PARADIGMAS DA CIÊNCIA SOCIAL EM COMUNICAÇÃO

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Francisco Rüdiger

Professor-titular da Faculdade de Comunicação    

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul 

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 O presente capítulo tem como objetivo exemplificar os princípios de pesquisa e estratégias metódicas que, no terreno dos estudos de comunicação, podem ser  encaixados no que denominamos de ciência social crítica histórica e dialética.  Os tratados de metodologia costumam primar pela exposição abstrata de princípios e estratégias de pesquisa, quando não é o caso de serem escritos por pessoas que, se chegaram a fazê-lo, pesquisaram mediocremente. Os principais e melhores textos sobre a matéria em geral não têm o caráter de manuais e foram redigidos por pesquisadores que procuravam, antes de mais nada, esclarecer a estrutura e o sentido de suas próprias investigações.

 Destarte, verifica-se que não é raro encontrar programas de pesquisa mirabolantes, fundados em esquemas ambiciosos, que jamais se concretizam, pelo simples fato de, sendo fruto de fantasia e não tendo apoio nem nos trabalhos de seu redator, revelarem-se inexeqüíveis, quando se tenta passar da proposta para a realização (cf. Thompson, 1995: 391-418). 

 O trabalho de investigação sem dúvida precisa obedecer a alguns princípios gerais, passíveis de um esclarecimento epistemológico: ninguém perderá tempo lendo sobre formulação de problemas, elaboração de hipóteses e problemas de explanação. O aprendizado de técnicas relacionadas à coleta de dados, manuseio de informações, planejamento do trabalho de campo, formatação dos resultados obtidos etc. por certo a ninguém será prejudicial. A formação do investigador todavia não se consolida por essa via. A principal escola para tanto está, desejamos crer, na prática da pesquisa, uma atividade social que se aprende fazendo, descobrindo seus padrões de excelência  e  entrando em contato com a comunidade intelectual de sua área de interesse.

 Wright Mills é de opinião, acertada a nosso ver, de que "os pensadores mais admiráveis da comunidade intelectual a que nos associamos não separam seu trabalho de suas vidas", porque a realização de um trabalho de valor pressupõe, muito mais do que o domínio dos conteúdos de um manual de metodologia,  o comprometimento com um tipo de vida, a formação de um caráter  e a prática de uma atividade que, nas ciências humanas, é em geral artesanal, de modo que "saiba ou não, o trabalhador intelectual forma seu próprio eu [como pesquisador]  à medida que trabalha para se aperfeiçoar em seu ofício" (1961: 206).

     

 Seguindo esse entendimento, pretende-se fugir aqui das formulações abstratas e receituários de regras que caracterizam os tratados e manuais de metodologia da pesquisa. No capítulo seguinte, proporemos um esquema muito geral para ordenar os passos básicos de uma pesquisa social crítica em comunicação, possuidora de propriedades históricas e dialéticas. O trabalho  todavia não deve ser visto de modo isolado em relação à matéria contida no presente segmento, onde se procede a seu tratamento casuístico. Queremos crer que o esclarecimento da estrutura metodológica e o aprendizado das estratégias de investigação desse tipo de pesquisa podem ser melhor conduzidos analisando exemplos em que se pensa poder encontrar sua plena concretização  epistêmica.

 Partindo dessa premissa, passa-se em revista primeiro alguns exemplos de pesquisa próximos na utilização, mas não identificados com o paradigma que nos interessa. Assim julga-se possível começar a delimitação dos contornos da pesquisa social crítica histórica e dialética, lançando, ainda que negativamente,  os termos para  distingui-la de outras tendências próximas. Os comentários sobre os exemplos são, ao mesmo tempo, um esforço para destacar os problemas que os casos citados revelam à luz daquela perspectiva.

 

 Em seguida, procede-se, como excurso, a uma análise de dois trabalhos clássicos, redigidos por notáveis pensadores de nossa época, com o fito de assinalar alguns pontos de partida e ambições maiores da abordagem sob exame neste trabalho. A escolha será de estudos cujas fontes principais de pesquisa, senão as únicas, são documentos impressos, dado o componente histórico que se procura destacar. No entanto, nada impede que esses materiais sejam complementados por outros, de natureza distinta, como ocorre, por exemplo, no trabalho também clássico de Riesman ([1950]1971).

 Partindo desses modelos, comentam-se, enfim, vários estudos típicos, mas excepcionalmente bem-acabados, por meio dos quais essa visão de ciência se deixa concretizar, reunindo amostra que procura dar conta dos vários campos temáticos de interesse para os pesquisadores e estudiosos dos fenômenos de comunicação ao longo de um período que se estende por trinta anos, de 1969 a 1999.

 

Economia política x estudos culturais críticos: confrontações

A trajetória da pesquisa, conforme revisada anteriormente,  comprova que a ciência social crítica em comunicação pode se desenvolver em chave materialista ou hermenêutica, e não apenas histórico-dialética. A primeira situação ocorre no contexto da economia política das comunicações, caracterizando-se pelo estudo desses fenômenos como elementos definidores do modo de produção e, por essa via, do sistema econômico vigente em uma sociedade. O segundo ocorre no contexto, consolidado mais ou menos na mesma época, dos estudos culturais, caracterizando-se pelo seu estudo como agenciadores de processos culturais ligados à classe, ao sexo e à raça (à "problemática da identidade"). 

 A economia política ocupa-se sobretudo do estudo da comunicação como negócio, do papel do estado, das conexões entre ambos os setores; das ligações entre os conjuntos assim constituídos e do seu desenvolvimento econômico em escala internacional. As conexões entre sistemas de produção e estrutura de classes, observadas como elementos de manutenção e/ou mudanças das relações de poder social, estão, de um modo ou de outro,  sempre presentes.

 Cumpre notar, porém, que "existem notáveis diferenças entre os enfoques que se concentram na economia política como um todo, sublinhando o poder dos conglomerados transnacionais, por exemplo, e aqueles que procuram ver como a lógica do capital é contestada de dentro das empresas de mídia tanto quanto em seus pontos de produção. [...] Para não falar que se observa um vasto espectro de visões sobre o posicionamento relativo da estrutura institucional, do texto e das relações sociais de recepção quando olhamos para essa perspectiva de investigação" (Mosco, 1995: 134).

 Examinaremos em seguida um trabalho que pode ser situado na fronteira dessa linha de pesquisa com a projetada pela abordagem crítica que chamamos aqui de dialética e histórica, já que ele não passa por alto seus motivos fundadores e, segundo nosso juízo, pode ser tomado como exemplo metodicamente mais imunizado às suas limitações intrínsecas, ao conservar em vista aquela última dimensão (a histórica): Do jornalismo político à indústria cultural (1987).

 Gisela Goldenstein descreve sua monografia como "contribuição ao estudo do processo por meio do qual uma parte da imprensa brasileira tornou-se um dos ramos daquilo que Theodor Adorno e Max Horkheimer denominaram Indústria Cultural" (p. 21). Salienta bem que a categoria não coincide com os media, mas sim com a maneira como esses se vinculam às suas condições de produção no contexto mais amplo da sociedade capitalista em seu movimento histórico. A expressão designa não só um campo de investimento, mas um elemento potencializador da acumulação do capital em outros setores, que facilita a reprodução das condições de existência do sistema de produção.

 [A indústria cultural] ajuda o processo de reprodução ampliada do capital em termos materiais (como área de investimento e agilizando o consumo) e não-materiais (enquanto ruído da realidade imediata, ela reforça as condições ideológicas para a manutenção do sistema de dominação). (p. 26)

A pesquisadora observa que o processo tende a dominar o cenário social, mas é desigual a maneira como os veículos de comunicação a ele se subordinam, sobretudo se levarmos em conta o jeito combinado e diferenciado pelo qual as várias formações históricas se integram ao processo de desenvolvimento do capitalismo.

 O estudo da autora parte desse marco para entender como se processa a pré-história desse fenômeno em nossa sociedade, via um estudo de caso em que se confrontam as trajetórias iniciais de dois jornais da grande imprensa paulista.

 Tanto Notícias Populares como Última Hora tinham objetivos políticos que passavam pelo êxito comercial. Wainer tentou organizar uma empresa para Última Hora. Os Levy improvisaram uma para Notìcias Populares. Ambas servir-se-ão de técnicas de sedução do público, cuja  origem e desenvolvimento remontam a um momento da lógica da acumulação do capital no capitalismo maduro. E ambas adaptam essas técnicas comerciais como armas de luta política. (p. 94)

A problemática se estrutura em cima de dois eixos, perguntando quais foram as relações entre sistema de produção e conteúdo da mensagem  num e noutro, sem perder de vista a maneira como eles se imbricavam na configuração social mais ampla que presidiu seu nascimento (p. 31).

 Nos primeiros capítulos, situa-se o contexto histórico que permite entender o surgimento de Última Hora. As circunstâncias do desenvolvimento industrial são rapidamente colocadas para dar conta da maneira como se estruturavam o processo político e as relações de classe no cenário brasileiro pós-1930. Os fatores econômicos são apontados de maneira breve porque, na época, a principal determinação que pesava sobre o funcionamento e sobrevida da imprensa era o político. Amparado pelo varguismo, o jornal teve as técnicas, mas não a lógica da indústria cultural, nota bem a autora (p. 58). Embora se estruturasse como empresa, chegando a ser editada em várias cidades, a folha foi criada com apoio de dinheiro público e sustentava-se, em última instância, com subsídios oriundos das forças que apoiavam politicamente o trabalhismo brasileiro.

 Mantendo em vista as mudanças de conjuntura histórica mais amplas e seus reflexos na fortuna da vida política, o estudo esclarece em seguida as circunstâncias de aparecimento do jornal Notícias Populares (1963). A contra-ofensiva empresarial ao avanço dos setores assalariados e as articulações antipopulistas  do período de crise que se seguiu ao auge do nacional-desenvolvimentismo levaram à criação de uma folha popular apolítica, capaz de atrair e, se possível, esvaziar ao máximo o universo leitor de Última Hora. "O objetivo do jornal seria menos o de obter a sua adesão política do que impedir que a dessem aos grupos de que o concorrente era porta-voz", pois seus criadores "não reconheciam cidadania a essas classes". A estratégia era desmobilizar politicamente as camadas populares: no limite, "a adesão política [que] se esperava obter era a das camadas médias" (p. 80).

 

 Chamando a atenção para o fato de como nesta folha também misturam-se elementos de jornalismo de causa com elementos de indústria cultural que, noutro contexto, são postos a serviço do sucesso comercial e empresarial, a autora observa bem que essa intenção chocava-se com as condições concretas de seu posicionamento ideológico, já que o populismo antipolítico do jornal também tinha um sentido estratégico e nem sempre lograva se manter como tal. A precariedade de suas soluções editoriais não era muito distinta da maneira bastante camuflada com que a empresa concorrente inseria enfoques políticos ou politizava o conteúdo de Última Hora.

Deixando de lado problemas de argumentação (cerceamento econômico do jornal não significa mecanicamente razão para o declínio de sua venda, salvo se comprovada empiricamente essa conexão), a autora mostra como o golpe militar foi fatal para a sustentação econômica da folha populista, que acabou passando a novos donos, e a sustentação política da folha sensacionalista, que terminou vendida, como sua rival, para a cadeia da empresa Frias-Caldeira (Grupo Folhas). Integrando-se, aconteceu porém que "a relação entre a mensagem e a empresa inverteu-se. A partir de agora a empresa subordinaria a mensagem. Até aqui [os veículos] tinham utilizado algumas técnicas da indústria cultural. Doravante seriam regidos pela lógica da indústria cultural. Sua mensagem que até aqui fora mercadoria por acréscimo passava a sê-la por definição", dentro das novas condições políticas e econômicas geradas no Brasil pós-64 (p. 149).

O estudo possui considerável força crítica ao mostrar como o caráter popular e/ou sensacionalista da imprensa está ligado à mobilização de interesses que em si mesmos não o são; vale-se da história para situar o sentido de suas manifestações; apenas deixa de examinar o significado do conteúdo concreto veiculado ou agenciado pelos veículos, tornando-se incapaz de refletir sobre como o contexto que traz à luz foi vivido pelos contemporâneos e sobre eles teria repercutido. Como vários outros do tipo, representa de fato uma tentativa de  superar (no sentido hegeliano) a crítica à indústria cultural. A pesquisadora investiga a trajetória da produção cultural como expressão das mudanças no contexto histórico e na estrutura de produção na sociedade capitalista. Entretanto, peca por não especular sobre a forma como os produtos culturais em foco respondem a certas carências sociais dentro de condições históricas, consoante determinadas mudanças no modo de reprodução da sociedade.

 A realização dos desejos do público está sujeita aos esquemas que viabilizam economicamente a indústria cultural, mas isto não é devidamente examinado.  O processo político e social que ainda comanda a formação da imprensa em exame  é visto como fator que provoca a necessidade estrutural de modificar as estratégias de venda e  esquemas de produção dos bens culturais, mas esses não são analisados em sua especificidade e em suas relações com a práxis dos sujeitos históricos existentes.

 Em contraponto a essa linha de raciocínio, encontram-se as abordagens da comunicação que tocam nas fronteiras de seu tratamento histórico, crítico e dialético a partir da esfera de atuação dos estudos culturais, conforme se pode acompanhar comentando brevemente o estudo sobre o cinema hollywoodiano de Michael Ryan e Douglas Kellner.

 Kellner situa-se entre os herdeiros da crítica à indústria cultural que procuraram remediar os prejuízos advindos do seu caráter excessivamente ensaístico, ao pregar sua fusão com a pesquisa histórica de uma forma que, todavia, não é menos problemática. O entrave em tela, por certo, não é a leitura em chave crítica da produção estética de massas, mas a ênfase nos procedimentos hermenêuticos em detrimento das considerações teórico-sistemáticas (o prejuízo culturalista).

  Com Ryan,  Kellner submete os filmes de bilheteria americanos a uma leitura em que a inclusão dos conceitos de gênero, raça e sexo se faz às expensas da teorização sobre a mercantilização da cultura contemporânea. A preocupação em visualizar a cultura da mídia como um terreno onde se reproduzem os conflitos sociais - antes que um instrumento de dominação - perde de vista o problema da maneira como a indústria cultural condiciona esses conflitos, antes da sua encenação artística e tecnológica.

 

 A Kellner e Ryan o estudo do cinema de massas se coloca como  uma análise engajada, em que o pano de fundo não pretende ser a chamada ideologia dominante, mas os conflitos em curso na sociedade americana do final dos anos 1960 até 1988. A pretensão de usar a história para ler os textos e os textos para ler a história que se descobre em seus trabalhos todavia peca pela falta de um conceito com capacidade de especificar essa dimensão da vida humana (o social-histórico).

 O desenvolvimento de sua estratégia metodológica baseia-se na hipótese de que a crítica cultural não pode ser iluminadora, a menos que saiba situar o texto sob análise em seu contexto histórico. "Um texto é formado por suas relações internas e suas relações com a situação social-histórica e, por isso, quanto mais relações a leitura crítica articula melhor será o entendimento que poderemos ter do texto" (Kellner, 1995: 99).

 O conceito de história, todavia, não é dado de maneira imediata: necessita ser construído. A investigação precisa antecipá-lo hermeneuticamente, para não sofrer um déficit interpretativo.

 Kellner e Ryan evitam realizar essa operação para fugir da reificação teórica, mas, ao fazê-lo, privam-se dos meios para julgar o significado histórico dos bens culturais. Temerosos em proceder a um corte transversal, capaz de apanhar o sentido da época, eles, por exemplo, conduzem sua análise do cinema de massas pelo caminho historicista de uma narrativa que, se bem esclarecedora e fundamentada, carece de conteúdo histórico menos evidente tanto quanto de crítica cultural (Kellner & Ryan, 1988).

 Destarte, Camera Politica deve ser visto menos como um modelo de ciência social crítica do que como exemplo de história cultural inspirada criticamente, cujo modelo sem dúvida é De Caligari a Hitler (Siegfried Kracauer, 1947). Significa que a compreensão fílmica não ultrapassa o marco de uma hermenêutica culturalista, em que pese aos autores serem mais sensíveis às contradições ideológicas que permeiam a produção cinematográfica do que foi o próprio Kracauer.

 A proposta de entender a produção cultural em termos de hegemonia, da dialética entre resistência e dominação,  embora interessante e, em vários aspectos, bastante rica do ponto de vista empírico,  significa em muitos outros um recuo a posições pré-frankfurtianas, já que pressupõe, em acréscimo, que os textos produzem identidades, engendram formas de posicionamento do sujeito,  contrastando suas diversas alternativas perante o público. No modo de ver dos autores, a crítica à indústria cultural é uma "tentativa de discernir como a cultura da mídia mobiliza o desejo, o sentimento, o afeto, as crenças e a visão em várias posições subjetivas (subject positions) e como os meios apóiam uma ou outra posição política" (Kellner, 1995: 121; Kellner & Ryan, 1998: 12-14).

 Entretanto, procedendo assim e não dispondo de um princípio de conjunto, os pesquisadores passam por alto a hipótese levantada pelos primeiros críticos da indústria cultural, segundo a qual, contrariamente ao suposto, a aparelhagem cultural moderna não enseja facilmente a identificação, lidando com pessoas que  "são cada vez mais sensatas, utilitárias e despojadas de ilusões" e que, no fundo, "as massas não vêem e aceitam de há muito o mundo tal como lhes é preparado pela indústria cultural" (Adorno, 1991: 91).

 O principal prejuízo contido em sua abordagem representa, porém, o abandono do núcleo hermenêutico da crítica à indústria cultural frankfurtiana. O reconhecimento do caráter contraditório da cultura de mercado se dá às custas do entendimento de sua dependência aos processos da indústria.

 Precisamos levar em conta na pesquisa a hipótese de que as contradições políticas, sociais e culturais que as mercadorias reproduzem podem ter passado a ser vividas em um contexto que essa própria indústria engendrou e que, portanto, essa indústria não se limita a articular as diversas identidades: ela é, antes disso, uma das principais arenas através das quais vem se produzindo o próprio sujeito na sociedade contemporânea.

 Contrariamente a Adorno e Jameson, os pesquisadores em juízo esquecem em suas análises que a cultura da mídia não pode ser abstraída do contexto social que a própria mídia ajudou a criar. Eles descartam a hipótese de que, devido a essa situação, as pessoas acabaram por se tornar mais ou menos viciadas nas mercadorias culturais tecnológicas. Segundo tudo indica, porém, as contradições veiculadas pelas comunicações dificilmente poderão ser superadas no contexto atual, porque este contexto, criado com ajuda da mídia, preordena a relação do homem com as comunicações e favorece sobretudo uma forma de experiência: a do consumo mercantil de divertimento.

 As observações conduzidas acima, cumpre notar, poderiam ser estendidas à vasta gama de trabalhos que procura fazer pesquisa crítica via trabalho de campo, mas somente à medida que, neles, o uso de suas técnicas implica a supressão dos aspectos fundadores dessa abordagem. Discutir-se-ia com proveito, nesse sentido, o estudo sobre a recepção do público escandinavo à série de televisão Dinastia, elaborado por Jostein Grisprud (1995). O fundamental, convém repetir,  é a preservação em vista dos planos histórico, dialético e crítico da análise, conforme esclarecidos no primeiro capítulo. David Riesman, lembre-se,  elaborou um trabalho pioneiro em que fica clara a possibilidade de emprego criativo de estratégias de pesquisa empírica com o objetivo de fazer um exame crítico, no sentido pleno, dos fenômenos culturais, ainda no começo dos anos 1950.

 Encerrando o tópico, deseja-se acrescentar às reflexões anteriores duas análises que, segundo nosso modo de ver, complementam  o traçado dos limites externos mais imediatos do campo de pesquisa examinado neste trabalho.  Weber e Foucault sabidamente são referências cuja aproximação não só foi postulada como chegou a ser promovida como estágio prático e reflexivo da trajetória  formadora da idéia de ciência social crítica. Os comentários sobre as investigações seguintes visam apontar as perspectivas e avaliar os problemas colocados por contribuições por eles influenciadas ao desenvolvimento de seus protocolos de investigação. 

 Inspirado em Foucault, Nikolas Rose com efeito conduz em Assembling the subject of consumption (1997) um estudo que, por várias razões, incluindo o fato de parte do material ser aproveitado no posfácio à edição de 1999, pode ser entendido como capítulo do conjunto reunido em Governing the Soul ([1989] 1999). A referência é vital para entender sua menção aqui, já que só à sua luz é que a podemos tornar legítima. Seguindo o programa de estudos foucauldiano sobre a governamentalidade, o livro se propõe a esclarecer em que circunstâncias e de que modo as relações de poder operantes no campo das estratégias militares internas no tempo de guerra, dos locais de  trabalho e da família nuclear estiveram imbricadas com a produção de um saber sobre o homem, centrado no que  chamou de complexo psicológico, para, a partir daí, revelar como esse conjunto ensejou o aparecimento de um certo tipo de subjetividade, articulado "psicologicamente" na Inglaterra do pós-II Guerra.

 A linguagem psicoterapêutica e o aconselhamento estenderam-se para além da consulta, da entrevista, do encontro; tornaram-se parte da rotina dos meios de comunicação, da coluna de conselhos das revistas e dos documentários e discussões televisuais. A retribuição financeira deixou de estar envolvida, porque nos programas de rádio com intervenção ao vivo da audiência podemos confessar nossos mais íntimos problemas gratuitamente e tê-los na hora analisados. [...] As livrarias estão repletas de livros advogando diferentes sistemas terapêuticos e defendendo a educação do leitor através de procedimentos pelos quais ele [por hipótese] pode converter seu descontentamento em satisfação, recorrendo à ação sistemática sobre sua psique. ([1989]1999: 218)

 Segundo o autor, isso tem tido um papel muito expressivo nas formas atuais de exercício do poder político, tornando possível governar os seres humanos de modo compatível com os princípios liberais e democráticos,  porque parece fundá-los na vontade e interesse dos seres humanos, quando de fato provêm de um regime de poder que, porém,  não liquida com a subjetividade.

 A postulação metodológica do autor é que a relação entre "a saturação psi da cultura popular e da experiência cotidiana" e o discurso dos "engenheiros da alma" não pode ser entendida apenas em termos de idéias ou de processos de comunicação. "O campo de pesquisa é o dos processos, aparelhos, práticas e técnicas, do pensamento enquanto procura tornar-se técnico" (1996: 23).  A expressão psi não apenas colonizou a empresa, a religião, a política, a justiça  e o conjunto da cultura do profissionalismo, mas precisa ser vista como objeto de prática social em todos os contextos nos quais as forças que se expressam por meio dela intervêm concretamente. O saber não é mero corpo de discurso, mas um conjunto  de condições materiais e práticas concretas, matéria de técnicas, discursivas e extradiscursivas.

 Assembling the subject of consumption parte desse entendimento, entrando em polêmica com as abordagens críticas de corte culturalista (supostamente centradas na ideologia), sem compactuar com os princípios da economia política (reprodução material) ou do empirismo (influência comportamental). A realidade histórica deve ser vista antes como "uma rede de problemas e questões, uma atualidade em que se tem de atuar e pode ser conformada para a ação", que é passível  de ser apreendida pelo "pensamento orientado por uma investigação genealógica" (Rose, 1997:11).

  A proposta do estudo é a análise das feições produtivas das técnicas de governo que os homens inventam ao longo da história. A partir dela examinam-se as formas através das quais "o conhecimento psicológico se conectou de vários modos às tecnologias da publicidade e marketing e tornou possíveis novos tipos de relações, a partir das quais os seres humanos se envolvem consigo e com os outros por meio de certos bens" (1997: 3).

 Durante o período entre-guerras nos Estados Unidos, verificou-se por meio via das pesquisas de opinião e dos estudos comportamentais,  um "translado da 'mentalidade' democrática para um domínio acessível ao conhecimento, via especialização psicológica;  ao cálculo, via teoria psicológica; e ao governo, via a propaganda informada psicologicamente" (Rose, 1996: 132). Seguidos com o tempo em vários países, baseiam-se todos esses expedientes na tese de que o consentimento pode ser produzido mediante o conhecimento das atitudes e desejos do público e o emprego de técnicas de liderança e comunicação, mudando a própria natureza da política e o  cunho das atividades governamentais  (Rose, 1996: 144-149).

 O consumidor, pretende-se, não é dado, mas, enquanto identificado, enfocado como alguém que precisa ser estudado, cujos desejos necessitam ser calculados e cujos padrões de consumo devem ser cuidadosamente investigados. O pesquisador força a letra ao contestar a hipótese de que o marketing impõe falsas necessidades, porque seu estudo é prova do quanto as necessidades sociais são falsificadas, no sentido em que são modeladas de modo a servir sobretudo aos interesses dos fabricantes.

 A perspectiva é sugestiva, porém, ao insinuar que o estudo do assunto precisa ser conduzido, mais do que postulado, no plano das práticas de pesquisa e do agenciamento concreto no âmbito da prática social, em vez da análise de conteúdo da mensagem. O marketing é cada vez mais uma "cartografia meticulosa e sem precedentes - em parte imaginária, em parte derivada de novas formas de experimentação - do cotidiano do consumo tanto quanto de suas ansiedades e prazeres" (1997: 6).

 Explorando os relatos de pesquisas levadas a cabo na Clínica Tavistock (Londres) a pedido de agências do mercado nos anos 1950/60, Rose e Miller revelam como eles sugeriram que essas últimas fossem além do plano do produto e se dirigissem, primeiro, às necessidades inconscientes e desejos ativos do consumidor (p. 12). Os encarregados constataram que existe  uma ligação entre a "escolha de produtos particulares" e "seu significado na vida cotidiana do indivíduo" (p. 18).

 O projeto de elaborar uma teoria geral do consumo, capaz de atender os interesses dos vendedores, fracassou diante da reafirmação de que o processo de venda esbarra no problema da resistência. Embora passíveis de entendimento e manipulação, o consumo depende de um conjunto de fatores psicológicos que, em última instância, obriga os profissionais de marketing a reconhecerem o que os autores em juízo reiteram, equivocamente segundo nosso modo de ver, como a "soberania da escolha do consumidor em um mercado livre" (p. 30).

 A pesquisa sobre o assunto não pode, sustentam os autores, limitar-se ao plano das idéias, devendo baixar ao plano técnico, porque os protocolos seguidos pelo seu conhecimento e as técnicas destinadas a calcular os desejos de consumo da população se enquadram em uma "economia política de subjetivação".

 As tecnologias de consumo dependem da fabricação de afiliações delicadas entre a capacidade de escolha dos consumidores potenciais e as qualidades, prazeres e satisfações representadas nos produtos, organizadas parcialmente pelas práticas do marketing e da publicidade, e inteligíveis apenas à luz de certas crenças sobre a natureza da subjetividade humana. (p. 31). 

 A proposição constitui, segundo nosso ponto de vista, um avanço metodológico, apesar do seu déficit valorativo e equívocos de interpretação. A consideração dos problemas culturais no plano de seus mecanismos de efetivação é um bom antídoto àquelas análises críticas que os limitam ao plano da ideologia. O principal problema é a renúncia valorativa à dimensão crítica da pesquisa sobre os regimes de poder ou matrizes de governo sob investigação, que descarta de maneira miserável um motivo constitutivo do programa de pesquisa foucauldiano e, no limite, reveste-se de um cunho afirmativo, ao sustentar que "a terapia não é um esforço para instilar o conformismo, mas, ao que parece, parte de um projeto profundamente emancipatório que nos faz aprender a ser um eu" ([1989] 1999: 242).

 Rose pretende "abrir um espaço para reflexão crítica", mas de fato reduplica ingenuamente o discurso neoliberal corrente, assumindo como fato e sem crítica, isto é, evitando seu confronto com a realidade, o que é meramente proposto em discurso.

 Seria tolo - afirma muito bem - pretender que a psicologia e seus especialistas são a origem de todas as máquinas subjetivantes [por mim retratadas] - trata-se antes de saber a maneira como montagens de paixões e prazeres, trabalho e consumo, guerra e esporte, estética e teologia, conferiram a seus sujeitos uma forma psicológica. (1996: 195)

 O pesquisador, todavia, pensa poder examinar esse processo  sem reflexão crítica, partindo da premissa de que esses regimes teriam um sentido puramente produtivo; mas só logra fazê-lo passando por alto, senão negligenciando, seus efeitos negativos à luz do ponto de vista do próprio sujeito e, além disso, silenciando sobre o apoio dado por esses elementos à formação de sistemas de dominação em escala societária.

 Parece-nos francamente deficitária em todos os sentidos a afirmação de que a conexão entre as psicoterapias e o poder político não significa prejuízo à subjetividade, mas "a fabricação do eu autônomo como termo-chave na análise dos males sociais e sua cura, como objeto de conhecimento especializado e como alvo de sistema morais ortopédicos" ([1989]1999: 221). A proposta  materialista da análise não sai do  plano discursivo: "através do livro é difícil, se não impossível, encontrar qualquer exemplo de se  e como qualquer um dos discursos analisados foram operacionalizados fora do texto" (Thompson & Findlay in Larry & Andrew, 1999: 173).

 O agravante do ponto está no fato de que o relato é linear, não se vendo nem suas contradições e complexidades internas, nem os elementos que a ele se oporiam exteriormente no contexto da totalidade. A pretensão filosófica de estender nosso conhecimento sobre os processos de sujeição em curso e assim torná-lo avaliável (Rose, 1999: 97), tanto quanto a pretensão metodológica de se cingir ao ponto de vista do governo, não só encobrem de forma por certo perversa um preconceito valorativo como revelam um déficit empírico profundamente problemático  para qualquer pesquisador.  A ressalva de que se está interessado nos custos que importam nossas descrições como sujeitos livres e auto-governáveis é, no caso do autor, feita de maneira anódina e sem conteúdo, além de ambígua, porque não fica claro se as fontes da mesma estão na descrição sociológica ou nas suas condições de efetivação históricas.

 A afirmação de que "o eu não é algo a que é permitido escolher, mas obrigado a construir a vida em termos de suas escolhas, seus poderes e valores" (Rose [1989]1999: 231) não tem um sentido crítico. A referencia à liberdade como valor,  que se observa em seus escritos mais recentes, é reduzida às práticas de governo ou, pior, a um poder (definido em moldes liberais) que a agencia positivamente, embora sobre as formulações paire alguma dúvida (trata-se de práticas que trabalham com  idéias ou que valem como realidades?). Nas palavras do autor, as menções a ela são "termos operacionais constitutivamente [ligados a processos sociais]" (1999:94), mas por isso mesmo figuras despojadas de seu aspecto de idéias, o que explica a falta de referência  aos prejuízos a que está submetida devido a essas próprias práticas.

 Segundo o neoliberalismo, "o cidadão como consumidor deve se tornar agente ativo da regulação de sua competência profissional" (1999:166). A revelação feita pelo autor apenas reitera o que esse discurso pretende,  sem analisar-lhe os limites e, assim, dar-lhe crítica. Rose pensa em termos de inculcação de desejos a tendência bem assinalada no sentido de o governo não se fundar mais em práticas disciplinares ou moralizantes mas éticas:

 Os indivíduos atuam sobre si mesmos e suas famílias em termos de linguagens, valores e técnicas tornadas acessíveis pelas várias profissões através dos aparatos de comunicação de massas, ou procuradas no mercado pelos necessitados. (1999: 88)

 As referências ao preço que pagamos pela "obrigação" de sermos livres presente em seus textos mais recentes não explicam, contudo, por que surgem esses problemas e como eles se relacionam ou não, negativamente,  com o "regime liberal de governo"  (1999: 233-273). A resposta por ele fornecida ao ponto se contenta em listar os elementos que estruturam a contestação, no que é muito sugestivo,  mas não entra em suas causas e eventual significado histórico (p. 280-282).

 O remorso ou má consciência  levam-no a justificar seu programa de pesquisa com a pretensão de ajudar-nos a reavaliar os valores com que nos conduzimos, de revelar as mentiras e falsidades nos regimes de governo. Contudo,  no caso, isso é pura petição de princípio, pois o que a pesquisa mostra é a emergência de um sistema de vida benevolente que, conforme exposto, ninguém teria razão (crítica ou não) em contestar justamente.

 

A pretensão do autor em ajudar os indivíduos a maximizarem sua capacidade de reavaliar seu conhecimento, contestarem os poderes vigentes e reconfigurarem suas práticas é, em última instância, sem razão - embora creiamos que a menção a esses tópicos abra portas para uma revisão das premissas em que se baseia seu trabalho. Esquecer os sofrimento, as humilhações e as más realidades a todo  preço - esse, porém, parece, por enquanto, o cuidado central dos estudos de Rose.

 

The romantic ethic and the spirit of modern consumerism (Campbell, 1987) representa em contraponto uma réplica culturalista à linha de entendimento por ele proposta e que vale a pena comentar, sobretudo pelo potencial de esclarecimento metodológico, mas sem deixar de notar sua dívida para com o trabalho clássico de Weber (A ética protestante e o espírito do capitalismo). Salientando como a figura do romance, a estrutura narrativa sentimental, aventureira e fantasiosa,  tornou-se um ingrediente que desempenha um papel estratégico no desenvolvimento do consumismo moderno - o trabalho defende que vêm de há muito as forças que em nossa cultura, tensionam as premissas da ética do trabalho (puritanismo). Desde  o final do século XVIII, verifica-se a presença de uma atitude ética romântica, que promove o espírito do consumismo e influi produtivamente na moderna cultura de mercado.

 A lógica cultural da modernidade não se reduz à da racionalizada que se expressa nas atividades de cálculo e experimentação; também é a da emoção e do desejo, que nasce como sonho criativo. (Campbell, 1987: 227)

 As concepções românticas acerca da personalidade, associadas à crença que punham no renascimento moral por meio da arte, funcionaram historicamente de modo a estimular e legitimar uma forma de hedonismo imaginário e subjetivo, que seria subjacente à moderna conduta consumista. Embora o romantismo tenha iniciado a crítica à cultura de massas, sua crença na capacidade de renovação moral da experiência estética acabou contribuindo  sem querer para estimular" a produção incansável de bens e serviços que caracteriza a sociedade industrial contemporânea" (p. 209).

 Weber havia notado em seu estudo sobre o protestantismo que o movimento de idéias pode ser fator de mudança social, já que é encarnado na ação  e se converte em prática social. Campbell procura mostrar como os conceitos de cunho romântico influenciaram na conduta e moldaram nossa sociedade.

 Os indivíduos modernos não vivem apenas na jaula de ferro da necessidade econômica, mas no castelo dos sonhos romântico, lutando para que sua conduta passe de uma a  outra. (p. 127)

 A revolução no consumo que teria havido na Inglaterra do período, lançou as bases espirituais para o desenvolvimento de uma forma de conduta ética que seria a do consumismo, ainda que não o próprio consumo, embora, às vezes, o texto seja ambíguo sobre o ponto.

 "Na modernidade, as emoções passaram a ser localizadas 'dentro' dos indivíduos, ao invés de estarem 'no' mundo [como na Antigüidade]" (p. 72), pois "o encantamento do mundo exterior exigiu o processo paralelo de 'encantamento' do mundo psíquico interno" (p. 73).

 O problema todo é que o pesquisador não chega a explicar como se descobriu a possibilidade de ter prazer com o manejo das próprias  emoções e a exploração da imaginação. A literatura sugere que, nessa época, o homem começou a vincular a capacidade de controlar a si mesmo com o desenvolvimento de experiências interiores prazerosas. "O controle dos poderes da imaginação" passou a ser visto como via de acesso à "maximização das experiências gratificadoras", caracterizando-as como forma altamente racionalizada e ilusória de hedonismo, em que pese seu aparente materialismo.

 Os indivíduos empregam seus poderes criativos e imaginativos para construir imagens mentais que são consumidas pelo prazer intrínseco que fornecem; trata-se de uma prática que pode ser melhor descrita como devaneio ou capacidade de fantasiar.  (p. 77)

 

 Destarte, o fundamento histórico do consumismo não estaria  na seleção, compra e uso dos produtos, mas na prática de um hedonismo mental, no desenvolvimento da capacidade de imaginar prazeres, que se tornou um prazer em si mesmo (p. 95). Campbell não explica, todavia, por que a classe média procurou promover uma estética que endossou suas preferências e tornou o prazer estético uma experiência emocional e gratificante (p. 159). A conexão entre protestantismo e sensualismo não é bem-articulada, e muito menos submetida a uma tentativa de explicação, pois a remissão do problema ao conflito entre burguesia e a aliança no caso, formada entre os segmentos aristocráticos, as mulheres de classe média e os intelectuais, não logra, julgamos,  dar conta do processo examinado.

Também nos parece problemática a conclusão tirada pela obra de que o romantismo ajudou sem querer a promover o comercialismo, mas este também atuou para promover o romantismo (p. 216). Pois esse romantismo de segunda geração, sendo o romantismo da cultura de mercado, não seria reconhecido como tal pelos seus criadores: pouco tem a ver com a experiência da qual tomou, se tanto, o nome, conforme se pode avaliar consultando, por exemplo, os trabalhos de Henri Lefebvre ou Michel Löwy.

   Concluindo essa análise, observaríamos ainda que o trabalho é deficiente no esclarecimento dos fatores mais amplos que ensejaram esse processo e são por ele agenciados, por mais que seu autor  mostre esmero na condução de uma análise histórica feita em chave de teoria da ação e, assim, marque bem as conexões entre razão e subjetividade.  O principal ponto a notar, porém, é a forma como, em contraponto à perspectiva de uma ciência social crítica, evacua-se aqui o problema do poder, tão central à sociologia histórica weberiana que lhe serve de inspiração. À abordagem genética e interpretativa da obra falta o elemento histórico estrutural, que ajudaria a melhor explicar o processo não apenas em sua origem e fortuna, mas, sobretudo, em sua efetivação, tanto quanto a reflexão crítica e emancipatória sobre como ele pesa sobre a vida de seus herdeiros.

 

Excurso sobre Norbert Elias e Jürgen Habermas

 Conforme observa Thomas McCarty, a crítica cultural tende a construir suas proposições apenas com base na análise de textos, secundarizando todo o resto, porque as pessoas que a praticam obviamente usam os meios que lhes são mais próximos:  neste caso, os do  ensaísmo filosófico. O reconhecimento por parte da teoria crítica de que esses textos têm uma matriz social exige-nos que essa conexão, não menos do que a do texto, seja trazida à  análise e seja veículo de uma história crítica do presente tanto quanto de uma teoria crítica da sociedade (Hoy & McCarthy, 1994: 18).

 Origina-se da Escola de Frankfurt um privilegiamento da estratégia crítico-cultural como forma de abordagem dos fenômenos de mídia, que não deveria ser vista  como canônica e muito menos obrigatória. Tivemos ocasião de defender que encontra-se também nos seus escritos uma série de notas em que fica muito claro seu entendimento de que a crítica à indústria cultural representa também um capítulo teórico de uma ciência social crítica.

 Metodologicamente, o programa de pesquisa que daí se origina baseia-se, em resumo, no princípio de que os estímulos provenientes da indústria da cultura  "são um fenômeno histórico, e a relação entre esses estímulos  e a resposta [do público] é preformada e preestruturada pelo destino histórico do estímulo tanto quanto do sujeito que lhe responde" (Adorno & Lowenthal).

 As considerações seguintes procuram acompanhar como vem se dando o desenvolvimento desse programa, começando pelo comentário de trabalhos escritos por pensadores que se tornaram em vida clássicos das ciências sociais, seguindo, conscientemente ou não, suas proposições fundadoras.  

  Defende a Escola de Frankfurt que a configuração de nossa época requer o entendimento da passagem do capitalismo liberal para o regime corporativo, da racionalização instrumental das instituições sociais e da emergência da cultura de massa em substituição às formas de socialização tradicionais.

  Habermas realiza um estudo magnífico sobre a fortuna da vida pública nesse contexto em Mudança estrutural da esfera pública ([1962] 1984). O pensador mostra que a economia de mercado criou em seus primórdios um  espaço público, sustentado pela circulação da mídia  impressa e, aos poucos, numa série de instituições culturais que  permitiram à burguesia desenvolver uma consciência crítica em relação  às autoridades tradicionais, encarnadas no Estado  e  na Igreja. Entretanto,  fecha a tese, a  expansão  dos  aparelhos políticos  e  do  poder econômico,  ocorrida  no  último  século,   rompeu  com  o   frágil equilíbrio  em  que se apoiava essa  forma  de  sociabilidade, transformando  o  papel  da mídia ao mesmo  tempo  que  sua  base tecnológica, para não falar na direção geral do movimento histórico universal.

 A tarefa da pesquisa é, em resumo, reconstruir a formação da esfera pública burguesa mediante o comentário de suas principais expressões filosóficas e institucionais e uma análise estrutural do seu desenvolvimento como totalidade histórica.

 Depois de um breve esclarecimento preliminar da problemática e das idéias com que  está associada, passa-se ao exame da gênese da esfera pública burguesa. A esfera pública é um elemento de mediação entre a emergente sociedade mercantil burguesa e as instituições ainda feudais das monarquias absolutistas. Trata-se de uma criação histórica que como tal se desenvolve, constituindo produto da diferenciação entre aparelho de estado e setor privado, mas não só: também é um espaço de liberdade em relação às determinações de um e de outro, já que representa ainda um espaço onde as pessoas privadas estão reunidas como público consumidor de bens culturais; também é, dadas as características literárias desses bens e a configuração mais ampla em que se insere (a da formação do capitalismo), um espaço em que elas têm a oportunidade de pensar, debater e, no limite, deliberar sobre seus interesses comuns para em seguida pleiteá-los junto às autoridades instituídas.

 As pessoas privadas, às quais a obra se torna acessível enquanto mercadoria, profanam-na à medida que, por via do entendimento racional, conversam sobre ela por conta própria e, assim, precisam verbalizar o que até então exatamente tinha podido, na não-verbalização, desenvolver a sua autoridade. (p. 52)

 Gestado desde o final da baixa Idade Média, o processo se estrutura com a circulação e o consumo de impressos (livros, jornais e revistas) no âmbito da família nuclear burguesa, desdobrando-se, mais tarde, em uma série de instituições de caráter literário, artístico, musical e outros, tais como gabinetes de leitura,  teatros, salões, cafés, etc.  O resultado é a formação de uma esfera social relativamente autônoma, cuja função pouco a pouco se desdobra em direção ao plano do debate público sobre os termos mais favoráveis para assegurar a troca de mercadorias perante os representantes do aparelho estatal absolutista.

 Associado politicamente à formação dos parlamentos, o processo desemboca na situação definidora da sociedade burguesa, em que o poder torna-se público, já  que os veículos de comunicação, sobretudo a imprensa, convertem-se em palco no qual as várias facções políticas explicitam seus interesses, debatem idéias e procuram fazer valer seus ideais perante os órgãos políticos da sociedade tanto quanto do aparelho de Estado.

 A esfera pública com atuação política passa a ter o status normativo de um órgão de automediação da sociedade burguesa com um poder estatal que corresponda às suas necessidades. O pressuposto social dessa esfera pública "desenvolvida" é porém um mercado tendencialmente liberado, que faz da troca na esfera da reprodução social, na medida do possível, um assunto particular das pessoas entre si, complementando assim finalmente a privatização da sociedade. (p. 93) 

A esfera pública reproduz, no plano político, uma racionalidade que, no plano econômico a que corresponde e que lhe fornece sustentação, exibe-se como mecanismo de formação de preços, da oferta e da procura, deixando de fora extensos setores da população. A possibilidade de ingresso e participação na esfera pública, aberta em tese a todos os que soubessem usar a razão, era realmente bloqueada a todos os que careciam de condições para desenvolver o raciocínio público (formação espiritual, tempo livre, independência econômica).

 Habermas assinala assim que a figura histórica da esfera pública era também idéia e ideologia. O caráter pretensamente universal que encarnava era de fato exclusivo. Apenas as camadas burguesas reuniam as condições materiais necessárias para dela usufruir. As camadas camponesas, trabalhadoras e outras eram mantidas numa menoridade pela sua dependência ao poder econômico dessa mesma burguesia. A racionalidade pública e a liberdade política que supunha e ampliava baseavam-se no exercício do poder econômico privado sobre a massa da população. Em razão, era idéia e ideologia. A esfera pública era em parte idéia porque se deixava entender como um processo em curso de realização que, no fim, integraria toda a humanidade; em parte ideologia, porque  sua efetivação prática não correspondia ao conceito que os responsáveis pelo seu agenciamento faziam, servindo para reproduzir as condições de dominação que  se contrapunham àquela realização.

 A referência é desenvolvida em sofisticada seção da obra, na qual o autor mostra como o processo que reconstruiu historicamente foi pensado e articulado filosoficamente pelos contemporâneos. A esfera pública não é uma coisa, mas um processo em que intervêm certas condições materiais, forças sociais e em que se criam determinadas instituições. Todavia, dela não se pode deixar de fora as idéias, tanto quanto sua auto-reflexão intelectual. O processo possui fundamento no sistema econômico, articula-se nos planos político e espiritual e é pensado reflexivamente pela filosofia. Apenas assim é que pode ser apreendido em sua formação concreta, como conjunto de instituições, como idéia e como ideologia.

 A primeira parte da pesquisa trata da formação da esfera pública burguesa e expõe seu caráter problemático, não obstante seu sentido imanentemente progressista, por meio da análise das contradições entre sua idéia e suas condições de efetivação, que acabam por conferir-lhe (em parte) o caráter de ideologia; isto é, um caráter repressivo em relação ao conteúdo emancipatório.  A segunda se ocupa com seu declínio histórico concreto, o esgotamento de seu conteúdo ideal (utópico), a redução cada vez maior à ideologia e, no limite, o esvaziamento da categoria.

 Durante o século XIX, a figura da esfera pública tornou-se palco de novos conflitos sociais porque a recepção de seus motivos e a cobrança de suas promessas pelos setores sociais emergentes colocaram em cheque os princípios econômicos em que se assentava a sociedade burguesa.  O desenvolvimento capitalista criara uma massa de trabalhadores assalariados, que, passado certo tempo, passou a exigir seu ingresso e a reivindicar direitos nessa esfera, colocando em discussão seus fundamentos na esfera da propriedade privada dos meios de produção. Também esses passaram a ser objeto de discussão por forças sociais que, racionalmente, exigiam sua socialização em termos de uma esfera pública ampliada à escala de toda a sociedade .    

 

 Entrementes, o progresso das forças produtivas e a expansão do poderio econômico ensejaram uma reacomodação estrutural da esfera pública. A situação desviou as reivindicações por uma reestruturação dos fundamentos da vida coletiva para o terreno da melhoria do padrão de vida, para a esfera íntima do consumo. A crescente intervenção do Estado nos conflitos entre capital e trabalho resultou na criação de compromissos recíprocos, que atenuaram sua radicalidade.

 A progressiva democratização dos direitos políticos teve pouco alcance em relação à participação na vida política e à ampliação da cidadania ativa por parte da massa da população. A colonização da esfera pública pela propaganda governamental e pela publicidade empresarial, combinada com o desenvolvimento de meios de comunicação predominantemente mercantilizados, retirou do espaço público a condição de espaço para a livre discussão dos assuntos de interesse político comum que conservara durante a era burguesa, convertendo-o em esfera promocional das campanhas governamentais e do consumismo empresarial, articulada pelos conglomerados privados e estatais de comunicação.   

 As comunicações de massas expandiram a esfera pública, mas, por outro lado,   seus ideais foram sendo

 cada vez mais desalojados dessa esfera  e reinseridos  na esfera, outrora privada, do  intercâmbio  de mercadorias;   quanto   maior   se   tornou   sua   eficácia jornalístico-publicitária,  tanto  mais vulnerável  eles se tornaram  à  pressão de  determinados  interesses  privados, sejam  individuais,  sejam coletivos. (p. 221) 

 O raciocínio público tende a se converter em simples consumo de opiniões numa sociedade em que a condução da vida coletiva é encampada pelo aparelho estatal em combinação com os interesses mercantis de megacorporações. O homem será visto sobretudo como consumidor, em vez de cidadão capaz de pensar e deliberar sobre o destino de sua sociedade.

 A publicidade perde a sua função crítica em favor da função demonstrativa: mesmo os argumentos são pervertidos em símbolos, aos quais não se pode, por sua vez, responder com argumentos, mas apenas com identificações. (p. 241)

 Em síntese,  a  esfera pública passou a  ser  colonizada  pelo consumismo promovido pelos interesses mercantis e pela propaganda manipuladora  dos partidos políticos e dos estados  pós-liberais, como   no  caso  do  nazi-fascismo,  mas,  também,   dos   regimes democráticos de massas (Estados Unidos).   A procura  do consenso  político  pelo livre uso da razão  individual  teve  de retroceder  perante  o  emprego da mídia a serviço  da  razão de Estado  e  a  conversão  da  atividade  política  em  objeto   de espetáculo.

 Assinalando como esse processo é pensado de maneira cada vez mais desencantada pelos teóricos, mas também como ele não importa na completa supressão da publicidade crítica, deslocada para o âmbito da esfera pública interna a algumas organizações,  o estudo conclui que mediante a reflexão sobre o percurso da categoria pode-se examinar as possibilidades emancipatórias que ela conserva ou não, tanto quanto o papel que ela desempenha ou não no exercício da dominação (p. 290).

 Nicholas Garnham resumiu as críticas que a obra mereceu, quando interveio no congresso internacional sobre a mesma realizado pela Universidade da Carolina do Norte em 1989. Deixando de lado os aspectos de precisão histórica do relato, elas seriam o manejo idealista do conceito de esfera pública, o caráter normativo a ela conferido, a separação abstrata da racionalidade que supostamente a comandaria em relação ao campo da expressão estética e a dependência às teses mais fortes da crítica à indústria cultural frankfurtiana. Garnham observa muito bem que, por mais que essas e outras críticas possam servir de corretivo e melhoramento do trabalho, elas não tiram o mérito e empanam as virtudes do raciocínio de fundo, seguido na obra por Habermas (Garnham in Calhoun, 1992: 359-376).

 Acrescentaríamos de nossa parte sobretudo a observação de que as críticas citadas passam por alto o fato de que, certamente ensejando uma restrição do campo de pesquisa passível de discussão, a estratégia metodológica empregada pelo autor é a crítica imanente: não é ele que idealiza ou confere normatividade de cunho racional à figura da esfera pública, mas a sociedade que a engendrou historicamente. As características fazem parte de uma idéia baseada em condições materiais,  criada pela própria sociedade burguesa, e não por sua análise, crítica apenas à medida que procede ao seu confronto com a realidade. Isto é, procede ao exame do fenômeno como idéia e como ideologia, ao remeter a primeira ao seu correspondente contexto histórico-sociológico.

 Pode-se, por certo,  pensar que o estudo não precisaria se contentar com a análise da maneira como essa contradição se revela no discurso jurídico, político e filosófico; mas o que não se pode, sob pena de quebrar o método, é pensar que este poderia deixá-los de lado, tendo em vista que é nesse tipo de plano que a análise se articula intelectualmente e, nela, também esse plano conta muito, ao se fazer a avaliação do fenômeno em relação a seu processo de formação. A separação entre racionalidade e estética não é algo que o estudo endosse, embora não o investigue, mas uma pretensão (ideológica) de seu engendramento,  que poderia, se fosse o caso, ser criticada pelo seu confronto com a realidade histórica.

 A comprovação disso está na forma como o autor opta por realçar esse aspecto, ao comentar a fortuna da esfera pública no mundo contemporâneo. O declínio da figura não significa sua elisão do cenário, mas a perda de seu aspecto ideal e normativo em meio ao processo social, cada vez mais dominado por uma publicidade que, declaradamente, assume-se como função das atividades econômica e governamental. A reflexão crítica sobre a esfera pública culmina no momento em que, forçada pelos fatos, essa reflexão dá lugar ou se subsume à crítica da indústria cultural e, no limite, da propaganda totalitária.     

 

   Norbert Elias fornece-nos outro excelente modelo de análise crítica histórica e dialética da maneira como projeções ideológicas se articulam com o processo histórico em sua totalidade na obra A sociedade de corte ([1969] 1982). O propósito do livro é reconstituir os princípios de estruturação da ação social no âmbito da sociedade cortesã. Diretamente relacionado com as pesquisas sociogenéticas de O processo civilizador (1939), o trabalho  procura mostrar os mecanismos de interdependência que surgem entre os seres humanos e o modo como eles ensejam que os sujeitos modifiquem seus padrões de conduta e formas de autoconsciência ao longo do processo histórico ocidental moderno. O aparecimento dessa espécie de formação social promoveu uma transformação das coações externas até então dominantes em autocoações, "produzindo uma série de formas de comportamento a cujos traços diferenciais podemos nos referir com o conceito de racionalidade [cortesã]" (p.125).

 A sociedade cortesã ensejou o surgimento de um ethos aristocrático desvinculado das atividades puramente militares que vingaram no período medieval. As  relações em que se baseava não tinham mais por fundamento a posse da terra, mas a apropriação das rendas estatais.

 Embora não seja o objetivo do estudo, o volume contém uma análise de uma novela menor, que vale como exemplo da maneira como as formas culturais podem ser estudadas criticamente, sem perder de vista sua conexão com o processo histórico em sua materialidade.

 L'Astrée é uma novela que se publicou em capítulos ao longo de quase vinte anos e que empolgou extensos círculos da sociedade cortesã francesa no começo do século  XVII.  Para o autor, o texto encena o conflito e se insere literariamente nas questões de época, foi um elemento de articulação das contradições vividas por esse segmento social em um  momento de transição, pois seus integrantes passavam da condição de aristocracia militar para a de aristocracia cortesã.

 O enredo representa literariamente a dialética entre o progresso da consciência moral e a reação ao crescente racionalismo da ação social, entre a fuga diante do cerceamento da conduta e a internalização das coações civilizatórias. Os personagens da novela são típicos não apenas porque não se trata de uma obra-de-arte original, mas porque o texto serve para, via o fornecimento de satisfações literárias, articular a experiência vivida por esses grupos de uma maneira criativa.

 Segundo Elias, a novela expõe a relação entre a transformação global das coações externas em autocoações, a formação da consciência, a interiorização das coações sociais sob a forma de um ethos ou uma moral, por um lado; e por outro os movimentos no sentido de fugir das coações civilizatórias, através do abandono da sociedade civilizada e a retirada para enclaves de vida mais simples (em geral, campestres), semi-enganosos, semi-verídicos: isto é, mediante a retirada para o mundo da fantasia. (p. 338) 

 O progresso dos controles interiores, exigido pela concentração do poder político nas mãos do monarca absolutista, engendrou reações ambíguas, porque se, por um lado, produziu um maior sentimento de individualidade, por outro, importou em uma série de repressões sentidas duramente. Os homens que viveram esse processo direta ou indiretamente estavam prontos para se reconhecer senão aclamar a novela, porque ela expunha esteticamente as vantagens e os prejuízos que tiveram com esse processo, o consentimento e a resistência que ofereceram a seu avanço. O romantismo de caráter nostálgico e o sentimentalismo bucólico que se pronunciam em suas formulações revelam, porém, que a obra também possuía um sentido construtivo ao converter em figuras sensíveis, de cunho francamente reacionário, a experiência histórica dos segmentos vencidos politicamente pelo processo civilizatório.

 A criação literária com  que o artista logra responder, de maneira até certo ponto autônoma, às demandas desse público é uma utopia da nobreza feudal que se aristocratiza no âmbito da corte absolutista. O sentido é claramente retrógrado, ainda que confortador a todos os que tinham de enfrentar esse ajustamento. A novela retrata como  expressão mimética um cenário em que "os homens, disfarçados de pastores e pastoras, podem viver a aventura apolítica de seus corações e sobretudo o sofrimento e a alegria do amor, sem se colocar em conflito com as coações, mandatos e proibições impostas pela realidade histórica" (p. 328).

 As transformações subjacentes à obra e que ela articula como ficção literária não ocorreram apenas na maneira de pensar, mas no próprio modo de ser dos homens da época. As explosões emocionais e os descontroles afetivos passaram a ser vistos como reações improdutivas, senão perigosas, para a boa sorte do indivíduo, passando a ser cada vez mais controladas de uma forma que todavia não se fez, como ainda hoje, sem terríveis prejuízos para o indivíduo.

 Destarte, o romantismo aristocrático  articulou um conjunto de imagens que forneceu sensações estéticas mais espontâneas, livres, simples e bucólicas do que as de fausto, luxo, riqueza e poder com que seus sujeitos conviviam ao mesmo tempo fascinados e temerosos. A pintura cortesã não ficou alheia a esse processo e mostra que nessa criação não se tratava de reviver o passado mas de recriá-lo:

 a reserva consciente e os gestos artificiais, a exigência de fazer exibição social de valor, a gravidade pomposa e heróica ou a graça ligeira: tudo isso [tem origem na vida cortesã e] se translada para a configuração da paisagem e  a imagem da natureza camponesa. (p. 305)

 A construção de uma ficção assentada na vida camponesa contrabalançou para os estratos submetidos a esse processo, com uma idealização do modo de vida e das relações humanas de épocas passadas, seu ingresso em uma fase em que cada vez mais ser-lhes-ia exigido o controle racional da conduta. O tempo se encarregou de converter as condutas a que tiveram de se curvar em elemento definidor de seu modo de ser. A formação da sociedade cortesã ensejou o surgimento de práticas de autocontrole em que se "mesclavam sentimentos negativos frente à ordem social existente e, em especial, às coações do poder político" (p. 296).

 As experiências estéticas proporcionadas pela literatura ficcional arcadista ou a prática da caça como esporte pseudonatural representaram uma válvula de escape, mediante a qual esses setores sociais puderam estruturar sua subjetividade e empregar seus corpos de maneira alternativa àquela exigida por seu enquadramento no ambiente cortesão. 

 Passando em revista os comentários acima, verificam-se como principais características  dos estudos resenhados, primeiro,  a preocupação em situar seus problemas (a esfera pública ou o folhetim teatral) num processo de longa duração (a formação e mutação do capitalismo e a formação e mutação do aparelho estatal absolutista; a mudança estrutural da esfera pública enquanto idéia e realidade  históricas e a mudança dos padrões de conduta aristocráticos  enquanto ethos articulado prática e idealmente no ambiente cortesão).

 Em segundo lugar, o esforço para descrever os temas sob exame enquanto idéia e ideologia, desejando dizer com isso que a análise de conteúdos imanentes é vista em sua pretensão de verdade (política ou estética) tanto quanto em sua contradição com a análise dos dados da realidade histórica (a exclusão ou o irrealismo sociais): é esse jogo conjunto que decide sua fortuna histórica. Os materiais são visualizados em termos de mediação de um pelo outro, em vez de encarnar uma causalidade mecânica, exercida por uma força em princípio determinante.

 Finalmente, a transação,  todavia determinada,  entre texto e contexto, entre idéia e realidade, que se definem como momentos distintos e desiguais de um mesmo processo, é situada (como idéia ou fato) no movimento de sua própria projeção  e, por essa via, sujeita a uma interpretação interessada em atingir seu sentido histórico universal. 

 

Reconstruções da pesquisa crítico-interpretativa (1969-1999)

  Partindo das contribuições acima examinadas, estruturadoras do que se poderia chamar  de seu marco paradigmático, pode-se passar ao comentário de trabalhos que corresponderiam ao processo de normalização da pesquisa social crítica histórica e dialética no campo de estudos da comunicação. O propósito é explicitar seu potencial epistêmico e sua estruturação metodológica, tomando em consideração trabalhos publicados no período entre 1969 e 1999.

 The American myth of success (1969), de Richard Weiss, está entre os primeiros  exemplos de prática da ciência social crítica orientada historicamente nesse território. A principal chave metódica com que trabalha o autor é o que denominamos noutro lugar de racionalismo histórico. A recapitulação da maneira como a literatura popular vem articulando a crença norte-americana no sucesso individual não passa por alto as circunstâncias históricas de ordem econômica e social que definem sua fortuna, assim como seu sentido no contexto da história universal. A perspectiva é esclarecida no sentido em que se percebe nesse material um processo ambíguo: considerado como descrição da realidade, fomenta o conformismo; considerado como prescrição, eventualmente impulsiona uma atitude reformista.

 [Por um lado], a doutrina do poder da mente, conferindo ênfase exclusiva nos fatores subjetivos como causa e cura dos problemas humanos, possui implicações políticas conservadoras. Promovendo a ilusão de poder individual ilimitado, a ideologia do sucesso obscurece certas realidades sociais e assim serve de elemento estabilizador da ordem estabelecida. Por outro lado, alguns de seus ensinamentos também podem encorajar tendências reformistas: ela é totalmente democrática, nega a existência de quaisquer elites naturais e exalta a igualdade de todos os indivíduos como criaturas de Deus. (Weiss, 1969: 233)

 Considerando que a história do último século tem se caracterizado por uma despersonalização das relações sociais e mercantis, por meio da crescente mecanização das atividades produtivas e econômicas, pode-se entender seu apelo junto às massas como uma resposta à crise do individualismo que acompanhou a montagem do moderno sistema industrial nos Estados Unidos. A crença de que a prática da auto-ajuda, via emprego do poder da mente, podia conduzir ao sucesso material, conforme propagada pela mídia, sustenta-se objetivamente no crescente aumento da produção da riqueza, ocorrido naquele país desde o final do século XIX.

 "A estabilidade da nova ordem exigiu alguns meios de reconciliar o ideal da liberdade individual com as realidades da sociedade estruturada de acordo com padrões corporativos". O agenciamento de um mito do sucesso "forneceu um construto ideológico que permitiu aos integrantes da nova sociedade de massas conservarem  pelo menos a ilusão de independência" (p. 13).

 A promoção do culto do sucesso pela indústria cultural não pode ser entendida sem a trajetória percorrida pelo individualismo ocidental, esboçada em suas grandes linhas de maneira muito apropriada pelo autor, ao fazer remontar as origens da literatura por ele analisada à época do Renascimento. A concepção de sucesso que ela agenciou é expressão, primeiro, das estruturas pré-industriais e, em seguida, da sua subsunção, muito alterada,  às estruturas corporativas surgidas com o desenvolvimento capitalista no século XX.

 O Industrialismo fomentou o surgimento de uma visão de mundo naturalista, que entrou em choque com as noções teológicas tradicionais, que viam o universo de modo moral e finalístico. A máquina ameaçava eclipsar o indivíduo enquanto a ciência parecia querer negar a centralidade do homem dentro do esquema cósmico das coisas. Mudanças como essas, mundanas e intelectuais, romperam o prisma psíquico através do qual os homens concebiam e estruturavam a realidade. [...] Em virtude disso surgiu uma demanda por uma nova filosofia de vida, que pudesse melhor interpretar a experiência e ao mesmo tempo satisfazer os anseios mais profundos do espírito humano. Requeria-se um novo pensamento para fazer frente às exigências inspiracionais de uma nova época. (p. 129-130)

 Lidando com problemas básicos, com os quais se defronta o indivíduo moderno,  a literatura inspiracional representaria, pois, uma tentativa de reconciliar a crença na sua capacidade criadora, sobretudo na livre-empresa, com processos coletivos que, embora por ela impelidos, tenderiam a esvaziá-la de conteúdo concreto, ao determinar uma mudança nos padrões do processo civilizatório.

  A pesquisa em juízo revela-se, assim, portadora de uma abordagem em que, metodologicamente falando,  pretende-se estudar um fenômeno cultural de massas, levando em conta suas mudanças estruturais de significado a longo prazo e em relação a um contexto mais amplo de caráter político e econômico.

 Richard Weiss examina os materiais em seu conteúdo imanente, tentando  decifrar seu sentido para os sujeitos que os consumiam por meio da inserção de ambos (textos e leitores) em um processo histórico universal. O cuidado principal é não perder de vista a multiplicidade de relações por eles tecida, sobretudo suas contradições mais significativas, ainda que não se hesite em propor uma interpretação de conjunto de seu movimento. A perspectiva mais abrangente do trabalho parece ser  a de uma análise das transações entre as transformações na estrutura econômica e social e as mudanças de sentido das formas culturais em que se encarnou popularmente e, em parte, ainda é  vivido o moderno mito do sucesso entre os norte-americanos.    

 Acento ainda mais monográfico de estudo feito nessa direção pode ser encontrado pelo leitor interessado em Captains of consciousness (1976). Stuart Ewen procura mostrar neste e noutros estudos como e por que o consumo se tornou a relação social dominante nos Estados Unidos. A estratégia de investigação baseia-se na hipótese de que a prática da indústria cultural foi uma resposta aos movimentos de contestação do moderno sistema fabril e às necessidades econômicas surgidas com as mudanças ocorridas no capitalismo.

 O aparecimento da cultura de mercado, noutros termos, deve ser visto como resultado de uma série de estratégias que tinham como objetivo viabilizar o aumento da produção, possibilitado pelo desenvolvimento tecnológico, e desorganizar os movimentos sociais que lhe opuseram resistência. A cultura comercial concebida no período em seguida ao primeiro conflito mundial pelos publicistas norte-americanos foi uma maneira de responder às demandas populares  por um modo de vida mais rico e significativo, conservando intacta a estrutura de poder vigente na sociedade. 

  Para Ewen, o capitalismo corporativo sobreviveu porque soube aceitar e colocar a seu serviço a revolta da natureza subjugada tecnicamente e o desejo por ter um eu não-alienado, revelado pelas massas. A transformação dos valores mercantis e bens de consumo em critério de verdade da própria vida do homem moderno não se deu espontaneamente. A publicidade foi responsável pela criação das técnicas que viabilizaram a articulação de uma  nova estratégia de subjetivação.

 Resumidamente, a ascensão da publicidade e do consumismo nos anos 1920 foi parte de uma mudança mais ampla no caráter da sociedade capitalista. A propaganda comercial não atuou como determinante da mudança,  mas em vários modos foi ao mesmo tempo um reflexo e um agente dessa transformação. A publicidade levantou a bandeira da democracia social consumista em um mundo onde o monumental desenvolvimento das corporações estava eclipsando e redefinindo muito do espaço no qual as alternativas críticas podiam se desenvolver efetivamente. (Ewen, 1976: 190)

 Na virada do século, colocou-se ao capitalismo americano o problema não só de controlar socialmente as modernas massas urbanas, formadas sobretudo de imigrantes, mas de torná-las úteis ao sistema. Aconteceu então que a produção em massa para o mercado começou a ser entendida como meio de fornecer uma forma neutralizada de ideologia da mudança social, já que, causando somente impacto cosmético, não teria condições de efetuar mudanças significativas nas relações entre os assalariados e a estrutura corporativa capitalista.

 Na conjuntura, o fordismo permitira passar a outro patamar de acumulação.  Todavia era preciso ajustar as pessoas ao novo sistema. O problema, em resumo, consistia em descobrir uma forma de, ao mesmo tempo, controlar as rebeldias da força de trabalho e viabilizar a produção em grande escala.

 Acompanhando a pesquisa de Ewen, ficamos sabendo que  o consumismo só se desenvolveu realmente após a II Guerra. Entretanto, suas condições de possibilidade foram gestadas em sua maior parte na década de 1920. A população americana estava preparada para vivê-lo bem antes dele ser implantado, quando enfim  "as comunicações e as indústrias da moda e do design, mediante a produção e distribuição de imagens, [aparentemente] reconciliaram as vastas demandas nacionais por uma vida melhor com as prioridades gerais do capitalismo corporativo" (Ewen & Ewen, 1982: 37).

 Segundo ele, a proeminência adquirida pela publicidade nesse processo provém do fato de ter criado os meios capazes de responder a essa problemática.  A exigência central surgida nas primeiras décadas do século, como vimos, era controlar as massas revoltosas e viabilizar o consumo exigido pelo novo sistema de produção. A solução proposta foi a criação de uma cultura comercial capaz de converter esse processo de revolta em mercado. Entendeu-se que as comunicações poderiam ser colocadas a serviço de um programa de mudança dos hábitos e costumes que, ao passar à prática, não afetasse as  estruturas de dominação.  O consumismo não somente deveria se tornar o verdadeiro conteúdo da democracia política, como ser a matriz do bem-estar social, em vez do socialismo.

 Baseando-se em extensa pesquisa documental, o pesquisador procura sustentar, assim, a tese de que a cultura de consumo foi, em parte, produto de uma ação planejada, mas sem um sujeito, porque surgida da conexão de interesses muito variados. O fenômeno resultou da convergência de projetos de ação social heterogêneos, concebidos e postos em prática pela classe empresarial, profissionais de mídia, homens públicos e até mesmo ativistas radicais, embora somente vários anos mais  tarde eles tenham se concretizado.

 O consumismo não se desenvolveu de maneira espontânea: a revolta da natureza, produzida pela crescente sujeição interna e externa e levada a cabo pelo racionalismo industrial, foi agenciada estrategicamente, via o ataque aos velhos costumes, a promoção mercantil da mulher e a contestação do patriarcado tradicional. Significa que sua formação está ligada a planos de ação que foram concebidos em meio a uma série de exigências econômicas, confrontos fabris, protestos de rua e projetos de reforma social.

 A publicidade não criou o fenômeno, mas foi um elemento importante, que permitiu a convergência do interesse em domesticar os trabalhadores com a necessidade de aumentar as vendas, requerida pelo aumento da produtividade. Em síntese, o trabalho realizado em suas oficinas auxiliou a viabilizar os projetos de reforma da sociedade, de acordo com os quais dever-se-ia "criar uma organização alternativa da vida que pudesse servir para canalizar o desejo humano por ser um eu para o lazer e o sucesso social, ao invés de deixá-lo voltado para si mesmo e o próprio trabalho; pudesse, enfim, fazer com que esse desejo coincidisse com a aceitação da marcha mercantil da civilização" (Ewen, 1976: 48).

 Precisaríamos estender muito esse exame para demonstrar de que modo a pesquisa do autor conjuga criticismo cultural e ciência social crítica e, assim, compõe um estudo de indústria cultural em que se sugere que essa pode servir, entre outras funções, para, via consumo de bens no mercado, inserir a "divisão entre o verdadeiro e o falso na maneira como os homens se dirigem, se governam e conduzem a si  mesmos e aos demais" (Foucault, 1982: 71). A tarefa nos exigiria, entre outros, um esforço para ressaltar os elementos que, reforçando as linhas de fuga do programa de pesquisa sob análise, prenunciam nela uma síntese brilhante e única entre a abordagem genealógica foucauldiana e a teoria crítica da sociedade da Escola de Frankfurt (McCarthy, 1992: 51-85; Hoy, 1988: 139-165; McCarthy & Hoy, 1994). 

  Parece-nos mais conveniente antes prosseguir com a casuística aqui proposta, referindo-nos ao estudo de Schudson sobre a origem da forma notícia na imprensa americana (Making the news, 1978).  O trabalho estuda como surgiram essa forma e a idéia de objetividade, relacionando os fatos com os processos de expansão da economia de mercado, democratização da vida política e ascensão das camadas médias urbanas durante o século XIX.  A Associated Press (1848) valeu-se da invenção do telégrafo para criar um serviço de venda de notícias que encontrou na forma do relato objetivo de fatos a forma de viabilizar sua negociação  com os clientes de diferentes afiliações políticas, sendo pois uma força que pautou o processo. Ainda no começo do século seguinte, era pouco comum ver uma diferença entre fatos e valores na maior parte da imprensa norte-americana. A crença dominante entre os homens de imprensa era que os fatos podiam ser registrados pela consciência, como realmente eram, e apenas a má-fé podia distorcê-los. O emprego de técnicas para assegurar objetividade não era algo pensado em ser adotado como doutrina da atividade.

  Durante a I Guerra Mundial, ocorreu que essa crença se modificou. A propaganda e as relações públicas convenceram o público pensador de cultura de que a realidade tal como os jornalistas a retratavam estava sujeita a influências que distorciam sua percepção. A circunstância encorajou os jornalistas a substituírem a crença empirista no registro dos fatos por uma série de técnicas e processos para descrevê-los objetivamente, conforme  definidos pela sua comunidade profissional.

 Inicialmente, a pesquisa relata a situação da atividade jornalística em meados do século XIX e como ocorreu nela uma revolução comercial, com a invenção da imprensa barata e acessível às multidões. As reformas democráticas em curso e o crescimento da população urbana levaram em muitas cidades ao aparecimento de jornais com princípios de organização econômica e atitude política mais favoráveis ao desenvolvimento do espírito jornalístico.

 Para o autor,  a imprensa de um centavo inventou "o conceito moderno de notícia".

Pode-se dizer que pela primeira vez os jornais refletiram não apenas  o comércio ou a vida social e política ... mas as atividades de uma sociedade de classe média urbana e variada, baseada no comércio, transporte e  manufatura .... passando a  imprimir relatos da política, das cortes, das ruas e dos domicílios. (Schudson, 1978: 22-23)

  A explicação para esse invento passa pela revisão das várias hipóteses defendidas sobre o assunto, com o objetivo de pôr de lado a hipótese da "história natural", segundo a qual o processo foi resultado da pura e simples evolução do jornalismo. Schudson mostra não só como os desenvolvimentos tecnológicos e da instrução, mas sobretudo como "a democratização dos negócios e da política" foram chave para o surgimento da revolução ocorrida no jornalismo durante a década de 1830 (p. 49). O processo significou uma ruptura com a cultura política de elite, mediado que foi pela emergência da sociedade democrática de mercado. Os jornais baratos expressaram e ajudaram a construir a cultura de uma sociedade de mercado democrática.

Continuaram existindo jornais de negócio, de partido, socialistas e trabalhistas, mas os jornais nos quais o jornalismo moderno claramente encontra suas raízes foram as folhas baratas de classe média. Essas folhas, independentes de preferência política, foram porta-vozes dos ideais igualitários na vida política, econômica e social, através de suas técnicas de venda, exigência de publicidade, ênfase nas notícias, direcionamento para o grande público e crescente desinteresse para com os editoriais. (p. 60)

 Schudson defende que os responsáveis por esse processo foram os repórteres. Até então os jornalistas eram sobretudo redatores. Durante as últimas décadas do século XIX, surgiu um conceito de repórter novo, bastante influenciado pelo empirismo em vigor no pensamento científico, embora o nexo não seja deixado claro. A preocupação era retratar os fatos de maneira tão viva quanto possível. O conflito entre repórteres objetivos e editores cínicos, que muitos apontam, é, em última instância, mítico (p. 84). Os conflitos entre as partes eram superficiais, pois o voluntarismo e o sentimento moral que os últimos acusavam nos primeiros convergiam com o oportunismo e o pragmatismo acusados pelos repórteres nos editores.

Aceitava-se em comum que os fatos forneceriam a direção moral para eles e eles todos orgulham-se do fato de que seus preceitos morais cresciam naturalmente de sua associação com o mundo real. (p. 87)

 O trabalho nota que nessa época houve uma bifurcação entre dois tipos de jornalismo, pois se a reportagem buscava os fatos em contato com a realidade vivida, havia outros jornais que submeteram os mesmos à idéia de informação. A explicação é que há uma conexão entre as classes médias educadas e a informação, assim como há entre as camadas populares e o ideal de acompanhar  uma história com valor de consumo e orientação cotidiana universal. Estudando como casos exemplares o New York World (Pulitzer) e o Times (Hearst), Schudson procura mostrar que sua diferença não estava tanto na objetividade do último, pois esta não era ainda um tópico relevante mas, antes,  nos critérios de gosto que distinguiam seus respectivos leitores majoritários.

O Times escrevia para a pessoa racional ou a pessoa cuja vida era ordenada. Apresentava artigos como conhecimento útil, não como revelação. O World tinha um sentimento diferente em relação ao ponto: em tom e forma criava o sentimento de que tudo era novo, incomum e imprevisível. (p. 119)    

 Os estilos refletiam a maneira como tendia a se estruturar a experiência dos seus respectivos públicos, mas sendo a informação ou a sensação o que buscavam, não estava em questão o problema da objetividade. O problema não era o eventual subjetivismo da perspectiva jornalística empregada por um ou outro veiculo. A preocupação com a objetividade surgiu, segundo o autor, não como desenvolvimento do empirismo, mas como uma reação à crescente desconfiança para com ele no âmbito de uma sociedade democrática. A separação entre fatos e valores é produto da consciência de que os primeiros estão sujeitos à manipulação e, portanto, a um crescente ceticismo em relação a sua pura e simples transcrição, relato ou registro.

 Exagera certamente o autor porque seu texto não mostra a convergência dos processos. Fazendo notar como o processo foi pensado pelos teóricos e pela literatura, o pesquisador sugere como as transformações econômicas, políticas e sociais verificadas nas primeiras décadas do século passado fizeram com que  vastos setores do público passassem a ser vistos como massas (de eleitores e consumidores).

Os segmentos profissionalizados da sociedade agora tomam a opinião pública por irracional e, portanto, como algo a ser estudado, dirigido, manipulado e controlado [através das comunicações]. (p. 129)

  A resposta da imprensa a essa situação foi ambivalente, porque se, por um lado, o contexto estimulou essa visão, por outro, permitiu-lhe perceber que ela atingia as bases de seu negócio, convertendo as notícias e reportagens em artefatos antes que relatos dos fatos. O crescimento da percepção social sobre o impacto da propaganda militar e ideológica, tanto quanto do papel das relações públicas junto ao trabalho da imprensa, ensejaram várias respostas, como o aparecimento do  colunismo e de matérias abertamente interpretativas nos jornais dirigidos ao público instruído e mais informado.

 A resposta principal e mais geral foi fruto de uma composição entre esses entendimentos.

Os repórteres em geral ainda necessitavam crer no valor de seu melhor trabalho, que era o de colher e expor os fatos, precisando de um referencial dentro do qual pudessem fazer seu trabalho seriamente e persuadir seus leitores a tomá-lo do mesmo modo: é isso que a noção de objetividade, tal como foi elaborada nos anos 1920, tentou fornecer. (p. 151)

 Embora a democracia e o mercado continuassem a se expandir, as condições em que isso passou a ocorrer fizeram com que a confiança nessas instituições, nas pessoas que as formam, mas também na própria visão do mundo que formavam,  começasse a soçobrar. Os jornalistas acabaram construindo um código profissional, baseado nas técnicas asseguradoras da objetividade, em reação a essa sensação e como modo de legitimar seu trabalho.

Certamente a objetividade como um ideal tem sido e ainda é usada, sem engenhosidade, como camuflagem para os poderosos, mas sua fonte repousa mais fundo, não na necessidade de encobrir a autoridade ou o privilégio, mas no desapontamento com o modo de ver moderno. (p. 159)

  Destarte, o estudo logra passar para um estágio reflexivo de escopo, bem maior do que aquele em que estão os que se contentam em apenas criticar a manipulação jornalística e a ideologia da objetividade, sem perder seus avanços epistêmicos.  As práticas que lhes dão origem são situadas em um processo mais amplo, descortinando por esse meio uma contradição mais profunda, todavia movida por expedientes políticos e empresariais imediatistas como os assinalados. 

 Robert Castel desenvolve, ao contrário,  uma série de pesquisas que pode ser vista retrospectivamente como uma reflexão crítica e histórica (genealógica) sobre  a formação da moderna cultura psicológica de massas (1976; 1979; 1981). Deixando de lado as origens do processo (1976) e os termos comparativos em que se perfila a análise (1979), verifica-se que em nosso tempo os encargos disciplinares que a psiquiatria havia tomado para si desde os primórdios da sociedade burguesa foram suplantados pelo agenciamento de uma cultura psicológica, que tende a fazer do autocentramento do sujeito em seus próprios desejos, problemas e circunstâncias a consumação do seu ser social e de sua individualidade  (1981).

 O Ocidente passou por uma série de mudanças estruturais que conduziram a uma privatização do espaço público, à ruptura das formas familiares e à intensificação das relações íntimas, ao retirar do alcance dos sujeitos sociais a possibilidade de interferirem nas decisões políticas (1981: 167), promovendo um centramento do sujeito sobre si mesmo em que o cuidado de si tende a se tornar um itinerário obrigatório. A crescente alienação dos mecanismos de participação política, a estruturação da vida empresarial  e o fomento mercantil à privatização do modo de vida levam a que o eu passe a ocupar o lugar do social. A transformação da estrutura social em curso faz

por um lado, com que um número crescente de pessoas se encontre em ruptura, provisória ou definitiva, com as estruturas integradoras clássicas e seja conduzido a construir formas novas de sociabilidade. Por outro lado, mesmo para aqueles que permanecem no seio das estruturas familiares, de vizinhança, de emprego, observa-se uma evolução interna nesses grupos de participação que [os faz se tornarem] pequenas unidades relacionais autogeradas. (p. 157)

 Contrariamente a Nikolas Rose (1996), preocupa e interessa ao autor saber porque os seres humanos vêm sendo incitados a elaborar definições morais e regular sua conduta de acordo com códigos e noções de ordem parapsicológica. Em síntese, ocorreria que o crescimento econômico criou para as camadas médias condições materiais de vida satisfatórias, mas frustrantes no plano moral e das relações interpessoais.

O capitalismo americano é sem dúvida o que estabeleceu mais longe e de maneira mais impiedosa o império das exigências de rendimento, de eficácia e de racionalidade tecnológica, com as conseqüências que se costuma saber sobre a vida ou, melhor, a ausência de vida pessoal e interpessoal. A procura desesperada por espontaneidade, por relação humana autêntica e por livre expressão dos sentimentos é, imediatamente,  uma reação ao universo gélido do trabalho sem prazer e da burocracia. (1979: 322)

 Segundo aquele, o sujeito moderno surge por meio de um processo em que intervêm técnicos e mecanismos de procura,  não sendo colonizado por relações de poder e dominação (Rose, 1996: 79). Para esse, as empresas, famílias e outras instituições se deixaram colonizar ou foram buscar nas práticas e na linguagem psicológica, por mais degradada que apareça, uma fórmula de enfrentamento dos seus problemas e desafios, que é cada vez mais mediada pelas comunicações de massas.

 "As tecnologias modernas de controle se inscrevem nas estruturas de poder da sociedade" no sentido de que, seguindo o modelo americano, se sustentam "em um mercado que obedece às leis da oferta e da procura sob  o regime de livre concorrência" (1979: 356-357).

 A conjuntura ensejou  a procura por uma verdade e uma forma de agenciamento individual, que têm resposta não apenas no crescimento do mercado de serviços e técnicas psi, mas na sua difusão como bem de consumo cultural via os meios de comunicação. Em geral, "elas promovem uma visão do homem pela qual ele mesmo se concebe como um possuidor de uma espécie de capital (seu 'potencial'), que se gere para dele extrair uma mais-valia de gozo e de capacidades relacionais" (1981: 146).

 A sociabilidade que se articula por esse processo conjunto funda-se em uma cultura relacional, sustentada na formação de certo ethos, que promove uma série de efeitos em que já não está em jogo o poder disciplinar, surgido nos primórdios da era burguesa, mas uma forma de poder baseada no engajamento voluntário da pessoa e cuja estratégia central "consiste em mobilizar os indivíduos submetidos às imposições para que tomem eles mesmos o encargo da exigência de regulá-las" (p. 177).     

 "Através das terapias para normais, a totalidade das dimensões da experiência humana, independente de qualquer referência ao patológico, torna-se objeto de manipulação tecnológica. [...] Doravante -  pretende-se  - sou eu o engenheiro de meus próprios estados d'alma, que devo fazer funcionar a usina de meu corpo produtor de sensações inefáveis", conclui La societé psychiatrique avancée (1979: 346).

 Castel falha, cremos, ao deixar de sublinhar como esse processo não apenas rebenta, mas é agenciado pelo sujeito sob  condições determinadas, ainda que toda a sua análise seja feita no sentido de nos levar a perceber o quanto somos  seus cúmplices semiconscientes.  A exposição sugere como e por que somos levados a substituir os critérios políticos e práticas de identificação, baseados na idéia de cidadania. Apenas nota, porém, como o fenômeno é vivenciado e articulado pelos seus vários sujeitos, deixando de explorar suas contradições e potencialidades históricas.     

  Interessada em entender como emergiram os mitos que identificam poder com consumo, tanto quanto os sistemas econômicos e políticos que os sustentam,  Susan Douglas escapa desse constrangimento e desenvolve em Inventing American Broadcasting uma abordagem crítica em que se "procura integrar história econômica, biografia individual e história da tecnologia com uma perspectiva crítica sobre o modo como certas idéias e sistemas de crença se tornam dominantes", já que esse parece ser o melhor modo de "reconstruir e analisar as conexões entre a tecnologia e ideologia e, assim, entre a formação e a manutenção do poder [numa sociedade]" (1987: 322).

 

 A pesquisadora observa que "a forma como o rádio foi de início usado e a maneira pela qual foi retratado refletiram as transformações econômicas e culturais mais amplas que apanharam os Estados Unidos na virada para o século XX" (p. xxi). Nessa época, tornou-se decisiva a influência da comunidade de negócios, devido à concentração do poder econômico no país. As concepções empresariais e as formas ideológicas vigentes tiveram de passar por um período de adaptação. O desenvolvimento tecnológico passou a ser celebrado  pelos meios de comunicação como mola do progresso e expressão da criatividade individual.

 O período de criação do rádio coincide com o do casamento ou convergência entre entretenimento e tecnologia, promovido pela imprensa de massas. O objetivo de sua pesquisa é saber como essas mudanças estruturais determinaram a transformação do telegrafo sem fio em rádio.

O rádio foi tragado pelos conflitos da época, seus aspectos técnicos e corporativos cada vez mais interligados com os interesses das maiores instituições privadas e governamentais. Porém também havia uma influência reciproca dinâmica e importante entre as estratégias institucionais e as aplicações individuais. Os inventores individuais interagiram com as corporações, o  governo e a imprensa; e os operadores amadores construíam seus próprios esquemas de significação em volta do rádio; de modo que com ambos também tinham de se haver essas instituições. A imprensa mediou essas interações simbolicamente e assim deu voz a certas idéias enquanto silenciava a respeito de outras [por ser parte interessada]. (p. xxvii)

  Nos primeiros capítulos, apresentam-se os principais introdutores da invenção e como as disputas que os envolveram foram acompanhadas e conduzidas de acordo com certos interesses da imprensa de massas num contexto cultural mais amplo, marcado pela presença dos valores individualistas. Marconi teria triunfado com o apoio da imprensa, do crescente número de investidores em ações  e  dos pequenos inventores independentes, que viram nas suas propostas de exploração do sistema uma série de vantagens comerciais (barateamento dos custos com telegrafia), monetárias (rendimentos acionários) e econômico-tecnológicas (possibilidade de desenvolver novos inventos e patentes).

A última coisa que eles todos queriam era que o governo adquirisse controle sobre tal invento e restringisse seus benefícios às aplicações militares [como desejava a Marinha por razões geopolíticas e estratégicas]. (p. 142)

 Nesse contexto, havia surgido de fato, porém, uma série de operadores amadores, que passaram a desenvolver o invento à revelia das estratégias corporativas e dos interesses com que o acompanhavam a imprensa e o poder militar organizado. As transformações estruturais em curso exacerbaram as representações individualistas da cultura, celebradas pela imprensa, onde quer que pudessem ser confeccionadas. Marconi foi tão promovido quanto dezenas de pretensos prodígios que, embalados pelas concepções democráticas,  espírito tecnológico e mito do sucesso em voga, desenvolviam seu invento em direções totalmente opostas e que transformariam, todavia não por suas mãos, "o rádio em veículo através do qual a cultura popular seria inscrita na comunicação elétrica e acabaria trazido de modo mais direto e intenso para dentro dos lares como jamais tinha sido anteriormente" (p. 194).

 A crescente presença de amadores conectou milhares de cidadãos em uma rede espontânea, movida pela comunidade de interesses, pelo prazer de se divertir e pela vontade de estender seus contatos. Incentivavam-na a imprensa e a difusão de um imaginário que os via como a classe realmente preparada para fazer frente aos novos desafios da sociedade moderna. O processo, todavia, não foi pacífico. O congestionamento do espaço de transmissão começou logo a provocar problemas de interferência e, assim, a causar transtornos à navegação da marinha mercante e às autoridades navais  da Marinha (p. 207). O resultado foi a necessidade de intervenção governamental, que resultou na regulamentação da radiodifusão, seguindo um modelo que,  sem conter a expansão do amadorismo, preservou os interesses da Marinha americana, mas sobretudo das grandes corporações (Radio Act de 1912).

  Esclarecendo como seus interesses acabaram convergindo no período posterior a I Guerra, a pesquisadora também demonstra que só tardiamente  e de maneira indireta, no princípio, as últimas encontraram na radiodifusão não apenas uma forma de ampliar seus negócios, vendendo seus equipamentos para domicílios particulares, mas de explorar mercantilmente a atividade cultural. A prática amadorística independente aos poucos abriu caminho para a transmissão e recepção de programas musicais, noticiosos, políticos e educativos, que despertou o interesse das megacompanhias. Por volta de 1920, tornou-se claro para seus dirigentes que essas práticas eram apenas a ponta-de-lança de um processo que poderia converter os aparelhos receptores de rádio em extenso mercado, mas que para tanto seria preciso assumir o controle das emissoras e ordenar seu sistema de transmissão.

 Conforme um padrão que hoje vinga em relação à Internet, predominava entre o público a consciência de que a radiodifusão poderia fazer nada mais nada menos do que "reviver os valores republicanos originais e, através do poder da tecnologia, restaurar seu primado numa era de capitalismo monopolista" (p. 321). Amparado em respeitável e entusiasmado movimento popular, que, mediado pela  imprensa, o via como elemento tecnológico democratizador, nivelador das diferenças de classe, promotor de aproximação entre a cidadania e a vida política e estimulador da educação pública, "o rádio todavia tinha assim começado a se estruturar dentro do sistema mais amplo do entretenimento comercial norte-americano" (p. 309).     

  A contribuição que o exame do texto permite relevar é, pois, a forma como o processo histórico precisa ser considerado como podendo ser ao mesmo tempo estruturado e irônico. A concomitância de dois processos sociais distintos envolvendo o mesmo meio de comunicação ocorreu sob o pano de fundo comum, representado pela concentração do poder econômico americano. O resultado é que, embora suas circunstâncias imediatas fossem diversas, sua eventual convergência era não apenas possível como viável. A apropriação do rádio pelas corporações foi facilitada não apenas pela possibilidade de explorar comercialmente o negócio da venda de aparelhos, mas as esperanças utópicas que o radioamadorismo estava convertendo em  sistema tecnológico de comunicação societária. 

   Kellner trabalha a televisão americana com um modelo em que se compõem os planos do poder político, do conflito social e dos antagonismos estruturais no capitalismo. A concepção segundo a qual aquela seria o veículo ideológico dos vários interesses da classe dominante é descartada. Deseja-se manter uma perspectiva em que "os aspectos progressistas e democráticos da mídia sejam distinguíveis dos negativos e opressivos". Conservam-se em vista "as forças dominantes e aquelas que prefiguram ou combatem por uma melhor sociedade". Em suma, empreende-se uma "reflexão crítica da mídia capitalista", com o objetivo  de  propor "alternativas capazes de levar a um sistema de comunicação mais progressista" (1990: 182).

 A heterogeneidade e os conflitos sociais  intervêm em sua atividade, que tenta assim  "resolver ou obscurecer o conflito e impor agendas específicas aos círculos da classe dirigente que ela compartilha" (p. 20). O entendimento da televisão como veículo da indústria cultural em chave frankfurtiana é operacionalizado por meio da explicitação das  matrizes econômicas, políticas e sociais que estruturam seus produtos em perspectiva histórica.

 Destarte, o estudo reconstitui as linhas gerais do desenvolvimento histórico da televisão no país e a forma como as forças econômicas e políticas modelaram um sistema de radiodifusão comercial, das origens à atualidade (p. 25-70). Em seguida, examina-se como o capitalismo determina seu funcionamento, explicitando as estratégias e métodos que caracterizam suas formas de organização e conteúdos mas também os conflitos políticos que emergem entre ela e vários setores políticos e sociais, incluindo os governos (p. 71-132). Enfim, concentra-se a análise em saber como os republicanos se impuseram ao sistema e como ele apoiou a hegemonia neoconservadora nos anos 1980. A convergência extremamente afinada entre os interesses da classe dominante no período refletiu-se na ação televisual, conforme o autor procura mostrar, detendo-se no exame do papel da televisão nas eleições de 1988 (p. 148-161).

A tomada das redes de televisão por vastos conglomerados empresariais e o declínio do aparato regulador federal com que está associada comprometeram a mídia ... provocando uma dramática mudança na balança de poder entre as principiais instituições do país. (p. 174)

  A perspectiva de fundo é tentar demonstrar como na conjuntura em foco a crise da democracia política americana, conforme construída pelo raciocínio do autor, é dramatizada publicamente e ao mesmo tempo encarnada pelo que ocorre com e na televisão. A excepcionalidade do trabalho residiria, porém, na proposição de um sistema ou modelo alternativo de comunicação, baseado nos princípios de acesso democrático, variedade de conteúdo e diversidade de opiniões.

 Objetiva-se com a pesquisa fundar um trabalho educativo, baseado no exame das condições necessárias, para, em tese, promover um esclarecimento entre as populações sujeitas à opressão e, no limite, a superação daquelas adversas à condução de um modo de vida mais livre, mediante uma reflexão sobre as mudanças que os virtuais interessados teriam de pensar em fazer na estrutura da sociedade (Fay, 1987: 31-32).

 A exploração das brechas e contradições do sistema comercial, o aprofundamento e a ampliação do potencial existente no sistema público e as possibilidades de intervenção contidas nas novas tecnologias de informação são apenas alguns caminhos apontados "para se produzir um novo tipo de comunicação política, fora dos circuitos de distribuição controlados pelo aparato estatal ou pelas empresas de radiodifusão" (Kellner, 1990: 221).   

 Digital sensations (1999), de Ken Hillis, merece ser comentado como último exemplo de aplicação de uma abordagem crítica, histórica e dialética ao campo de estudos da comunicação pela novidade de sua temática. Assim, a indicação de que também ela, com todo seu vanguardismo, igualmente pode ser investigada  a partir dessa perspectiva. O trabalho parte da idéia de que o ciberespaço é uma paisagem imaterial na qual se exercitam operações militares, transações mercantis e passatempos coletivos, além de lugar em que se projetam certas utopias, que prometem não apenas a renovação mas também o controle racional sobre o espaço social, o conhecimento coletivo e a identidade individual.

 Hillis procura ilustrar como o ciberespaço contém o projeto de simular um mundo e nele absorve o sujeito,  concretizando tecnicamente um imaginário utópico milenar. Queiramos ou não, veicula-se nele o desejo  de exorcizar as complexas e difíceis situações criadas pela realidade material do mundo histórico. O ciberespaço "não só sugere que uma existência ideal é a tecnologicamente mediada, mas continua e intensifica o projeto há muito tempo lançado de alterar, via tecnologia, a subjetividade e o significado sobre o que é ser humano" (1999: p. xvii).

 As tecnologias ensejam oportunidades de criação expressiva para o eu, mas não podem ser vistas fora do seu contexto concreto de posição na história (p. 178). A criação da realidade virtual corresponde a um projeto milenar de estender o controle técnico não apenas sobre a natureza e os outros, mas sobre o mundo como totalidade. A exploração dos caminhos seguidos pelas tecnologias e o exame de casos revelam que um de seus conteúdos comuns é o sonho de controle das condições de vida. Hillis não duvida que se possa desenvolver "tecnologias diferentes em relação ao modelo dominante do cyborg ora em construção", observando, porém, que qualquer esforço nesse sentido "precisa começar observando como o contexto de relações desiguais de poder influencia essa intenção e portanto que filosofias, ideologias e discursos se transformam em tecnologia e se naturalizam" (p. 191).

 O pesquisador  submete, nesse contexto,  à dura crítica os porta-vozes do pensamento de que por meio dessas técnicas se está promovendo a liberdade de expressão e o prazer dos sentidos, mostrando que o contexto de fundo proporcionador dessas experiências é, de imediato, militar e, no fundo, um sonho de controle sobre a existência. A utopia tecnocrática é desmistificada. O progresso técnico é visto como algo que se interconecta com nossas aspirações metafísicas. As tecnologias do virtual são movidas não apenas por um desejo de poder mas também por aspirações utópicas. No limite, elas legitimam a esquizofrenia como modelo de relação  social, mas antes "recriam um espaço simulado que, potencialmente, está totalmente aberto à vigilância, transmutação, revista e censura" (p. 196).

 As tecnologias informacionais estão investidas de uma série de mitos, como o de que o consumo de informação significa aquisição de conhecimento (p. 175), mas o pior é que nos fazem cúmplices de um projeto de disciplinamento pela máquina, forçando-nos a rever o relacionamento entre vigilância e prazer, já que sua relação passa a ser vista como dialética e não-oposicionista (p. 110).

A pergunta pela ética da virtualidade é portanto parte de um projeto crítico mais amplo, requerido para sustentar e propor argumentos racionais que possam vir a ajudar a resistir à tendência dominante no sentido de substituir várias partes do mundo da vida pela tecnologia. (p. xxiv)  

 Partindo da premissa de que os fatores históricos e sociais informam não apenas a estrutura, mas a idéia de tecnologia, a pesquisa inicia contando a história das tecnologias virtuais e como elas se conectam com o aparato militar e a indústria da diversão; como a imaginação literária fornece um elemento de ligação entre esses elementos para os empreendedores que a transformam num projeto mercantil: o ciberespaço. A modernidade é responsável pela transformação da tecnologia em um conjunto de práticas sociais, fundado num projeto econômico, político e militar, ao qual corresponde, porém, uma certo imaginário.

A popularidade que se observa atualmente em relação às tecnologias da realidade virtual reflete em parte a esperança das elites tecnocráticas de que essas máquinas possam representar, sob a forma mercantil, uma mediação comum na qual as fragmentadas subjetividades modernistas, enclausuradas mas altamente individualizadas, possam alcançar uma reunificação virtual com outros eus sem ter de se aventurar para a vida real, existente atrás das muralhas espaciais dessas comunidades protegidas. (p. 195)

 A retrospectiva desse imaginário conduz o autor aos projetos medievais de construção da Cidade de Deus, às fantasias e invenções da era barroca, aos sucessivos inventos dos primórdios da era moderna, até chegar aos artefatos tecnológicos contemporâneos. A tecnologia foi criada por "cientistas, designers e engenheiros que ajudaram a movê-la da idéia para a prática, para a porta do laboratório e, daí, para o fliperama, o hospital e a instituição de treinamento militar".  Também  não pode ser separada, contudo, da "crença [compartilhada por esses homens] de que a tecnologia é parte de um progresso inevitável em direção a um futuro no qual as doenças sociais serão tratáveis, senão curadas, por agendas tecnológicas" (p. 58).

 Depois de mostrar como se estrutura o espaço virtual, esclarecer os modelos em que ele posiciona nossa subjetividade e examinar como ele faz convergir conceitos originários de distintos campos sociais, chamando a atenção para o modo como nele se concretizam vários precedentes históricos, às vezes bastante longínquos, o trabalho conclui tentando argumentar como a manifestação dos desejos humanos que nele se inscrevem pode servir de porta de entrada ou avanço  de novas formas de poder, sem que se percebam todas as conseqüências.

 A legítima reação às adversidades da realidade  serve de pretexto para uma conversão da técnica em fim em si mesmo, de um modo que a torna um sucedâneo do sentido. O carnaval tecnomodernista torna-se fantasia de horror, ao se  perceber que os prazeres desfrutados no ciberespaço estão sob revista: "as ações podem ser registradas em padrões informáticos disponíveis para análise e se tornar a base para tomada de decisão daqueles que observam e registram o que ocorre no ciberespaço".  O capitalismo pode muito bem empregar, para seus próprios fins, programas como os desenvolvidos para as forças armadas, que "registram as performances, reações e decisões tomadas pelos recrutas com objetivo de controle e disciplina militar" (p. 209).

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 Concluindo, observa-se em termos gerais que, segundo essa linha de pesquisa, a comunicação precisa ser estudada como parte de um contexto: não se trata de perguntar o que a mídia faz com a gente nem o que a gente faz com a mídia mas como uma e outra se determinam reciprocamente como momentos de um mesmo movimento. A comunicação representa uma mediação, e isto significa que seu contexto não pode ser avaliado como algo em si mesmo, mas a partir da maneira como ele a estrutura e, em seguida,  é por ela articulado.

 As relações entre texto e contexto são, genericamente, de mediação de um pelo outro, precisando, no detalhe, ser examinadas como momentos formadores de um processo em que os sujeitos sociais  não apenas se constituem e, eventualmente, se modificam,  mas, também,  agem de forma conflituosa; isto é, simultaneamente, embora de maneira desigual, como forças conservadoras ou de transformação: só depois disso é que seria o caso, se necessário, de examinar suas várias direções possíveis (cognição, reflexo, influência, distorção, encobrimento, manipulação, etc.).

 Destarte, verificar-se-ia que, relativamente aos fenômenos de comunicação, as coerções que resultam de sua inserção em um contexto histórico estruturado determinam os agenciamentos de sentido dos sujeitos, tanto quanto as ações e idéias que eles por hipótese projetam além delas. Sobretudo, porém, tais fatos precisam ser objeto de um exame crítico, cujo ponto de apoio está nos conflitos e contradições ensejados na sociedade por esse processo em conjunto.

    

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