uma das diferenças que consideramos muito significativa consiste no fato de que a teoria da emissão seria, fundamentalmente, uma teoria dos meios de comunicação; a da recepção, basicamente uma teoria da cultura.

Não é casual que Barbero precise criticar a teoria da cultura de Adorno para afirmar suas propostas. As necessidades de Canclini caminham de modo similar as de Barbero. É preciso compreender e criticar os tradicionais conceitos patrimoniais de cultura e os preconceitos inerentes com a cultura de massas, para que se possam entender as mediações sociais e os atos comunicacionais decorrentes. O modo que se percebe a relação entre as pessoas e suas culturas, explica, pelo menos em parte, como elas recebem e emitem atos comunicacionais. Mas é preciso advertir que as culturas não são naturais ou imóveis. Elas podem ser modificadas a qualquer tempo, nos mais diversos sentidos e direções. A mobilidade das culturas é fato reconhecido por vários autores. Porém, o caráter artificial, isto é, aquele produzido pelo trabalho humano e pelo jogo de poderes entre classes, grupos, sexos etc é mais dificilmente percebido, apelando-se para a naturalização.

Não são igualmente acidentais a aproximação e embasamento dos teóricos da comunicação, de inspiração funcionalista, nos aspectos técnicos, matemáticos e maquínicos da transmissão de mensagens. Destas teorias, de nosso mirante, uma das mais contemporâneas é o agenda-setting, tão enfatizada por Mauro Wolf.  Antonio Hohfeldt, professor brasileiro, a considera mais uma hipótese do que uma teoria, seguindo de perto a proposta do manual escrito por Wolf.

O agendamento dos meios para o público receptor, segundo o autor brasileiro, dar-se-ia em três níveis. No primeiro, por meio de um “fluxo contínuo de informações” obter-se-ia o “efeito enciclopédia”. Isto significaria que as mídias e seu público lançariam mão de registros de memória, relativos a outros eventos nacionais ou internacionais, para concentrar-se e tentar explicar um fato recente. No segundo, conseqüência do primeiro, pode-se constatar o efeito em longo prazo e não o pretenso efeito imediato pensado nas primeiras teorias da comunicação. No terceiro, na mesma corrente explicativa, constata-se que as mídias seriam capazes de influenciar o público a médio e longo prazo, significando que a agenda da mídia poderia ser também a agenda individual e a social. Escapa aos limites deste trabalho descer a mais detalhes, aliás isto já foi feito por Hohfeldt (Ver bibliografia).

 

A hipótese ou teoria do agendamento não consegue superar o emissionismo, já que considera o receptor somente um pouco menos passivo que o habitual. Os teóricos da recepção diriam que este modo de pensar colidiria com o fato de que o público é capaz de também agendar as mídias, que suas reações acabam por atingir sua produção, portanto, não haveria uma rota de mão única. Se forem partidários exclusivos da recepção, chegariam a dizer que é o público que constrói o que surge e o que se vê nas mídias.

Pensando a partir da teoria da percepção e da representação, e assumindo uma postura própria sobre elas e os problemas das teorias da comunicação, de base hermenêutica; dizemos que as mídias de fato agendam seu público com o arsenal de que dispõem. Entretanto, é preciso que o público aceite e processe este agendamento, em uma relação dialética em que contaria mais a percepção social e a individual do que o esforço de inculcamento das mídias. Estas não são soberanas, porém é ilusório negar os seus poderes, que consistem em representações sociais, políticas e culturais dos esquemas político-econômicos das sociedades a que pertencem.

Habermas não é um teórico da comunicação no sentido estrito do termo. Suas asserções sobre o problema referem-se às análises e compreensões do mundo da vida e do espírito. Aborda questões relevantes para a compreensão do processo comunicacional sob o ponto de vista da filosofia e da sociologia. Suas teorias do agir comunicativo e do agir estratégico referem-se ao comportamento social dos seres humanos no que tange ao aspecto comunicacional. Encontra-se, no pensamento dele, um imenso esforço de reflexão sobre os problemas  da ética, da moral e do discurso. Praticamente não há comentários sobre a percepção, a não ser de modo indireto, quando explora os padrões comportamentais e seus valores. Sua força está no uso da hermenêutica, que nele adquire cores vivas e críticas,  o que permite avançar na compreensão das teorias sobre o presente midiático que nos cerca.

De fato, é praticamente impossível falar do homem e da mulher sem nos referirmos à percepção, nem que seja de modo indireto ou antagônico. Os que acreditam que o mundo da vida é algo pronto, acabado e externo ao humano naturalizam a percepção e  tratam-na como um problema menor.

Quem valoriza os estudos sobre a percepção humana chega a estes de modo indireto, porque a pressão do senso comum é forte para que acreditemos que o que vemos é o que pensamos; e que o real material é dado pelo modo com que percebemos o que nos cerca e a nós mesmos. Os casos sucessivos e habituais das pessoas que abordam atores e atrizes, confundindo-os com seus personagens, consiste em uma clara manifestação de que o  modo de compreender o mundo pode ter inúmeras variações interpretativas.

Na tradição ocidental e cristã é preciso ‘ver para crer’ e comunicar. Inverteríamos a proposição dizendo que vemos, ouvimos etc por meio do filtro de nossas crenças e nos comunicamos a partir do resultado deste fenômeno na formação de nossas consciências. Interpretamos o que nos cerca, a partir do que somos, de nossa  ‘verdades’ e  ‘certezas’ previamente acumuladas. Obviamente que estas são também resultados da interação entre percepções anteriores e nossa natureza biológica. O sentido do aprendizado seria este, de fusão entre elementos simbólicos e materiais, próprios de nossa espécie.

Quando falamos em consciências mágicas, ingênuas, críticas ou cínicas estamos analisando padrões culturo-sócio-comportamentais; estes podem se referir às classes, grupos sócioculturais, instituições, indivíduos  etc. Os padrões mencionados são, ao mesmo tempo, comunicacionais, porque ao nos comunicarmos, temos neles nossa referência exterior fundamental. Todavia, é preciso advertir que neste enfoque estamos nos referindo ao modo com que é possível observar ‘de fora’ como se processa, e em quê resulta a percepção.

 

Já data de mais de meio século a discussão proposta por Austin (Ver bibliografia) sobre o problema da ilusão e da delusão. A primeira, um efeito de aparência causado pelos sentidos quando defrontado com algo que o faça pensar que um objeto, pessoa ou idéia seja outra coisa. Note-se que a ilusão é sempre a posteriori. Constatamo-la ou não após viver a experiência. Podemos dizer que se jamais percebermos o engano, para nós o visto não será ilusório. A segunda, seria a constatação, sempre posterior, de que imaginamos algo absolutamente irreal.

O exemplo de Austin é esclarecedor. A ilusão seria a percepção da existência de um oásis no deserto inclemente, pelo efeito da refração da luz solar. A delusão seria quando não precisamos mais da ilusão provocada por estímulos externos para estarmos ‘enganados’. Veríamos o oásis, sem necessitar de qualquer indução externa. Essa visão seria fruto de nossa capacidade mental de produzir imagens ‘falsas’ sobre a ambiência.

Aplicando os conceitos de ilusão e delusão às relações entre as mídias e seus públicos, é possível dizer que ambas possam existir; e que a delusão é hegemônica no mundo em que vivemos, onde não é mais necessário ‘enganar’ ninguém. Depois do consumo de tantas informações, repetidas ao infinito, o público já estaria pronto para ver a vida de modo delusório. O estímulo externo claro e forte teria perdido qualquer finalidade. Bastaria, como os meios de comunicação o fazem, lembrar de modo vago e impreciso algo previamente registrado e acreditado. Isto dispararia o mecanismo da crença e da repetição reificante.

Do modo que desenvolvemos a nossa compreensão dos fenômenos da percepção, associados ao agir comunicacional, sob o ponto de vista hermenêutico e crítico,  dizemos que tanto a ilusão como a delusão são representações. Há nelas forte conteúdo normativo, pois se acreditarmos que fomos iludidos ou alguém o foi, estaremos sempre atribuindo um valor moral a uma ação humana. Esse valor tem, necessariamente, mil e uma possibilidades de construção e reconstrução. Se, em outra vertente, apontamos algum pensamento como delusório, estaremos afirmando que alguém processou de modo equivocado imagens sobre o real, sem precisar nada sentir de fora para dentro para obter os seus resultados. Caímos, assim, em um impasse, aparentemente sem solução. Para sair dele, temos que separar o real representacional do real material, como já foi explicado, retornando em seguida à unidade do real, que é distinta da percepção, que é apenas uma de suas partes.

Conclusões

Assumimos, neste trabalho, os riscos da abordagem transdisciplinar, no sentido que Morin dá a este termo. Nesta, não é nossa preocupação simplesmente transpor conhecimentos de outras disciplinas para uma nova ou previamente existente. Procuramos examinar o problema da percepção por vários ângulos, sem concluir que um é melhor (moral) do que o outro. No interesse dos estudos comunicacionais, faz-se necessário estudar a percepção a partir das contribuições existentes produzidas por vários campos do saber.

Nos limites deste trabalho, pode-se dizer que não foi esgotado o exame das teorias da comunicação e nem as contribuições da filosofia para que se compreendam os problemas referentes ao modo usado pelos homens, mulheres, com ou sem a mediação das máquinas, para perceberem e se comunicarem. A cada dia surgem novas máquinas de comunicar, cada vez mais complexas e eficazes. Elas alteram o modo como percebemos o mundo e a nós mesmos em um sentido superficial, porque nossa natureza biológica e histórico-social profunda continua orientando como percebemos o exterior e interior. Por isso, a referência à percepção dos indivíduos é fundamental.

Uma máquina pode emitir sinais avisando que em determinado ambiente há frio ou calor. Entretanto, não pode produzir a idéia consciente da temperatura circundante. Seus sinais precisarão ser percebidos e interpretados por seres humanos, ao contrário, de nada servirão. Obviamente, pode-se colocar outras máquinas mediando as primeiras, mas o ponto de partida e de chegada será sempre humano. Se imaginarmos uma máquina que capte e forneça imagens digitais, elas só poderão ter alguma utilidade se forem possíveis de serem captadas e fizerem sentido aos homens e mulheres que as assistirem e formarem juízos conscientes sobre o que viram. Os livros de Penrose são seminais para compreender a impossibilidade de uma máquina consciente, que se assim fosse não seria mais uma máquina.

 

Nosso principal objetivo aqui foi o de traçar um roteiro de discussão destes problemas que afetam as teorias e as práticas comunicacionais, por meio das teorias da percepção e da representação. Destas, a primeira foi mais valorizada tentando-se propor um novo olhar para o processo comunicacional. As representações que fazemos só são possíveis de serem criadas por meio da percepção de nossos sentidos.  Neste  modo de ver o problema, a percepção vai para uma posição cêntrica, junto com a emissão e a recepção, formando uma espécie de panteão dos interesses de nosso campo específico de estudo, a comunicação. A teoria da representação é ampliada, vista como extensão da teoria da percepção.

Certamente, as perguntas que iniciam e percorrem este texto não foram integralmente respondidas.  Obviamente, há muito para pesquisar sobre o mesmo assunto, na direção da produção de uma hermenêutica do agir comunicacional que dê conta de uma visão renovada destes fenômenos.

 

Bibliografia

ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1985. 254 pp. A edição em alemão é de 1969.

AYER, A. J. As Idéias de Bertrand Russell. São Paulo : Cultrix, 1984.

AUSTIN, J. L. Sentido e Percepção. São Paulo : Martins Fontes, 1993. 193pp. A primeira edição em inglês é de 1962.

BARBOSA, Marialva Carlos.  “Estudos da recepção ou como completar o circuito da comunicação.”. In: Ciberlegenda, n. 1, 1998, Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Imagem e Informação. UFF.  http://www.uff.br/mestcii

BAUDRILLARD, Jean.  Simulacros e simulação.  Lisboa : Relógio d’água, 1991.

BOUGNOUX, Daniel. (Org.) Sciences de l'information et de la  communication. Paris : Larouse, 1994.  809 pp.

BOURDIEU, Pierre.  A economia das trocas simbólicas.  2 ed.  São Paulo : Perspectiva, 1987. 361 pp.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 3 ed. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 2000. 311 pp.

BRETON, Philippe, PROULX, Serge.  L'Explosion de la communication.  3 ed.  Montréal : Boréal, 1994. 341pp. 

BRETON, Philippe.  L'utopie de la communication: le mythe du village  planétaire.  Paris : La Découverte, 1997. 172 pp.

CANCLINI, Néstor Garcia. Cultura y comunicación: entre lo global y lo local. La Plata (Argentina) : Universidad Nacional de La Plata, 1997. 133 pp.

CHANGEUX, Jean-Pierre, RICOUER, Paul. Ce qui nous fait penser: la nature et la règle. Paris : Odile Jacob, 1998. 350 pp.

CHANGEUX, Jean-Pierre. L’homme Neuronal. Paris : Hachette, 1983. 379 pp.

DAMÁSIO, Antônio. O Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo : Cia da Letras, 1996. 330 pp.

DAMÁSIO, Antônio. O Mistério da Consciência. São Paulo : Cia da Letras, 2000. 474 pp.

DOSSE, François.  L'empire du sens: l'humanisation des sciences humaines.  Paris : La Découverte, 1995.  432 pp.

HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Trad. De Guido de Almeida. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1989. 236 pp. A edição original em alemão é de 1983.

HABERMAS, Jürgen. De l’éthique de la discussion. Paris : CERF, 1992. A edição original em alemão é de 1991. 202 pp.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural na esfera pública. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1984. 397 pp.

HABERMAS, Jürgen. Dialética e Hermenêutica: para a crítica da hermenêutica de Gadamer. Porto Alegre : L&PM, 1987. 136 pp.

HOHLFELDT, Antonio, MARTINO, Luiz C., FRANÇA, Vera Veiga (Orgs.) Teorias da Comunicação: conceitos, escolas e tendências. Petrópois : Vozes, 2001. 277 pp.

JACOB, François.  La logique du vivant: une histoire de l'hérédité.   Paris : Galimard, 1970.  354 pp.  

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. São Paulo : Nova Cultural, 1999. 511 pp. A primeira edição é de 1781.

LOPES, Luís Carlos. A informação: a mônada do século XX”. In: Ciberlegenda, n. 1, 1998, Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação  em Comunicação, Imagem e Informação. UFF.  http://www.uff.br/mestcii

LOPES, Maria Imacolata Vassalo de Lopes, FRAU-MEIGS, Divina, SANTOS, Maria Salett Tauk. (Orgs.). Comunicação e Informação: identidades e fronteiras. São Paulo/Recife : Intercom, 2000. 357 pp.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe: estudos de dialética marxista. Lisboa : Escorpião, 1974. 378 pp.

LUHMANN, Niklas. A Improbalidade da Comunicação. 2 ed. Lisboa : Vega, 1999. 157 pp.

MARTÍN-BARBERO, Jesus.  Dos meios às mediações.  .Rio de Janeiro : Editora UFRJ, 1997.

MATTELART, Armand e Michèle.  Histoire des théories de la  communication.  Paris : La Découverte, 1995.  125 pp. A terceira edição em português é de 2000, pela Loyola.

MATURANA ROMESÍN, Humberto, VARELA GARCIA, Francisco. J. De Máquinas e Seres Vivos: autopoiese, a organização do vivo.  3 ed. Porto Alegre : Artes Médicas, 1997. 138 pp.

MATURANA ROMESÍN, Humberto. Da Biología à Psicología. 3 ed. Porto Alegre : Artes Médicas, 1998. 200 pp.

MCLUHAN, Marshall. (1911-1980)  Pour Comprendre les médias: les prolongements technoliques de l'homme.  Traduçao do inglês por Jean Paré.  2 ed.  Québec : Hurtubise, 1993.  561 pp.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2 ed. São Paulo : Martins Fontes, 1999. 662 pp. A primeira edição em francês é de 1945.

MONOD, Jacques.  Le hasard et la nécessité: essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne.  Paris : Seuil, 1970.  213 pp.

MORIN, Edgar.  “Sur la transdisciplinarité.” In: Guerre et paix entre les sciences. Paris : La Decouverte, 1997.  P. 21-29.

PENROSE, Roger.   O grande, o pequeno e a mente humana.  São Paulo :  Unesp, 1997.

PENROSE, Roger.  A mente nova do rei: computadores, mentes e a leis da física.  Rio de Janeiro : Campus, 1993.

PLATÃO. Diálogos / A República. Rio de Janeiro : Ediouro, s/d.

PLATÃO. Diálogos / Platão. São Paulo : Abril Cultural, 1979.

PUTNAM, Hilary.  Représentation et réalité.  Paris : Gallimard, 1988.  226 pp.

RICOUER, Paul. Interpretação e Ideologias. 4 ed. Rio de Janeiro : Francisco Alves, 1990. 171 pp.

SACKS, Oliver.  Um antropólogo em Marte.  São Paulo : Cia. das Letras, 1995.

SFEZ, Lucien.  Crítica da comunicação.  Lisboa : Instituto Piaget, s/d.  A edição em francês é de 1990.

SEARLE, John. Mente, Linguagem e Sociedade: filosofia no mundo real. Rio de Janeiro : Rocco, 2000. 157 pp.

SEARLE, John. A Redescoberta da Mente. São Paulo : Martins Fontes, 1997 379 pp.

SODRÉ, Muniz. Tempo real e espaço virtual exigem uma nova teoria da comunicação: entrevista com Muniz Sodré   In: Ciberlegenda, n. 6, 2001, Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação  em Comunicação, Imagem e Informação. UFF.   http://www.uff.br/mestcii  

WOLF, Mauro.  Teorias da comunicação.  4 ed.  Lisboa : Presença, 1995.247 pp. 

voltar   |     topo