SUBJETIVIDADE E NOVAS TECNOLOGIAS DE COMUNICAÇÃO

archivo del portal de recursos para estudiantes
robertexto.com

ligação do origem
Francisco Rüdiger

Professor-titular da Faculdade de Comunicação    

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 

 

IMPRIMIR

 

   Desde Descartes, a subjetividade humana (sabemos com certeza se não há outras ?) vem sendo entendida como uma substância pensante, caracterizada pela constância, unidade e isolamento, a  qual se oporiam o corpo e o mundo.  A concepção  do homem como parte de um todo mais amplo, responsável pela formação de sua identidade desde fora, em vigor há mais de três milênios, começou a ser abandonada. Desenvolveu-se a consciência de possuirmos um eu separado e distinto, formado desde dentro, a partir do  confronto com os outros seres e pessoas.  Falando noutros termos, perante a categoria relacional da pessoa emergiu pouco a pouco a visão  do homem como sujeito portador de uma identidade individual [1].

  Os recentíssimos  progressos  tecnológicos  verificados  com  o aparecimento das máquinas  geradoras  de   realidade   virtual (simulação)  e  das redes de interação telemáticas  estimularam  o surgimento  de  uma reflexão teórica em que  esses pressupostos passaram a ser profundamente questionados. Para seus porta-vozes, as tecnologias  de comunicação vêm, realmente,  promovendo uma multiplicação   de contatos  e  conhecimentos cujo   resultado principal,  socialmente  falando,  é  a paulatina  mudança nas concepções  vigentes  sobre como se estrutura  e  funciona nossa subjetividade.

  O  desenvolvimento de mecanismos de interação e o surgimento de uma esfera pública virtual projetou-as em uma segunda  fase, em que   se  vê caducar  o conhecido esquema comunicador – mensagem -  receptor[2]).  Os participantes começam a transcender essa oposição, tornando-se usuários interagentes  de  redes abertas  e sem  centro, nas  quais "os sujeitos se tornam cada vez mais instáveis, múltiplos e  difusos" [3]. As fantasias tecnológicas pretendem que "o mundo será formado por indivíduos capazes de se multiplicar através de aparelhos portáteis e interconectados em espaços relacionais por redes estelares de satélites e redes terrestres de fibra ótica"[4].

 As  cogitações sobre os possíveis modos de ser do  homem feitas pelos filósofos, poetas e artistas do passado estão  perdendo  o caráter fantasioso. Através  da  máquina, começamos  a   viver situações  em  que não apenas o referido eu  tornou-se  múltiplo, fluido e aberto mas, além disso, está surgindo uma nova forma  de identidade.  A sociedade  cibernetizada permite  a  refração da personalidade em múltiplos eus e radicaliza as possibilidades  de emprego  da ficção no comércio cotidiano. As pessoas estariam pois passando  a ter  chances  de, virtualmente, trocarem de sexo, modificarem a idade e assumirem novos papéis e identidades.

"No tempo real do ciberespaço, oferecem-se ao indivíduo mais possibilidades:  a  identidade torna-se  fragmentada quando convertemos  o  que somos de múltiplas  maneiras. Como construímos e reconstruímos o eu depende muito do crescente número  de  pessoas  que  encontramos e  de  como elas nos respondem.  Se alguém pretende participar satisfatoriamente do corpo de uma comunidade virtual, possuir vários eus não é apenas possível mas necessário: algo inevitavelmente ditado pela tecnologia." [5]

  A  televisão  pôs um pântano  em movimento ao  colocar  a  nossa consciência um número cada vez mais amplo e variado de estilos de vida, maneirismos, sentimentos,  papéis   e pensamentos. Rapidamente,  o veículo  multiplicou nossas  possibilidades  de sermos  outros,  de  sermos diferentes  do  que  nos tornamos, mostrando-nos  imagens mais ou menos realistas das mais variadas formas de experiência humana. Deslocando seu centro em  múltiplas direções,  a televisão  procedeu,  noutros   termos,   a uma desterritorialização generalizada da subjetividade do conjunto da população.

 Os  princípios  de  simulação e interação que  se  impuseram  às tecnologias do espírito no último  decênio  radicalizaram  essa situação, possibilitando-nos não  apenas  ver mas,  avançando, participar,  ainda  que virtualmente, da criação e  recriação  da totalidade   da   experiência  humana. A   sociabilidade   virtual engendrada pela televisão convencional permitia-nos assistir  aos acontecimentos. As máquinas criadoras de realidade virtual, sejam câmaras   de  simulação, videogames  ou  salas  de  conversação ciberespaciais,  levam-nos  mais longe, possibilitando  que  nos tornemos seus protagonistas.

'"A experiência tecnológica do cyberspace convalida para si um sentido próprio de virtual na medida em que cada usuário teleinteragente intervém, desliza, trafega na virtualidade do outro, quer dizer, á sombra de sua miragem objetiva, de seu espectro que circula na estrutura virtual 'cavada' no vácuo eletromagnético das elásticas infovias"[6]

  Marc   Guillaume   estudou  com  pioneirismo   esse   fenômeno, ressalvando acertadamente porém que os maquinismos logotécnicos e interativos  não  têm  vida própria:  representam  fatores   que radicalizam uma  tendência social mais profunda. No entanto,  o pensador  não  deixa de concordar com a hipótese  de que  esses mecanismos de comunicação e ficcionalização do social   "promovem uma espécie de elisão do sujeito, o seu desvanecimento parcial em um  jogo  indefinido  de  identidades flutuantes".   Em   última instância, verifica-se que, por sua causa, "a posição de sujeito individual, essa invenção recente, parece destinada a ter um  fim muito próximo" [7].

 As  concepções  acerca do eu criadas por românticos  e  liberais estão caindo em desuso, caducando, assim como as relações sociais que  elas apoiavam, na medida em que as  tecnologias  emergentes saturam-nos  com uma variedade de estilos de vida e imagens  que tende a nos privar de centro, seja ele o do eu racional, seja ele o do eu autêntico. Os propósitos sociais que eram atendidos  pela crença   em  tais  conceitos estão  se  tornando   difíceis   de  estabelecer num contexto em que 

"A   credibilidade  no  mundo  interior  é   colocada   sob suspeita,  a existência  de um centro subjetivo  no  ser  é problemática, e as instituições que se justificavam por essas premissas são sujeitas a uma  análise  crítica." [8]

   Em síntese, o resultado combinado desse processo seria, portanto, nosso  ingresso em um  mundo no qual  nós  já  não  vivemos  um sentimento  seguro  de possuir um eu e no qual há cada  vez  mais dúvida   sobre  a  suposta  existência  de  uma identidade individual  bem delimitada. Primeiro a Internet  promove uma colonização da linguagem cotidiana, que condiciona o  processo de formação da consciência de um número sempre crescente de indivíduos. Através desse e outros processos todavia acaba estimulando ou  favorecendo uma pluralização do eu em escala e força que, no limite, arrisca ou  condena ao desaparecimento pelo menos este tipo de identidade.

"[No limite] O Internauta que se percebe como máquina viva e pensante todavia chega a suspeitar que é prisioneiro em um corpo cujas possibilidades são terrivelmente limitadas, passando a sonhar em se fundir com a máquina, de nela se dissolver a fim de não mais se submeter à necessidade trivial de comer, beber, dormir e de cuidar de um corpo que o lembra a todo o momento de seus limites individuais: sua hibridação com a máquina, se fosse um dia  possível, resolveria seu problema." [9]

  O  presente relato se propõe a colocar em questão  as  teses que preparam e de certo modo nutrem esse último extremismo histórico e ontológico, cujas origens, defendemos no estudo anterior, podem  ser buscadas no  pensamento  nietzscheano.  O desenvolvimento das máquinas criadoras de realidade artificial  e interação   à   distância tem ensejado  um ressurgimento do determinismo tecnológico como paradigma de explicação da  cultura e comunicação que, será nossa sugestão, não passa sem polêmica.

 Baseando-nos  em dados de alguns relatos de pesquisa recentes trata-se pois, no que segue, de (1) levantar, ainda que brevemente, alguns tópicos relativizadores dessa abordagem;  e de (2) assinalar alguns problemas presentes nas teorias que, surgindo  em reação aos  excessos do discurso pós-modernista sobre  as comunicações, não obstante reconhecem a necessidade e validade de enfrentar  as questões  que esse coloca a respeito do destino da  subjetividade na era das novas tecnologias de comunicação.

 A perspectiva metodológica em que se situa o trabalho culmina até certo ponto a linha de estudo conduzida até agora ao longo do volume, se admitido que uma abordagem ao mesmo tempo crítica, histórica e interpretativa de ampla abrangência dos temas tratados mereça ser chamada de antropologia da cibercultura. A expressão não é a de nossa preferência, mas vem a ser útil no momento em que por seu intermédio podemos pelo menos apontar para uma reflexão de ordem metodológica sobre a natureza da  investigação nestas páginas conduzida[10].

 Partindo da reconstrução de alguns pressupostos históricos mais amplos e da reflexão crítica sobre sua mediação filosófica, pretendeu-se nos textos anteriores examinar criticamente algumas das postulações feitas  em relação à cibercultura pelos intérpretes interessados em pensar as questões do sujeito e do objeto no âmbito das novas tecnologias de comunicação. Agora trata-se de retomar o ponto inicial meditando com a mesma atitude sobre os materiais colhidos por algumas pesquisas de etnografia on-line, seguindo-se a sugestão de que, baseando-se em elementos empíricos e históricos,  é possível "separar o que pode ser dito de maneira  razoável ... do enorme nonsense que existe em relação a esse assunto" (idem, p. 225).  

 A cibercultura compreensivelmente vem ensejando a disseminação de uma formidável retórica celebratória, de natureza propagandística, que uma vez notada todavia deve ser levada a sério, por ser sintoma de um processo mais amplo e profundo que, esse sim, está a exigir uma análise crítica rigorosa e intransigente acerca de seu significado. Nesse esforço, o elemento diferencial não são as fontes dos materiais sob análise, nem os métodos empregados para sua coleta. O principal é a capacidade de resistir às exigências de renuncia à reflexão em favor das imagens com que agora se apoia e move nossa época e pensar  de maneira crítica e independente os problemas que ela coloca aos contemporâneos e à humanidade histórica.  

  Kenneth Gergen pode nos  servir de primeiro interlocutor  nessa tarefa, na medida em que sua obra sobre o eu pós-moderno tornou-se, com o passar  do tempo,  uma referência seminal da discussão  sobre  a sorte do sujeito na era da cultura tecnológica. Em   The saturated  self,   o pensador  de   fato desenvolve  a  hipótese  de que as tecnologias  de comunicação puseram em movimento um processo cujo resultado é a virtual erosão da noção  de  eu  (self) e a resultante disseminação da consciência  de que a identidade  individual é criada e recriada através de nossos relacionamentos. O sujeito tende neste contexto a ser redefinido em  termos relacionais, de modo que, no futuro,  "as relações (sociais) passarão a ocupar  a  posição central  que teve o eu individual durante os últimos  séculos  da história ocidental" [11].

  O  primeiro passo ocorreu, segundo o autor, quando o indivíduo descolou seu  eu dos papéis sociais, passando  a manipulá-los  de  acordo  com  seus interesses egoístas: trata-se de um  estágio  dominado pelo  que ele chamou de manipulação estratégia. O segundo surgiu com a perda de limites  havida por  essa prática e sua extensão  para  todas  as esferas  da vida,  processo esse  através  do  qual  o  indivíduo se transforma  mais  e mais em pastiche. No final, acontece que  sociabilidade surgida  com a multiplicação de contextos vitais dessa espécie dá lugar a um eu relacional: então, o indivíduo desenvolve a consciência de que  seu eu é uma ilusão e ele mesmo não é mais do que a soma  de  suas relações com os outros.

"Os  estágios  iniciais dessa consciência  culminam  com  o sentimento do eu ser um artista social que manipula  imagens para  atingir  seus objetivos. Na medida em que,  assim,   a categoria  do  eu real continua  a fugir de vistas, ocorre porém  a aquisição  de uma personalidade semelhante a  um pastiche. Contradição e coerência deixam de importar, já que se  tira prazer da expansão das possibilidades de ser em  um mundo socialmente saturado. Finalmente   erodidas   as distinções  entre o  real  e  o  forjado,  o estilo  e   a substância,  o  conceito  de  eu individual  deixa  de  ser inteligível, chegando o ponto em que se está preparado para a  nova realidade dos  relacionamentos."

  Aparentemente, Gergen pretende firmar nessa passagem três pontos :

1.  "Passamos  a perceber que quem e o que somos não é tanto  o efeito de nossa essência individual (sentimentos reais,  crenças profundas e coisas do tipo) mas da maneira como somos construídos nos diversos grupo sociais";

2. "[Doravante] não podemos mais determinar com segurança o que é ser um tipo específico de indivíduo (person) - homem ou mulher - ou mesmo o que é ser o próprio indivíduo (person) "

3. "[Na pós-modernidade,] começa a se apagar a noção de eu (the category of self)" (idem, p. 171).

    Conforme resume Michel Maffesoli, ainda que sem sugerir um determinismo tecnológico, nessa era  ocorre que "o indivíduo [enfim] importa menos  do  que a pessoa"[12].

  A  revisão da literatura em que essas teses pretendem  encontrar suporte empírico e  a reflexão  crítica  sobre  suas  premissas teóricas fornecem-nos, segundo nosso modo de ver, elementos  para não  somente problematizar essa idéia de que a pluralização  dos contextos  de vida em curso hoje em dia  resulta na supressão  da noção convencional de eu como ir além. Permite-nos pensar se o que ocorre não é,  antes, o oposto: o reforço da consciência  do indivíduo constituir  esse eu, o fortalecimento social da sensação  de  que esse  eu  corresponde ao sujeito da consciência concebido  pela filosofia idealista.

 Teoricamente,  podemos conceber com boas razões a hipótese de que a  manipulação estratégica  e a identidade pastiche que, no limite, resultam  da cultura moderna não são seguidos pelo aparecimento da consciência relacional.  A liquefação do indivíduo na realidade  virtual  é ideologia, aparência socialmente necessária. Em última instância, o sujeito proteico que nela se expressa ainda é um  sujeito  que pensa em  si  mesmo como um eu livre, distinto  e  separado  da estrutura societária.

 As ciências sociais se baseiam no pressuposto de que  o homem  é um ser social. O reconhecimento científico-social de que a figura do  indivíduo é um produto histórico, resultante de processos  de interação e poder, contudo não tem o poder de quebrar o  conceito metafísico  do  sujeito,  porque  esse é  uma  abstração real, produzida  por  fatores sociais de peso muito maior do que  o  do conhecimento sociológico.

 O  supracitado  conceito, encarnado por nós  no  sentimento  de
possuirmos  um  eu  focal,
  distinto e  separado,  possui  raízes sociais  e, por  isso,  não pode  ser  liquidado  por   decreto epistemológico. Raciocínios teóricos não têm o poder de  suprimir ficções sociais, na medida em que são necessárias como  condições da práxis dominante. Provocam abalo e começam a modelar um novo imaginário  mas seu destino não deve ser deduzido  mecanicamente. Somente a história poderá mostrar se, uma vez abolidos os fatores que   o engendraram,   ele  virá  a  desaparecer  do proscênio societário.

 Robert Jay Lifton é, nesse aspecto,  um dos poucos teóricos atuais a defender que o sujeito proteico por ele pensado ainda nos anos 60 não conduz a supressão do eu, no sentido de uma fragmentação que, no limite, conduz a perda de coerência entre suas partes. Para ele, a figura "supõe a procura de autenticidade e signifiado [individual], uma interrogação sobre a forma de existência do eu próprio" [13].

 Seguindo essa hipótese, sustentaremos que apesar de todos os esforços no sentido oposto que surgem em conexão com seu progresso, a tecnificação da cultura não suprime, antes reforça, o sentimento reificado do eu como algo que pode ser localizado dentro dos indivíduos. A sociabilidade tecnológica não é, pelo menos ainda, um estimulador para as pessoas se entenderem, ainda que em parte o sejam, como seres relacionais, conforme percebeu pioneiramente Georg Simmel.

 Conforme observado pelo pensador ainda no começo do século passado, o indivíduo resiste a ser nivelado pela técnica da vida moderna, procurando manter sua subjetividade no caminho que sua consciência aprendeu a trilhar neste mesmo contexto. Argutamente, ele percebeu que a tecnificação cada vez mais radical das várias esferas da vida leva à dispersão do sujeito tanto quanto à tomada de consciência dessa condição (de ser sujeito) por parte do indivíduo, embora não tenha relacionado o processo com a crise de identidade que tem lugar na cultura moderna. Os fenômenos têm  a mesma fonte e compõe lados opostos de um único e mesmo processo.

 Simmel não caiu no jogo fácil de aceitar o perspectivismo com o qual se pode pensar em ligar a experiência contemporânea das redes com a filosofia de Nietzsche. A fragmentação da cultura moderna é ambivalente na medida em que é um fator favorável à  dissolução do eu tanto quanto a sua síntese transcendental por um contigente cada vez maior da população.

 Em Filosofia do Dinheiro (1900), o pensador observara que a fragmentação das atividades sociais e o emprego de meios técnicos em cada uma delas, promovidos pela economia de mercado, conduzem à desintegração da personalidade nos papéis exigidos por cada situação, dispensando as faculdades e fatores que, desnecessárias no caso, não obstante reunidas configuram o conceito de personalidade[14].

 Entretanto, continua, precisamos observar igualmente que essa desintegração da subjetividade também resulta em um redirecionamento do indivíduo para seus próprios recursos e habilidades, tendo em vista a necessidade dele se deslocar entre esses âmbitos, e isso tende a torná-lo mais consciente de si mesmo do que o seria numa situação marcada por um menor grau de relacionamento[15].

 Karl Marx havia notado nos Manuscritos de Paris que "o homem é o eu", a consciência de si como sujeito,  mas esse não é dado, "é o homem concebido em abstrato e produzido pela abstração", dentro de condições históricas determinadas, particularmente as associadas com o desenvolvimento do capitalismo[16].

 

 Simmel retomou essa idéia, ainda que sem a conhecê-la, explicando que essa consciência é favorecida pela economia mercantil, porque, como ele diz, a desvinculação de toda relação orgânica com a realidade exterior e o sentimento de que opomo-nos a essa realidade como um eu último e irredutível coincide com o conceito idealista de sujeito[17]

 A explicação mais detalhada para tanto encontra-se porém em uma passagem de sua Sociologia (1908).

 O pensador observa aí que, conforme o homem passa a circular e conviver em mais de um coletivo social se abre um maior espaço para desenvolver sua individualidade. A pertença a um coletivo bem definido tende a limitar a liberdade pessoal e, assim, as peculiaridades do indivíduo. As manifestações individuais transcorrem de acordo com os padrões ditados de fora e engajam o conjunto de personalidade. A pessoa deseja se destacar entregando o todo de seu eu a uma causa que não tem origem nesse eu mas nas decisões de sua coletividade.

  A civilização moderna, contrariamente, estimula o florescimento do individualismo, da consciência de ser um eu, porque à criação de várias esferas de vida corresponde uma maior liberdade do indivíduo. A fragmentação da sociedade em vários círculos exige cada vez menos de sua personalidade total, resulta em menor cuidado externo, permitindo-lhe perceber mais a si mesmo. A multiplicação dos círculos sociais faz com que se afrouxem os vínculos sociais com cada grupo e se evidencie o caráter separado e único de cada indivíduo.

"Em diversos sentidos, a natureza humana e as circunstâncias estão dispostas de tal maneira que, quando as relações do indivíduo ultrapassam determinada extensão, ele passa a se ater mais a si mesmo. Não se trata apenas de uma extensão puramente quantitativa do círculo, que, por si só, tem de reduzir a um mínimo  o interesse pessoal por cada um de seus membros, mas também da variedade qualidade que impede que o interesse se fixe parcialmente em um ponto determinado, e faz com que o egoísmo surja como resultado lógico da correlata paralisação de tantas pretensões incompatíveis." Simmel, op. cit., p. 793.

 O sentimento de constituir um eu individual, uma personalidade separada e única, aumenta de acordo com a velocidade, intensidade e variedade das mudanças com que o homem se defronta. A permanência precisa da mudança para ser concebida. Destarte, quanto mais diversas e mais fortes forem essas experiências, mais forte o homem se sentirá como um ego, mais o eu aparecerá como centro imóvel ou fundamento da identidade individual.

”Devido ao seu caráter de massa, à variedade incessante, à igualação das incontáveis qualidades conservadas até agora, ninguém negará que o estilo de vida moderno produziu enormes nivelamentos na forma pessoal de vida. Entretanto, precisamos reconhecer também as correntes contrárias que, apesar disso, podem se ver contidas e desviadas do ponto de vista de seu efeito total aparente. [O fato é que] a vida em círculo amplo e a relação com ele desenvolvem em maior grau a consciência da personalidade do que a vida em um círculo estreito."[18]

 A consciência de si como sujeito transcendental, como sendo um eu, como algo que está além das peculiaridades individuais nasce com a percepção da diferença entre essas peculiaridades e  a subjetividade em que elas se alojam, com a percepção de que essas peculiaridades não têm ligação direta com o eu, podendo ser por ele manipuladas até certo ponto livremente.

 Nas sociedades pré-modernas, a subjetividade está, por assim dizer, fundida com os sentimentos, experiências e impressões externas. A existência é geralmente vivida como espera ou motivo de contemplação. O fracionamento da alma e o sentimento de vazio interior são praticamente nulos, porque ela é preenchida com os conteúdos da cultura como uma unidade. A consciência de si não se separa dos papéis que lhe confere a coletividade, e as expressões individuais se restringem à maximização das possibilidades contidas nesses papéis.

 A desintegração das estruturas holísticas significa, ao contrário, a possibilidade de o eu aparecer à consciência como ponto fixo e abstrato, em relação ao qual se sucedem os acontecimentos; constitui uma condição histórica para o desenvolvimento da consciência transcendental porque

 "Os estímulos sentimentais, que têm particular importância para produzir a consciência subjetiva do eu [o sujeito da consciência] se dão ali onde o indivíduo muito diferenciado convive com outros indivíduos muito diferenciados também, produzindo-se então comparações, roçares, relações especializadas, uma multidão de reações que, em círculos estreitos e indiferenciados, permanecem latentes, enquanto aqui provocam o sentimento do eu como o absolutamente próprio justamente por sua abundância e divergência."[19]

 Conforme vimos acima,  a tragédia da cultura provém da crescente dificuldade que esse indivíduo encontra de desenvolver o caráter único de seu eu que se evidencia com o processo histórico  que dá origem a essa consciência tanto quanto à supracitada dificuldade[20]. Atualmente, a possibilidade de desenvolver harmoniosamente o conjunto da personalidade peculiar e distinta, satisfazer o ideal de uma cultura individualista, sucumbe ao subjetivismo, o princípio de expressão do eu baseado (ideologicamente) na arbitrariedade: nenhum costume ou modo de ser possui valor absoluto e, por isso,  o fundamento para  adoção de um ou outro se torna cada vez mais subjetivo.

"O subjetivismo individual da vida moderna, sua arbitrariedade desregrada, não é outra coisa que a expressão do fato de que esta cultura das coisas, das instituições, de pensamentos objetivos, indescritivelmente extensa, complicada e refinada arrebata ao indivíduo particular a relação interna unitária com o todo da cultura e remete esse todo de volta a si mesmo." [21]

 Malgrado tudo, Simmel viu pois a modernidade como uma totalidade cujas várias facetas só se mantém juntas - subjetivamente - no plano do interesse egoísta e da consciência transcendental. A crescente divisão da realidade histórica e natural em diversas esferas autônomas é correlata ao florescimento do sentimento de liberdade e à redução do eu à faculdade abstrata de desejar (vontade).  O pensador não descarta a hipótese de o eu entrar em colapso mas, em sua visão, o fenômeno dominante é antes o realçamento da consciência transcendental: é isso que está na raiz da experiência cultural do homem contemporâneo.

 Conforme os próprios escritos simmelianos deixam ver, o processo de descentramento do sujeito que vem tendo lugar em nossa cultura há cerca de um século produziu um abalo em seu movimento de  posição na práxis cotidiana, tanto  quanto  em  sua reflexão  teórica.  A categoria do sujeito perdeu  muito  de  sua autonomia  relativa,  em virtude da dispersão por  que  passa  na sociedade  contemporânea. A fragmentação das identidades  sociais promovida pelo racionalismo técnico-mercantil todavia não leva  à perda  do sentido  em  ser um eu, porque  esse processo  não  é mecânico, sendo antes mediado por essa forma de consciência.

  "A  Internet  contribuiu para nos fazer pensar a  identidade  em termos   de multiplicidade",  mas  isso  não  significa  que   as experiências  virtuais estão subvertendo a noção de eu  essencial porque,  como  diz a própria autora do enunciado,  na  rede,  "as pessoas são capazes de construir um eu ao flertar com muitos eus"[22].  O conceito de eu singular e interior é posto em questão mas isso não quer dizer que se dissolva. Conservado algum referência às circustâncias históricas e sociológicas que permitem entender o fato, não passa por alto o ponto quem  nota que as tecnologias de comunicação possuem um sentido individualista muito mais do que comunitário.

 Guilaume fala da ascensão do conduta comutativa, no sentido de que se torna cada vez mais fácil se desvincular dos laços sociais sem interesse para o indivíduo. O cibernauta corporifica o homem do ressentimento na medida em que pode viver apenas de acordo com suas inclinações, desligar-se sem riscos e, no limite, permanecer isolado durante o tempo que for conveniente[23]. A tendência do século vindouro, por isso, parece que é uma socialização cada vez mais tecida de inideferença, distãncia, insularidade e egoismo, pontuados por relacionamentos superficiais, breves e , ainda que eventualmente intenos,  "ao invés de se habiar uma comunidade, mas coabitar anônimo e anômico os labriritnos das redes" (idem, p. 28-29). 

 

 Na verdade, caberia pensar além e perguntar  se o crescente parcelamento da alma promovido pelas novas tecnologias virtualmente não conduz os indivíduos a uma maior conscientização desse eu; se a manipulação de papéis por elas estimulada,  ao invés da criar um novo conceito  de  pessoa, não aprofunda  o processo de abstração social do sujeito que está  na base do  niilismo contemporâneo; se, enfim,  o  ciberespaço, ao invés  de um espaço de construção do  sujeito relacional, não  é, enquanto  nova   frente de  lazer  industrial,  um  elemento de potencialização  da  sociedade  de comediantes  da  qual  falava com tanta ambigüidade Nietzsche n´A Gaia ciência (1882).

  A   possibilidade  das  redes  virtuais   ensejarem   projeções radicais,   em que a personalidade experimenta  uma  dissociação, passando,  dentro  e fora  dela, a  se confundir  com  diversos personagens,  que  temem  muitos estudiosos,  sem dúvida  é  uma possibilidade  que  não pode ser descartada.  O  conhecimento  de certos casos levou um analista a concluir que "o ciberespaço pode levar  a experiência individual  a tal grau de concentração  que pessoas  que  em  outras situações  seriam  racionais podem  ser levadas  ao  abismo  - sem perceber que cruzaram  a  linha,  ... [porque]  ... certas facetas dele tornam fácil o  perder contato com a realidade"[24].

 

 Aparentemente, a regra todavia não é essa.  O depoimento de um informante de uma pesquisa, ex-usuário de drogas, corrobora a hipótese de que, ao contrário de situações aparentadas, no espaço virtual, a consciência só é alterada sob controle:

"Eu fiz experiências com drogas químicas alteradoras de consciência que possuem forte intensidade mas a falta de controle sobre seus efeitos é perturbadora. As experiências interativas e com jogos permitem criar o mesmo efeito até certo ponto, [com a vantagem de] serem muito mais acessíveis e muito menos exigentes e ameaçadoras." [25]

 Relativamente ao ponto, conviria em primeiro lugar evitar a tentação de atribuir  fatos  como esses à tecnologia.   Lembremos que Fernando Pessoa não precisava de um computador para viver intensamente vários personagens, sem ser tomado como um doente dos nervos.  Para não nos estendermos, observemos adicionalmente que os fenômenos  de possessão, relacionada com  a vontade  de  crer assinalada pelo pragmatismo do início do século, existiram muito tempo antes de surgirem as máquinas de simulação interativas.

 Em segundo, precisamos notar que  o  problema  que vimos  discutindo  não  se  deixa entender nesse registro. A psicologia clínica tradicional costuma tratar  a  divisão  do sujeito em múltiplos  pessoas como  uma patologia  (multifrenia). Porém, não é esse, em tese, o caso  que estamos lidando, quando o assunto é nossa aventura recém-iniciada com  o  espaço virtual. As pessoas, por suposto,  se  dividem  em várias personagens, invertem relações de gênero, ficcionalizam  o real,  mas,  em geral, não perdem o controle da situação. Os simpatizantes dos chamados movimento tecno-pagãos, que incluem desde os freqüentadores de festas jovens até profissionais entendiados com a frieza da vida moderna, pretendem empregar os recursos computacionais para permitir a saída da prisão que, para eles, são seus egos, mas essa corrida em direção à tecnologia como magia arcaica nada tem de arcaico no sentido autêntico da expressão.

   A  pluralização do sujeito promovida pelas novas  tecnologias  é uma fenômeno de possessão racionalizada. Os relatos de pesquisa à disposição sugerem  que, no limite, pode  haver  regressão do ou mesmo dissociação  da personalidade. Porém,  a regra não é essa, como vamos sugerir em seguida. A comparação com as experiências seculares com drogas seria, à primeira vista, mais promissora em termos de esclarecimento da problemática.

  Henry Jenkins (MIT), por exemplo, afirmou que a realidade virtual será a passagem para se fazer as "viagens" do futuro:  será "um  espaço alucinógeno que poderemos percorrer sem ressaca, que o corpo sentirá de maneira muito intensa, mas sem os riscos físicos das drogas, será uma droga sem produto químico"[26].  A postulação do autor da frase indica por si só os limites da comparação pretendida, mas também revela sem querer o fundo comum ou um elemento de ligação entre o consumo de lazer, o progresso técnico e a inclinação à toxicomania da contemporaneidade. 

 De qualquer modo, permite reiterar que a volatização dos  papéis decorrente  da crescente desorganização das instituições não-econômicas promovida pelo capitalismo e o aparecimento de  novas  tecnologias não excluem  a  hipótese  da dissolução desse eu, a  perda da consciência de si como  sujeito com a qual sonhava Nietzsche.  Conforme observado  acima, a possibilidade deveria  ser  vista como uma patologia da era virtual, porque  o  território desse  processo tende  a  se limitar  ao  lazer. O sentido profundo do fenômeno em foco,  visto  mais  de perto, deveria ser entendido, por um lado, como divertimento relaxante e, por outro, como promovedor da condição de manipulador estratégico dos papéis que  o indivíduo  tem de fazer no sistema social vigente,  qualquer que seja  a  sua dimensão. 

 Hoje em dia,  predomina como  tendência social  a  manipulação subjetivista dos papéis culturais,  e a expressão jogo empregada para defini-la no plano das redes é,  em geral, um  eufemismo  para caracterizar uma  cultura  em que  a manipulação  e, portanto, os problemas (morais)  da   identidade tendem a  virar fatores constitutivos. Concluindo trabalho de pesquisa sobre as relações virtuais, os pesquisadores mais críticos da cibercultura têm podido observa que "o espaço virtual tende a reproduzir o espaço cartesiano, no qual vemos o mundo a partir de um ponto de vista único, fixo e determinado", de modo que  "ao invés de criar agenciamento e autonomia, ela tende antes a criar posições subjetivas que se estruturam com base em fantasias de controle, onipotência e dominação" [27].

 Acompanhando os estudos de Christopher Lasch e outros na linha da Escola de Frankfurt, preferimos pensar portanto que  a tendência estimulada pelas  novas tecnologias  de comunicação, ao invés do livre jogo da imaginação, é antes a exposição do eu como mercadoria. A  relativização do eu promovida por elas é  parte de um discurso utópico,  que precisa  ser visto com atitude crítica. A Internet oferece novas possibilidades de desenvolvimento individiaul mas antes de também implicar em riscos e perigos está submetida a um racionalidade mercantil e às fantasias de poder com que essa se associa.

 "Na Internet, você é o único limite", proclama um anúncio comercial, citado por Jean-Marc Mandosio[28]. As tecnologias de comunicação estimulam o processo de erosão  das identidades com que os modernos tentam  manter seu equilíbrio anterior ou  proteger sua subjetividade, ao permitirem a realização de uma variedade de performances numa infinidade de contextos. "As tecnologias virtuais encorajam a crença de que somos 'máquinas transcendentais' dentro das quais o sujeito imaginante pode deixar escapar sua âncora física privatizada e viver no âmbito de uma icnonografia de prazeres" (Hillis 172) A circulação sem destino aparente se confronta com uma certa rigidez mecãnica estimulada pela própria natureza ativa e flexível do ve´ciulo. O automatismo com que os usuários se movimentam pelas redes se confornta uma inércia intelectual determinada quase tradicionalmente. "A existência nos pressiona de maneira inapelável; não permite que se obtenha uma identidade polivante sempre crescente sem custos" (Hillis 189).

  A tendência à sublimação da realidade no espaço virtual criado pela rede colide com a prova de realidade que a vida nos impõe. As experiências virtuais com a identidade não devem ser vistas como criadoras de uma nova forma de sociedade. A progressiva mediação da ação social por parte delas não é mecânica, não é direta, nem muito menos importa em uma superação radical dos padrões existentes.   A expansão do ciberespaço  representa antes de mais nada um fenômeno inscrito nas tendências históricas e circunstâncias sistêmicas que governam a contemporaneidade.

 David Hakken relata não por acaso várias pesquisas, suas e de outros, que mostram ser nossas relações com as máquinas cópias das relações sociais mais cotidianas. A construção dos programas na indústria da informática,  não menos do que as conversas feitas nos chats, não surge livremetente, embora não se possa ignorar sua eventual inventividade, segundo certas tendências de conduta social e determinadas histociamente [29].   Nesse sentido, a referida expansão constitui processo que, segundo cremos, medeia e  se apoia sobretudo em nossa inclinação, socialmente criada, de vivermos nossas fantasias de modo puramente interno, mental ou subjetivo, ainda que cada vez mais mediado mercantilmente. 

  Pesquisadores diligentes como Sherry  Turkle observaram que,  através   das tecnologias computacionais, "as pessoas  se tornam  mestres  da auto-apresentação e  auto-criação"[30]. A proposição todavia peca pela abstração, na medida em que carece de determinação histórica. Desde o início, as comunicações modernas nos encorajaram a ver a criação do  eu como  a mais  alta forma de  arte  da  vida  social.  O filisteísmo embutido nessa idéia não pode ser separado porém  do fato  de que, na economia de mercado, as pessoas têm de  projetar uma imagem  atraente e tornar-se atores conscientizados de  que vivem  sob o constante escrutínio de seus amigos, tanto quanto  de vários tipos de  estranhos; dos colegas tanto quanto de seus superiores nas esferas pública e privada [31]

  Embora o relato seja de cunho eminentemente jornalístico e testemunhal, não faltam legítimo sentido crítico e boa percepção sociológica ao exame das práticas e modo de vida dos agrupamentos tecnolibertários da costa oeste norte-americana feito por Paulina Borsok. Tendo convivido por vários anos com esse grupo e partilhado do que chama de suas ilusões por muito tempo como profissional de informática, a escritora  e signatária do manifesto tecno-realista  se vale da tradição dos muckrackers para desmacarar o caráter prepotente, cínico, oportunista e anti-social de boa parte de sua subcultura. Pretensos herdeiros dos movimentos de contestação dos anos 60, os tecnolibertários revelam-se à luz do exame da autora a encarnação da  quinta-essência do sujeito narcisista teorizado por Lasch e retratado com cores sombrias em sua variante bursátil por O Psicopata Americano, de Brad Ellis.

 

"Desde o momento em que o dinheiro high tech começou a correr, surgiu uma atitude contraditória e pós-moderna em relação a ele [por parte do pessoal da informática]. Certamente o dinheiro é uma forma de se manter em alta. Embora haja muito correndo por aí, não se pode esquecer porém que há os que não o tem. ... Assim muitos não se decidem o que fazer com a grana que tem ganhado - exceto se comprazer em criar novos negócios, construir alguma coisa e depois sumir do mapa ... porque se você fracassa uma vez [como empregado], existe nesse meio o medo de que você jamais venha a ter sorte novamente com outra companhia"[32].

 Apenas podemos remeter o leitor a esse texto amplamente documentado, que gerou impacto e mal-estar nas pretensões de boa consciência de vários ciberpensadores e pessoal ligado à área de informática nos Estados Unidos. O caráter de relato de apostasia que o texto porta não deveria é certo nos levar a tomá-lo como juízo conceitual sobre o sentido social e histórico da tecnocultura, porque esse em vários planos o ultrapassa, mas também não deveria ser escanteado, porque indica ainda que de  forma não-reflexiva, como a posição do fenômeno se baseia na dinâmica e dos impulsos que não se originam na tecnociência mas antes na prática de um  capitalismo radicalizado.  

 "Cada cultura tem seu mito de criação: a indústria de computadores pessoais possui como uma de suas narrativas principais a história de que o povo surgiu da contracultura e ansiava por liberdade até que essa máquinas o livrou da opressão dos esquemas padronizados, das mãos pesadas dos departamentos de organização e métodos das corporações e da servidão à Companha de Computadores do Papai. [Entretanto] os computadores pessoas não são apenas uma forma de dar poder às pessoas. Jamais esqueçamos que hoje em dia os computadores portáteis se tornaram um meio de mante-las, aonde quer que elas estejam e mais do que nunca, presas à coleira de seus clientes e de suas companhias."[33] (p. 234-235)   

 Destarte conviria ver como fundamentada na realidade social o entendimento que o ciberespaço não é bem outro mundo como pretendem seus propagandistas mas um campo social que, a despeito das especificidades, sobretudo de suas projeções míticas e utópicas, carrega consigo problemas e mazelas semelhantes às que encontramos no cotidiano mais ordinário, contém forças de repressão tanto quanto de liberação humanas.

"No plano do indivíduo, parece existir uma força libertária que faz recuar o estado e a burocracia em favor de comunidades virtuais livremente criadas e mantidas. No social, o poderio tecnológico (technopower) parece constituir os indivíduos de modo que os sujeita ao poder das elites online que estão emergindo. No imaginário, porém, encontramos essas duas possibilidades de forma hiperbólica, o que parece sinal da dramática urgência com que se  solicita ao ciberespaço que, enfim, nos libere da maneira mais profunda possível ou nos reprima (totalmente)" [34].

  Todavia precisamos avançar mais do que sugere a perspectiva do autor, demasiado presa a um esquema formal, ainda que bastante esclarecido em alcance analítico e sistemático. A abordagem crítica do ponto exige sua avaliação histórica concreta e, para tanto, não há como se furtar à tentativa de interpretação. Partindo dessa ótica, verificar-se-ia que a tendência predominante na formação da cibercultura, pelo menos a médio prazo, é a subordinação do imaginação criadora  aos imperativos sistêmicos da indústria cultural capitalista.

 Conforme conclui Stallabras em seu exame das telecidades, "as manifestações atuais da cultura computacional não são pós-modernas mas ao mesmo tempo  uma intensificação e uma transformação do modernismo, que não servem às necessidades das pessoas, mas antes áquelas dos poderes superiores, em particular o poderio universal do mercado. Isso tem pouco a ver com a técnica como tal e com a qual se poderia projetar alguns prospectos de uma mudança radical [na vida social], sendo antes determinada pela atual hierarquia vigente na sociedade" [35].

 A capacidade imaginativa do sujeito é ao mesmo tempo estimulada e neutralizada pelas novas tecnologias, na medida em que se ela por um lado permite explorar , senão criar novos mundos, por outro é cada vez mais sujeita a engenhos que limitam esse potencial e conduzem mecanicamento e de maneira esterilizante o indivíduo. As máquinas longe estão de pensarem. Os controladores da coisa é que o fazem e o fazem de modo a que não pensemos, uma vez que sabem, através de todo o tipo de calculo e informação, como nos conduzimos normalmente.

"A dissolução acelerada da razão nas águas tépidas da falação inconsequente

(bavardage) é acompanhada da convicção, cada vez mais difundida, de que a razão não é nada mais do que a simples capacidade de cálculo" (Mandosio, 178)

  Aparentemente, o maquinário interativo permite às pessoas serem o que quiserem, trocar de sexo, inverter o caráter, viver a própria morte,  etc. Também não é incomum as pessoas se dividirem em várias personagens, conforme o contexto, quando não o fazem em um mesmo domínio de interação.  As pesquisas revelam porém que isso não se faz à revelia do si mesmo: na maioria das vezes, não envolve nenhuma perdição, como muitos desejam[36].  A experiência carnavalesca que se pretende liberada via redes não tem sido constatada de maneira ampla e disseminada por muitos que se propõe a testar enpiricamente a hipótese.  O número de pessoas que se entrega aos jogos com mascaradas é muito pequeno em comparação com os que, embora as vezes tentando, desistem fácil ou muito rápido desse tipo de experimentação com a identidade.

 "Depois de um ano pesquisando em salas de usuários do jogos com personagens  (MUDs), Lori Kendall expressou considerável pessimismo sobre a possibilidade desse tipo de mudança; não importando o sexo que as pessoas haviam escolhido para seus personagens, a maioria era em geral pressionada a revelar sua identidade sexual na vida real. De resto, sempre que tentavam encenar o gênero oposto,os jogadores em geral recaíam em estereótipos, o que talvez possar vir a reforçar mais do que desetabilizar o pensamento convencional acerca dos gêneros", escreve em síntese, sobre a manipulação de identidade de gênero no ciberespaço, Brenda Danet [37]. 

  No Brasil relato de etnografia on-line feito em moldes semelhantes fornece elementos para tirar a mesma conclusão, ainda que essa colida com a da autora do estudo, presa, segundo nosso ver, às prescrições de seu referencial teórico e interpretativo. Passando em revista os tópicos de questionário respondido por usuários de uma sala de conversão focada nos temas de interesse do público homossexual, a autora constatou que  a maior parte dos informantes afirmou dizer a verdade na Internet. "Quase todos, assumem sua opção sexual tanto na internet quanto fora dela", escreve, citando como exemplo expressivo do caso a seguinte declaração de um informante: "atualmente,considero miha orientação sexual um dado importante e indissociável da minha subjetividade. Quem quiser se relacionar comigo deve me aceitar como eu sou" [38].  

  Deixando de entrar no mérito intrínseco ou conteúdo valorativo dessas experiências, revelam todas elas, nos parece, um fato social bem evidente, que é uma certa inclinação ao conformismo espiritual e ideológico da maior parte dos usuários de serviços de Internet. Ninguém pretende negar que os mecanismos por ela desenvolvidos vêm facilitando em vários sentidos os contatos sociais, multiplicando-os, mas sem, em geral, mexer na consciência dos sujeitos envolvidos. Weber afirmava que o homem não deseja 'por natureza' fazer algo distinto do que está acostumado, limitando-se a procurar ganhar o bastante para ver esse desejo atendido. A Internet não parece ser uma força capaz de provocar os abalos com que se pode passar a pensar em uma reviravolta na vida de um grupo social, salvo é claro se se tornar mediação de um processo de mudança induzido a partir da ação concreta no âmbito de alguma instituição histórica.

  Nesse sentido, as tecnologias de comunicação interativa e virtual poderiam ser melhor vistas, cremos, como um sintoma e, ao mesmo tempo,  uma resposta à crescente atomização da sociedade contemporânea. Quem sabe as pessoas não recorrem ao ciberespaço, formado por  redes anônimas, fluidas e sem centro, para, de forma até certo ponto irônica, combater o solipsismo e mal-estar gerados pela fragmentação das condições de vida e flexibilização das identidades que caracterizam a condição pós-moderna, surgida paradoxalmente com a ajuda dessas tecnologias.

  A capacidade de controle da situação e os mecanismos de defesa por elas propiciados, malgrado tudo, ensejam contextos em que,  virtualmente, verifica-se uma reapropriação do sentimento de constituir um eu mas, por isso mesmo, a figura do sujeito não é superada: em última instância "o outro não é realmente outro, mas apenas um momento de meu próprio vir a ser (self-becoming)"[39], senão objeto das fantasias de poder do sujeito espectral, pois a comunicação descentrada, descarnada e livre com que se idealiza o ciberespaço é, “realmente, posta em cheque por um sistema imaginário que nele reinscreve a oposição binária entre o eu e o outro”[40].

 A tendência dominante nas salas de conversa, conclui outro relato etnográfico,  é "reivindicação do mesmo" .

    

"Continuando centrados em si mesmos, os internautas, pelo menos em sua maioria, não conseguem abrir-se ao outro; deixar-se contaminar pelo inusitado dos encontros com as diferenças. Continuam sós, com a sensação narcísica de estarem convivendo socialmente. Eles vão em busca de si  mesmos. Vivem do diálogo consigo mesmos"[41]

 Destarte pode-se ver com simpatia o entendimento de que em geral "o emprego ritual do equipamento serve para reforçar a identificação das pessoas com os fluxos de capital e  poder que misteriosamente regem suas vidas fazendo paródias de desastres naturais [e que se fazem presentes nos jogos de computador]: explosões de conhecimento, ondas de crimes, quebra de bolsas de valores, a Tempestade no Deserto" [42].

 Palmer  notou  que  "as  pessoas  que  passam  seu  tempo interatuando nas redes  de computadores conhecem  o  poder  que consiste em  manipular  a percepção dos  outros e em  criar  novas identidades  que podem fortificar sua auto-imagem ou, quem  sabe, projetar  melhor  suas mensagens individuais"[43] (1995, p. 293);  e relatos de etnografia on line comprovam  que às salas de chats e jogos virtuais, para não citar os  casos de pirataria eletrônica, não são estranhas pessoas cujo objetivo não é  flexibilizar  o eu mas manipular personagens  e explorar as situações em sentido egoísta[44] (Ito, 1996,p. 98-99).

 A tecnologia  em  si  mesma  não  muda  o  espírito e o sentido dominantes na ação social. As máquinas e programas interativos que conhecemos reproduzem os esquemas sociais de conduta. Apenas para citar um exemplo, notemos a maneira como os videojogos informatizados nos preparam para exercer as funções e habilidades que temos de lançar mão, se quisermos sobreviver na presente sociedade. Os protagonistas desses jogos operam, em geral, como imagens de nossos alter-egos, figuras sujeitas à todo o tipo de reificação e, no limite, destruição. Os cenários ensejam a realização eletrônica de nossas fantasias de poder, muito mais do que um aprendizado sobre as complexidades da existência e as maneiras como se pode levar uma vida boa e criativa.  O sentido prevalecente é o de nos treinar no tipo de subjetividade requerido pelo capitalismo.

"Nesses jogos, o usuário não apenas se identifica com a imagem mas a controla de acordo com regras de conduta rígidas - ou pior, pois a sanção para sua burla costuma ser uma sentença de morte virtual, de modo que o conformismo se estende do assento em que estamos à ação [encenada através da máquina]" [45].

 

 A citação sugere de maneira bastante clara que as tecnologias de informação ora em curso de desenvolvimento parecem pouco inclinadas, de fato, a transformar em outra a  figura do sujeito da consciência que está na base do chamado projeto moderno.

 Sherry Turkle cita vários casos que, segundo nos parece,  servem de  apoio à tese de que é esse caso, ao invés de como ela deseja, em um dos  mais  amplos relatos de pesquisa feitos até agora sobre matéria:

-  Stewart, estudante de física, declara, por exemplo, que "ele não  joga com papéis": o ciberespaço é, antes, uma forma de  descobrir seu  eu ideal, "permitir que tenha uma melhor versão  de  si mesmo" [46](Turkle, 1996, p. 163).  

-  Outra pessoa, uma desenhista, diz que se sente muito mais perto  de si quando está conectada a rede do seguinte modo: "sou muito mais  extrovertida, menos inibida. Diria que me sinto mais como eu mesma. Sinto-me mais como eu desejo ser"[47] (Turkle, 1997,  p. 227).

- A experiência tremendamente liberadora relatada por outro informante, portador de problemas de inibição, dá conta  por sua  vez  de  que  "[seu]  personagem  eletrônico   difere bastante  de  sua pessoa desconectada"  porque,  em  muitos sentidos, ele "sente-se mais eu em [sua] personagem  eletrônica" (idem, p. 392)

-  Nos MUDS (Multiple users dungeons),  que tiveram seu auge antes do advento da Internet, assegura uma escriturária, podemos ser  várias coisas, mas com uma ressalva: "Consigo expressar cada  parte de mim de forma mais completa do que no mundo  real.  Desta forma,  ainda que interprete mais de um eu,  sinto-me  mais como eu mesma quando pratico mudging" (idem, p. 235)

 

  Turkle afirma que esse sentimento de ser o si mesmo contradiz  a experiência de identidade feita no virtual, porque essas implicam "diferenciação,  multiplicidade, heterogeneidade e  fragmentação" (idem, p. 235). A contradição, se existe, reduz-se porém à  lógica, sendo  aparente  do ponto  de  vista  histórico-sociológico.   A conquista da autoconsciência tendeu a ser, até agora, correlata à perda  do sentido de comunidade, pois a modernidade procedeu a um  parcelamento da  alma  do indivíduo. Desde que se delineia seu processo de afirmação, acontece de as organizações não terem o que  fazer  com várias  partes do eu e, quando é esse o caso, acabam satisfazendo apenas  parte das necessidades do indivíduo.

  As  tecnologias  de  comunicação funcionam de  acordo  com  esse espírito e, portanto, podem se entendidas como uma  mediação  do solipsismo vigente na cultura contemporâneo. A pesquisa  confirma que,  embora possa haver tendências opostas, reforça-se  nelas  o sentimento  moderno de se estar "consciente de mim mesmo como  eu mesmo" e no qual se funda a subjetividade do homem moderno[48] (Hawthorn 1982, p. 42).

  Conforme dizia Kant, somente o eu que pensa e comanda é sujeito:  "O  eu como um  objeto,  o  eu  que  está  sendo percebido,  é simplesmente  uma coisa como todas as outras que existem fora  de mim" (apud Hawthorn, p. 42). O filósofo refere-se, como se vê, ao eu psicológico,  mas sua assertiva também valeria para os personagens  em que  se incorpora externamente,  como  acontece com  os exercícios  de identificação praticados  na esfera  pública  virtual  ora em emergência.

  Afinal  de contas, as comunidades virtuais são todo o oposto  de uma comunidade,  se  entendermos pela expressão  os  regimes de associação nos quais o indivíduo não só se conserva como um todo mas  tem  esse  todo  sujeito  à vontade  de  instâncias supra-individuais.  Contrariamente ao suposto, as redes são formas de interação  de  massas.   As conexões dominantes as  segmentam de acordo  com  interesses  especializados, pressupondo,  na base, átomos  sociais egoístas e egocêntricos.  

 Funcionando de modo a conter  as  tendências à ruptura  da sociabilidade[49]  (Maffesoli, 1987, p.61 e  194-195), a cibercultura  liga sujeitos atomizados, porque, forçados a se dispersar socialmente e cada  vez mais segmentado, o  homem tende a reduzir a  um ponto abstrato, descobrindo-se   um ente em si   mesmo   distinto: simultaneamente, como a única fonte de valor e como um vazio, para  o qual   a   vida,  cada  vez  mais,  existe  como  aquele conjunto de possibilidades tão bem retratado literariamente por Musil.

 O significado histórico-cultural dessa relativização do processo de descentramento do sujeito é, sem dúvida, matéria de  disputa. Recentemente, verificou-se  entre  os pensadores  sociais   da modernidade uma reação às teses sobre a perda de sentido do eu na era virtual, conforme  defendida pelos filósofos da técnica. O resultado das tecnologias sobre o eu não é, segundo os primeiros, a sua dispersão  mas, sim,  uma mudança de natureza. A profusão de relações  e  imagens com que o homem se vê confrontado não o dissolve como entidade  coerente. Acontece antes de ele ser aberto por elas em grau que as faz  ter um  papel cada vez maior em seus processos de formação como indivíduo[50] (Thompson, 1995, p. 232-233).

 Thompson se baseia sobretudo em Giddens  para,  acertadamente, segundo nosso modo de ver,  caracterizar o eu  como  construção narrativa. A subjetividade humana não é dada: é produto  de  um projeto  reflexivo, conduzido pelo próprio indivíduo, através  do emprego  dos  recursos culturais postos a  sua disposição  pela sociedade.  A subjetividade é construída, conduzida e  modificada por meio das relações sociais em que os  seres humanos se inserem, tanto quanto pela atividade reflexiva que daí surge. Resulta, em síntese, do emprego mais  ou  menos consciente e calculado dos saberes que,  por via dessas relações, nos chegam ao conhecimento.

 Destarte,  o pensador sugere que a proliferação de  estilos  de vida e a capacidade de criar novos personagens para si mesmo  que se  observa hoje em dia constituem uma forma de os indivíduos  se reapropriarem, senão criarem, seu modo de ser e em relação a qual não é desprezível a ação da mídia. As tecnologias de comunicação colaboram  para  tornar  o  processo de  construção  do  eu  mais reflexivo  e pessoal, ao estimular "os indivíduos a  voltarem-se para  os  seus próprios os recursos a  fim  de  construírem uma identidade coerente para si mesmos" (idem, p. 207).  

 O problemático  com toda essa empresa é o rebaixamento para um plano menor  do fato  de  que esses estilos, certamente criados por nós mesmos, não  só  são prisioneiros  da forma mercadoria como se caracterizam por uma fragmentação,  estreiteza e volatilidade que, ao invés de  ajudar os indivíduos a desenvolverem livremente sua identidade, podem ser também  um   fator   de agravamento  das   tendências   à sua desintegração.

  Slevin (2000) apoia-se em Giddens  (1991) para analisar a estrutura e sentido da reflexividade ensejada pela Inernet,  sublinhado a possibilidade desse perigo [51]. Segundo ele,  o projeto  reflexivo do eu é tornado possível por uma situação que igualmente  o  expõe a uma crônica crise de identidade (157-180),  como  há muito  tempo, aliás, haviam visto Scheler, Simmel e Nietzsche. Cosntruindo páginas na Internet ou interagindo emchats, por exemplo, "as pessoas podem ser engajadas de forma positiva, usando esses expedientes para desenvolver estratégias e habilidades para, ativamente,  manter afastadas a falta de sentido e a repressão existentes em sua vida cotidiana" (Slevin, 171-172). 

A possibilidade  de  que a situação que tornou o referido  projeto viável   seja   também  um  obstáculo insuperável   para sua universalização, reduzindo-a a certa contingências,  constitui, porém, uma questão que, embora ainda em  aberto, não pode ser escamoteada. Procedendo de maneira pouco determinada em propor um julgamento, o pesquisador se põe a salvo de erros, mas ao preço de expor uma análise puramente formal que, sob pretexto de manter ambiguidade e abertura do processo subjacente ao fenõmeno, se torna anódina do ponto de vista crítico e hermeneutico.

 Segundo nosso entendimento,  contrariamente,  "qualquer tentativa futura ou em andamento de responder socialmentes [aos nossos problemas] precisa partir da consideração do contexto de relações desiguais de poder que influencia nossas intenções e, portanto, que  filosofias, ideologias e discursos são transformados em tecnologia e por essa via naturalizados socialmente" Hillis 191).

 Deixando  de  lado o exame das fantasias de poder que  se  fazem presentes  nesse cenário e as tecnologias informacionais potencializam em vários sentidos, precisamos  conservar  a consciência crítica  de  que a pluralização dos papéis sociais, relações  de gênero e personagens ficcionais passíveis de emprego através delas é pois, historicamente,  uma condição favorável do projeto  reflexivo ao mesmo tempo que um fator de estímulo da crise da identidade em que  nos projetou a modernidade.

  O descentramento do sujeito  por elas incentivado é algo que, estruturalmente, pode se visto   como  uma condição para a livre formação do eu mas, também,  como um  fator de acentuamento da tragédia que essa crise representa para a idéia de indivíduo. Caberá à práxis humana consciente, sempre onde ela for possível, decidir a direção dominante que tomará todo esse movimento de caráter  tecnológico mas cuja natureza, em última instância, é social e histórica.

  Finalizando, caberia observar de todo modo que as possibilidades contidas nas tecnologias informacionais tornaram-se algo que sequer pode ser visto.  Trabalhamos  em  área onde o princípio absoluto  é o da incerteza.  A sociabilidade espectral a que nos referimos nestas páginas  bem  pode pertencer a um período romântico, cujos dias estão   contados.  Podemos imaginar, por exemplo, que,  em  pouco anos, da mesma forma que a película sonora pôs fim à era do cinema  mudo, a televisão venha a tomar o lugar da  escrita  como paradigma de relacionamentos no ciberespaço.

  As possibilidades de criação  no campo da realidade virtual parecem ilimitadas e,  por isso,  eventualmente  os personagens que o povoarão  terão  três dimensões,  radicalizando a combinação do real com  o imaginário que   define  o simulacro  como  nova  fonte   de experiência [52](cf. Shapiro & McDonald, 1995, p. 323-345).

 

 A  revolução  em  curso hoje em dia levanta questões  que  só  o futuro permitirá discutir  com  segurança.  A   flutuação   da identidade terá prosseguimento ou será superada por alguma  forma superior  de consciência? Qual será o valor dominante  nos  jogos com câmaras e máquinas de simulação que estão por ser inventadas?  O  consenso  a que podemos chegar hoje é limitado e  poderia  ser resumido dizendo-se que o indivíduo segue em crise de  identidade e  o terreno da realidade virtual é um dos seus  laboratórios  de experimentação.

 

 No  futuro, as tecnologias da mente podem vir a ser  um  suporte dos  novos romances  de formação mas, também,  pode  ser  que  a flutuação  da identidade por elas radicalizada se esgote no  mero jogo,  tornando-se estéril, senão improdutiva, do ponto de  vista do  indivíduo[53]. Também temos razões para pensar que, liquidando-se o sujeito, "ao invés de cancelá-lo para superá-lo em uma figura mais elevada, isso operaria não em regressão da consciência mas antes em recaída na barbárie"[54].

  Poderia é certo  haver ainda  a aclimação  da nossa  crise  de identidade na consciência do indivíduo, a realização da  profecia nietzscheana  do  artista, do livre jogo dionisíaco; mas  também pode  ser que, por isso mesmo, o indivíduo, sempre que  se fizer presente, insista em descobrir quais podem ser seus caminhos como singularidade.

 

BIBLIOGRAFIA

COLETIVO  NOVAS TECNOLOGIAS DA COMUNICÃO. Pensar – pulsar: comunicação, tecnologias, velocidade.  São Paulo: NTC, 1996.

DESIATO, Massimo. Nietzsche, critico de la postmodernidad. Caracas: Monte Avila, 1998.

FOSTER, Derek. “Community and Identity in the electronic village”. In – PORTER,  David  (Org.) Internet culture.  Nova  York:  Routledge, 1996, Cap. 2, p. 23-38.

GERGEN,  Kenneth.   The saturated self. Nova York:  Basic  books, 1991.

______  “Technology and the self”. In – GRODIN,  D. & LINDLOF, T. (Editores): Constructing the self in  a mediated world. Thousand Oaks: Sage, 1996, p. 127-146.

GIDDENS,  Anthony.  Modernity and self-identity.  Stanford  (CA): Stanford Univ. Press, 1991.

GUILLAUME, Marc. Le contagion des passions. Paris: Plon, 1989.

HALL,  Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade.  Rio  de Janeiro: DP&A, 1998.

HAWTHORN, Geoffrey. Iluminismo e desespero. Rio de Janeiro: Paz e Terra,  1982.

ITO, Mizuko. “Virtually embodied: the reality of fantasy in a multi-user dungeon”. In – PORTER,  David  (Org.) Internet culture.  Nova  York:  Routledge, 1996, Cap. 6, p. 87-110.

LASCH,  Christopher.  A cultura do narcisismo.  Rio  de  Janeiro: Imago, 1983.

LIPTON, Mark. “Forgetting the body: cybersex and identity”. In – STRATE, L; JACOBSON, R; GIBSON, S. (Orgs.): Communication  and cyberspace. Cresskill (NJ): Hampton, 1996, Cap. 22, p. 335-350.

LUKÁCS, Georg. La Théorie du roman. Paris: Gallimard, 1989.

LYONS, John. The invention of the self. Carbondale (IL): Southern Illinois Univ. Press, 1978.

MAFFESOLI,  Michel. O tempo das tribos. Rio de Janeiro:  Forense-Universitária, 1987.

MALDONADO, Tomás. Critica de la razón informatica. Barcelona: Paidós, 1998.

MARCONDES FILHO, Ciro. Superciber: A civilização místico-tecnológica do século 21. São Paulo: Ática,  1997.

MORRIS, Brian. Anthropology of the self. Londres: Pluto, 1994.

PALMER, Mark. “Interpersonal communication and virtual reality”. In – BIOCCA,  F.  & LEVY, M. (Editores): Communication in the  age  of  virtual reality. Hillsdale (NJ): Lawrence Erlbaum, 1995, p. 277-308.

POSTER, Mark. The second media age. Oxford: Polity, 1995.

RÜDIGER, Francisco. “Simmel e a tragédia da cultura na era tecnológica”. Intexto Vol. 4 (1-18) 1999 (www.ilea.ufrgs.br).

SFEZ, Lucien. Critique de la communication. Paris: Seuil, 1992.

SHAPIRO, M. & McDONALD, R. “I’am not a real doctor, but I play one in virtual reality”. In – BIOCCA,  F.  & LEVY, M. (Editores): Communication in the  age  of  virtual reality. Hillsdale (NJ): Lawrence Erlbaum, 1995, p. 323-345.

STALLABRASS,

STANLEY,  Manfred. The technological conscience. Nova York:  Free Press, 1978.

TAYLOR,  Charles.  Sources of the self. Cambridge  (MA):  Harvard University Press, 1989.

THOMPSON, John. The media and modernity. Oxford: Polity, 1995.

TURKLE, Sherry. “Parallel lifes”. In – GRODIN,  D. & LINDLOF, T. (Editores): Constructing the self in  a mediated world. Thousand Oaks: Sage, 1996, p. 156-178.

_____  La vida en la pantalla. Barcelona: Paidós, 1997.

WATIER, Paul. Simmel and the image of individuality. In Maffesoli, Michel (org.) The social imagery. Current sociology 41 (2): 69-75, 1993.

WHITTLE, David. Cyberspace. Nova York: Freeman & Co., 1997.


Notas

[1] Taylor, Charles: Sources of the Self. Harvard: Harvard Univ. Press,  1989, p. 143-176.

[2] Sfez, Lucien: Critique de la communication. Paris: Seuil, 1993,  p. 192.

[3] Poster, Mark: The second media age. Londres: Polity,  1995, p. 32-33.

[4] Ehrenberg, Alain. L'individu incertain. Paris: Hachette, 1999, p. 284.

[5] Lipton, 1996, p. 343)

[6] Trivinho, Eugênio. Redes: obliterações no fim de século. São Paulo; Fapesp / Annablume, 1991998, p.  126.

[7] (Guillaume, Marc: 1989 , p. 82)

[8] (Gergen, Kenneth: 1996, p. 135).

[9] Le Breton, David: l"Adieu au corps. Paris: Métailié,  1999, p. 1999.

[10] Cf. Hakken, David: Cyborgs @  Cyberspace ? Nova York: Routledge, 1999.

[11] (Gergen, Kenneth: The saturated self. Nova York: Basic Books, 1991, p. 146-147.

[12] (Maffesoli, 1987,  p. 41).

[13] (Lifton The prtean self. Nova York, Basic Books, 1993, p. 9).

[14] Simmel, Philosophy of money, p. 296.

[15] Simmel, op. cit., p. 303.

[16] Marx, K. Manuscritos económico-filosóficos. México: FCE, 1962, p. 185. Cf. Adorno, Theodor, Consignas. Buenos Aires: Amorrortu, 1973, p. 143-158.

[17] Simmel, Georg, Sociología. Madri: Alianza, 1987, p. 792-793.

[21] Simmel, El individuo y la libertad, p. 129-130. Birgitta Nedelman examina a conexão deste problema com o da tragédia da cultura no artigo citado na nota 65.

[22] (Turkle, 1997, p. 235)

[23] Guillaume 1999: 11-56.

[24] (Whittle, 1997, p. 193; Cf. Shapiro e  McDonald, 1995).

[25] Apud Bromberg, H. “Are MUDs communities ?”, em Shields, Cultures of Internet, p. 146. Confira o comentário correlato de Ken Hillis (”A geography of the eye”, op. cit., p. 92-93).

[26] Citado por Alain Ehrenberg, op. cit., p. 288, que se detém sobre essa faceta da nova tecnoltura. Maria Pini propõe elementos comparáveis para pensar esse tempo, embora não concordemos com sua análise, em Peak practices: the production and regulation of ecstatic bodies" (In Virutal bodies 168-177). 

[27] (Lisa Blackman Culture, tehnology na d subjectivity, p. 133).

[28] Mandosio, J.M. Après l'effondremenet. Paris: L'Encyclopedie des Nuissances, 2000, p. 141.

[29] Cf. Hakken, David: Cyborgs @ Cyberspace ?, op. cit.,  passim.

[30] (Turkle, 1996, p. 158

[31] (Lasch, 1983, p. 122-128).

[32] Borsok, Paulina. Cyberselfish. Nova York: Public Affairs,  2000,  p. 206.

[33] Borsok, op. cit., p. 234-235. Cf. Stone, Rosanne. The war of deseire and technology at the close of the mechancial age. Canbridge (MA): MIT Press,1995, p. 121-164.

[34] (Jordan, Tim. Cyberpower, the culture and politics of cyberspace. Londres: Routledge, 1999, p. 206. Dominique Wolton pensa o problema de forma semelhante, todavia colocando-o no registro de uma teoria social e política da comunicação, em Internet, et après ? Paris: Flammarion, 2000).

[35] Stallabras, 118) .

[36] Machado da Silva, Juremir, “Por uma teoria da perdição”. In – Textos de comunicação e cultura 37/38 (5-16)  1997.

[37] Danet, brenda. Text as mask: gender, play and performance on the Internet. In Steven Jones (org.): Cybersociety 2.0 Thousand Oaks (CA): Sage, 1998, p. 149.

[38] Nussbaumer, Gisele. Fora do Armário: a cibersocialidade em uma lista de discussçao GLS. In André Lemos e Marcos Palácios (orgs.): Janelas do Ciberespaço. Porto Alegere: Sulina, 2001, p. 93.

[39] Foster, Derek, “Community and identity in the electronic village”, em  Porter, Internet culture, p.26-27.

[40] Bailey, Cameron, “Virtual skin”, em Moser, M. & MacLeod, D. (editores): Immersed in technology. Cambridge(MA): Harvard University Press, 1996, p. 35. Em O culto da informação (São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 107-117), Theodore Roszak sugere que um dos fatores de atração popular dos computadores é o sentimento de poder individual que dá ao usuário socialmente impotente. “O computador é ... sedutor porque faz com que você se sinta poderoso: ele é bom para o ego”, diz um dos porta-vozes da nova classe (Jaron Lanier, apud Moser & MacLeod, op. cit., p. 127).

[41] Júlio A. Pinto: "Redes digitais: uma nova sociabilidade ? In - Rubim, ª Benz, I & Pinto, Milton [orgs]: Práticas discursivas na cultura contemporãnea. São Leopoldo: Unisinos, 1999, p. 126-127). André Lemos expoôe outro ponto de vista em "Ciber-socialidade, p. 7-22).

[42] (Brook & Boal, 1995:  x).

[45] Stallabrass, Julian. Gargantua, manufactured mass culture. Londres: Verso, 1996, p. 89. Cf. Schroder, Ralph.

[50] Thompson, p. 232-233

[53] Ehrenberg observa que o horizonte imaginário dos jogos de vídeo, como o da televisão, é, para seus promotores,  a realidade virtual. A biônica conectará o cérebro aos computadores através de implantes capazes de transmitir ondas em baixa freqüência. Primeiro, porém,  "os fabricantes de jogos  'farão tudo para quebrar o isolamento dos jogadores', ligando-os através de conexões telefônicas, a fim de que possam interagir sem presença física. No futuro um pouco mais distante, os monitores e manetes desaparecerão: os fabricantes de computadores desejam substituir os últimos por comandos vocais e os primeiros por simuladores sensoriais, que permitirão ao jogador 'sentir' todo um  mundo à sua volta. 'A tela será substituida por um par de lunetas fixas, de modo que não será possível ver qualquer outra coisa que o que desfila diante dos olhos: esse sistema permitirá ter uma ilusão de relevo satisfatória'" (L'individu incertain. Paris: Hachette, 1999, p. 279).

[54] Adorno, 145. 

voltar   |     topo