CIDADANIA E HIV/AIDS

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Zildene de Souza; Cristina Souza Barros; Cristiane Valeria da Silva Barcelo; Janete Luzia Leite.
Universidade Federal Fluminense (UFF); Organização de Direitos Humanos/Projeto Legal; Centro de Referência de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil;  Universidade Federal do Rio de Janeiro/ESS.
 

 

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APRESENTAÇÃO

Para compreendermos melhor a questão do acesso à justiça das pessoas portadoras do HIV/AIDS, procedemos a uma análise teórica sobre a Cidadania e sua relação com o impacto socioeconômico da pandemia do HIV/AIDS. Isto porque, na contemporaneidade, é o conceito de Cidadania que transforma os indivíduos em sujeitos de direitos.

Com a vaga neoliberal que hoje se espraia mundialmente, temos na América Latina – e em particular, no Brasil – um dos exemplos mais perversos do corte de direitos, notadamente os sociais.

Se tomarmos a pandemia do HIV/AIDS como exemplo, pode-se facilmente prever que o atual cenário irá colocar desafios de grande magnitude para o Serviço Social.

A partir destas reflexões, procedemos a uma investigação visando elencar os principais motivos que levam as pessoas com HIV/AIDS a moverem processos na Justiça. O estudo foi desenvolvido no Departamento Jurídico de uma ONG/AIDS, analisando todos os processos movidos entre janeiro de 1990 e julho de 1999, comparando-os com a Legislação Brasileira e a Legislação específica para HIV/AIDS, tida como uma das mais progressistas do mundo.

Concluímos que, malgrado o caráter inovador de nossa Legislação, a mesma não se efetiva na prática. Uma vez que a maior parte das pessoas infectadas pelo HIV e/ou com AIDS em nosso país advém dos segmentos mais pauperizados da população, o Serviço Social tem aí uma grande tarefa, qual seja a de promover a informação e a lutar, não só pela manutenção dos direitos já conquistados, como também de estendê-los a todo e qualquer cidadão.

 

CIDADANIA

No século XX, T. H. Marshall (1967) surge como o primeiro autor a analisar a questão da cidadania em uma sociedade de classes. Segundo ele, a cidadania moderna desenvolveu-se a partir de três elementos: o direito civil, o direito político e o direito social. Se o reconhecimento desses três direitos fosse alcançado, a sociedade de classes conseguiria conviver com o paradoxo formado pela igualdade de direitos e pela desigualdade do mercado.

Para Marshall, os direitos de cidadania não estão desvinculados do surgimento do capitalismo. Ele acreditava que, embora a cidadania gere a igualdade e o sistema capitalista a desigualdade, ambos conseguiriam conviver.

Na concepção de Marshall, os direitos surgiram em épocas diferentes, seguindo uma evolução natural no seu desenvolvimento. O direito civil é a primeira expressão da cidadania e surge no século XVIII, constituindo-se no direito de ir e vir, direito ao trabalho, direito à propriedade e o direito à justiça, pois é através da justiça que os homens têm acesso aos demais direitos.

Com a consolidação do processo de industrialização no século XVIII, os trabalhadores começaram a se organizar. É justamente através desse movimento que, a partir do século XIX, há a organização de sindicatos, o que representa a primeira expressão dos direitos políticos com o objetivo de lutar pela jornada de trabalho reduzida e pela negociação salarial diretamente com os empregadores, denunciando os males que o capitalismo causa ao trabalhador.

É no século XX, com as transformações das relações econômicas e o advento da produção em massa nas indústrias que se estabelece o direito social. As relações de produção são transformadas devido à complexificação da divisão do trabalho, o que faz com que o direito social represente então uma forma de minimizar as desigualdades de renda. Porém, este é também utilizado pelo capital como a garantia do processo de industrialização, possibilitando ao trabalhador um mínimo possível para sua reprodução e, conseqüentemente, um máximo para a reprodução capitalista (Marshall,1967).

As críticas relacionadas à concepção de cidadania de Marshall direcionam-se basicamente à linearidade evolutiva que o autor confere ao desenvolvimento dos direitoe cidadania e, também, à restrição de sua análise apenas à sociedade européia (Barbalet, 1989; Held, 1997; Zolo, 1997; Giddens Apud Held, 1997)

No Brasil, a concepção de cidadania começou a ser construída na década de 1930, com o estabelecimento de um projeto urbano-industrial necessário para ampliar o capitalismo no país.

O Estado passa a regular a acumulação capitalista e a intervir nas relações capital/trabalho de forma diferenciada de outros Estados capitalistas por não possuir bases industriais consolidadas. O Estado passa a ser o elemento responsável por regular a profissão do trabalhador, reconhecendo-o como cidadão somente a partir de sua inserção no processo produtivo.

Segundo Santos (1994), a cidadania passa a ser referenciada tendo como base três elementos: a regulamentação da profissão; a associação compulsória a um sindicato e a carteira profissional de trabalho. Os que não possuíam profissão regulamentada não eram considerados cidadãos e recebiam amparo da assistência social, que era feita através das Igrejas e da filantropia.

Essa forma de cidadania é concebida por Santos como cidadania regulada:

"... a cidadania regulada possui as raízes em um sistema de estratificação ocupacional (...) definido por norma legal. São cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se faz via regulamentação de novas profissões/ocupações, em primeiro lugar, e mediante ampliação dos direitos associados a estas profissões, antes que por expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. A cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei."(Ibid., Op. cit.: 68).

Esse padrão de cidadania estendeu-se até a década de 1960, quando surgiram movimentos que tentaram romper com esse conceito, mas que foram desestruturados pelo Golpe Militar de 1964.

Desde sua assunção ao poder, os militares adotaram um modelo econômico que privilegiou a entrada do grande capital no Brasil, unindo o planejamento estatal ao capitalismo estrangeiro, formando um pacto com a autocracia burguesa (Netto, 1992).

A fim de travestir o Golpe com uma aparência democrática, uma das medidas postas pelos militares foi a promoção de algumas medidas de caráter pseudo-universalizante, como a unificação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs).

Na verdade, essa unificação estava inserida no processo de modernização da máquina estatal. Ela foi uma estratégia de controle da massa popular e desmobilização da classe trabalhadora (Oliveira e Teixeira, 1985). Os benefícios foram uniformizados para uma camada da população trabalhadora, mas o acesso aos serviços ainda estava vinculado à contribuição previdenciária.

Desta forma, "a unificação dos IAPs constituiu um primeiro passo no caminho da universalização, pulverizando a organização funcionalmente segmentada dos serviços" (Laurell, 1998:137).

Em meados da década de 1970, o Regime Militar começou a apresentar seu esgotamento, abrindo espaço para a ascensão dos movimentos operário e popular e de outros movimentos e organizações políticas que promoveram o fortalecimento da sociedade civil organizada (Netto, Op. cit).

Isto porque o caráter não fascista da Ditadura brasileira (Coutinho, 2000), consubstanciado no travestismo democrático supracitado, terminou por desencadear forças que, a médio prazo, se tornaram incontroláveis. Assim, "quando a pura repressão se revela inviável, têm lugar os chamados ‘projetos de abertura’, encaminhados ‘pelo alto’ (...)" (Coutinho, Op. cit.:90).

O processo de abertura democrática brasileiro culminou com o Movimento pelas Diretas Já (1984), que foi extremamente favorável para que diversas organizações da sociedade civil ganhassem projeção e força, influindo diretamente nas propostas a serem incluídas na Nova Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, sendo conhecida como "Constituição Cidadã" por ter contado com ampla participação popular em sua redação final e por garantir a universalização dos direitos sociais e afirmar que a saúde é "direito de todos e dever do Estado" (Brasil, 1998, art. 196), consagrando o conceito de Seguridade Social.

A promulgação da Constituição Federal de 1988 configurou um pacto social, apontando para a construção de uma espécie de Estado de Bem-Estar Social ao consagrar explicitamente os direitos sociais. As forças políticas comprometeram-se a uma convivência social parametrada pela prioridade de diminuir as desigualdades sociais geradas pelo período Militar. Com isto, formava-se um arcabouço para implantar políticas sociais compatíveis com as exigências de justiça social, eqüidade e universalidade (Netto, 1999).

Entretanto, este pacto teve vida breve, pois em 1989 a política econômica brasileira já se rendia ao neoliberalismo, com um plano que preconizava a privatização de empresas estatais, a abertura para o mercado externo, o corte de gastos públicos e a desmobilização dos setores populares (Ibid., Op. cit.), inviabilizando a efetiva implementação da Constituição promulgada no ano anterior.

No primeiro período do governo Fernando Henrique Cardoso (1994 a 1998) percebe-se claramente que o modelo democrático de regulação da dinâmica capitalista instituído pela Constituição de 1988 foi substituído pela desregulamentação, flexibilização e privatização, que são elementos essenciais da globalização econômica e estão expressos na ideologia neoliberal (Ibid., Op. cit.).

FHC operou eficientemente contra a Constituição. Ele iniciou uma reforma constitucional que acabou por retirar elementos fundamentais de seu texto, como a "Reforma da Previdência", e subtraiu as bases de sustentação econômico-financeiras para a implementação do projeto político do grande capital, tendo os direitos sociais como alvo prioritário e privilegiado de ataque (Ibid., Op. cit.).

Postos como "financeiramente insustentáveis", os direitos sociais foram desmontados em todos os países que se renderam ao ideário neoliberal, e, no Brasil, o governo FHC defende que a governabilidade do país depende da sua flexibilização (Ibid., Op. cit.). Desta forma, o Estado realmente vem priorizando suas cinco principais metas (educação, saúde, emprego, agricultura e segurança), só que de acordo com a lógica do grande capital internacional.

Com relação ao emprego, o cenário dominante do mercado de trabalho observa a flexibilização das relações trabalhistas impostas pelo grande capital, o que está provocando a redução de trabalho vivo na produção e o crescimento da terceirização, ampliando o trabalho temporário e gerando a desestruturação de organizações civis e sindicatos profissionais (Iamamoto, 2000). Vale ressaltar que os anos 90 estão sendo denominados de "A Década Perversa" por terem provocado a eliminação de 2 milhões de vagas de trabalho destinadas a jovens entre 14 e 25 anos, recrudescendo a exclusão no mercado de trabalho (Cruz Neto, 2000), promovendo também a segregação daqueles que jamais terão acesso a esse mercado.

É importante reconhecer que um dos aspectos centrais das "metamorfoses da questão social" (Castel, 1999) perpassa pelo aumento do desemprego e a ampliação da precarização das relações de trabalho (Iamamoto, Op. cit.), trazendo conseqüências diretas para a vida do trabalhador e, conseqüentemente, sua saúde e das populações.

No caso específico da saúde, o estrangulamento de recursos destinados a esta área ocasionou um sucateamento cada vez maior na esfera pública, gerando muitas deficiências. Face a esses problemas, podemos observar o setor privado de saúde inteiramente locupletado à lógica capitalista, promovendo a exclusão das camadas populares do atendimento e dos benefícios das novas descobertas. Ao mesmo tempo, começa-se a observar um nivelamento "por baixo" nos atendimentos e prestação destes serviços. As políticas de saúde são cada vez mais segregatórias, tornando-se extremamente funcionais à lucratividade capitalista (Leite, 1999).

Como uma das muitas conseqüências do atual modelo de acumulação capitalista, com todos os seus nefastos desdobramentos, observa-se o ressurgimento de ciclos epidêmicos de velhas enfermidades, como o cólera e a dengue, e o aparecimento de novas morbidades, a exemplo da AIDS, que atingem diretamente os segmentos mais empobrecidos da população (Ibid., Op. cit.). O acirramento da crise em nosso sistema público de saúde expõe de forma atroz as fraturas da "questão social". Neste sentido, sem dúvida, a pandemia do HIV/AIDS é um dos muitos desafios que o Serviço Social irá enfrentar no novo milênio.

Nosso Estado de democracia aparente tem o discurso da liberdade e igualdade dos cidadãos sem garantir a todos o acesso a seus direitos, até porque o neoliberalismo prescinde de direitos sociais para manter seu "exército industrial de reserva" na "ativa", o que é visível nos governos que o adotaram. Dessa forma, a população passa a sofrer o que se chama de "violência estrutural", onde o Estado realiza um processo seletivo de escolha, decidindo quem são os cidadãos e portadores de direitos, e quem vai fazer parte da grande massa de excluídos (Cruz Neto, Op. cit.).

Assim, malgrado o caráter inovador da concepção marshalliana de cidadania, o atual cenário mundial se encarrega de desdize-lo: a sociedade de classes não consegue conviver com o paradoxo formado pela igualdade de direitos e pela desigualdade do mercado, haja vista que o trabalho vivo está se tornando cada vez mais desnecessário (direitos civis), tem como uma de suas conditio sine qua non a "quebra" dos sindicatos (direitos políticos) e impede, através da instauração do Estado Mínimo, que os indivíduos tenham o essencial para a sua sobrevivência (direitos sociais).

 

AIDS e Serviço Social

O surgimento da pandemia do HIV/AIDS no início da década de 1980 causou grande impacto em todas as sociedades por ter sido construída, no imaginário social, como uma doença que atingia apenas homens homossexuais, gerando uma gama de estigmas e preconceitos.

No Brasil, a doença foi conhecida inicialmente por intermédio da mídia, para depois se tornar um fato médico. Como em todos os países atingidos por essa nova doença, aqui também se acreditava que a pandemia fazia parte, exclusivamente, dos grupos de homens homossexuais, sendo conhecida como uma "epidemia de bichas ricas" (Daniel e Parker, 1991).

Os profissionais de saúde, ao tratarem desses doentes, sentiam medo do contágio do flagelo, que seria um "castigo de Deus". Muitas vezes os enfermeiros deixavam os alimentos dos doentes na porta do quarto com medo de uma contaminação. Médicos se recusavam a tratar seus pacientes, acreditando que eles deveriam morrer por causa dos motivos que os levaram a contrair a doença, a "peste gay", mas ninguém sabia ao certo do que se tratava ou os seus mecanismos de transmissão; "sabiam apenas que era uma doença contagiosa, incurável e mortal, ligada principalmente à homossexualidade" (Parker, 1994).

Estar contaminado pelo vírus causador da AIDS fazia com que o doente fosse visto como o portador de uma doença vergonhosa e condenável. Pensavam que um simples contato físico seria capaz de "sujar" suas almas santas com o "flagelo advindo do pecado" que contaminava os homossexuais.

Mesmo ao atingir outros segmentos da população (hemofílicos e usuários de drogas injetáveis), a maioria das pessoas não se considerava em risco iminente de contágio, pois não havia informações sobre as formas de transmissão. Os então pertencentes aos denominados "grupos de risco" eram, por definição, os alvos privilegiados da doença e também do preconceito de toda a sociedade por serem minorias e por apresentarem algum comportamento passível de ser classificado como "desviante", marginal.

Após vinte anos de pandemia, foi possível observar que a AIDS é uma doença sem preconceitos – ela atinge a todos indiscriminadamente - e continua se expandindo em meio aos diversos segmentos da população, penetrando novos grupos socialmente considerados mais "vulneráveis" (Brasil, 1999), grassando na atualidade entre os pobres, os jovens e as mulheres.

O problema dos soropositivos, como o dos demais doentes, não é reclamar condições mais fáceis de morte, e sim reivindicar melhor qualidade de vida, fato este que inclusive é comum a quase totalidade dos brasileiros (Daniel, 1994). A contaminação pela AIDS não causa, diretamente, nenhuma deficiência que impeça o exercício da cidadania, mas indiretamente, ser portador do HIV/AIDS dificulta esse exercício, pois a doença ainda é utilizada como justificativa para a interdição de direitos humanos, civis e sociais (Ibid., Op. cit.).

O pressuposto básico da cidadania é o princípio da igualdade, que está expresso no direito civil, mas torna-se difícil ao portador do HIV/AIDS conseguir exercer sua cidadania plenamente. A questão não está na Legislação criada a partir das demandas postas pelos soropositivos ou na referente aos Direitos Humanos, mas sim no acesso a estes direitos, como por exemplo, os direitos à saúde, à assistência, ao trabalho e à educação.

É neste cenário que o profissional de Serviço Social deverá pensar ações que possam fortalecer o projeto profissional engendrado desde a década de 1980, comprometendo-se medularmente com a defesa dos direitos sociais, da cidadania e da ampliação da democracia política e econômica na sociedade (Iamamoto, Op. cit.).

Assim, o assistente social não pode excluir da questão da AIDS (nem de nenhuma outra) o contexto sociopolítico e econômico no qual se acha inserido; ele deve estar atento à conjuntura, pois com o fenômeno da globalização, questões como a pobreza, o desemprego, a fome, a miséria e as doenças como a AIDS, deixaram de ser apenas nacionais para tornarem-se globais.

O assistente social deve ser um dos tradutores das demandas contemporaneamente postas e proporcionar a elaboração e implementação de políticas sociais a fim de tentar impedir as seqüelas sociais advindas não só da violência estrutural, mas que também atingem a população afetada pela doença, levando em consideração as transformações que ocorrem no perfil da pandemia.

 

METODOLOGIA DO ESTUDO

A fim de verificar se, na prática, os direitos das pessoas com HIV/AIDS são garantidos, analisamos todos processos movidos entre janeiro de 1990 e julho de 1999, pelo Departamento Jurídico de uma ONG/AIDS do Rio de Janeiro. Elaboramos um roteiro para coletar os dados contidos nos processos, privilegiando os seguintes itens: sexo; idade; escolaridade; plano de saúde; renda pessoa/familiar e o motivo dos processos.

De um total de 487 requerentes, 412 (84,6%) eram homens e 75 (15,4%) mulheres. Destes, 168 (34,4%) entraram na justiça para obter medicamentos fornecidos pelo Estado. Isto porque a distribuição gratuita de AZT foi iniciada no Brasil em 1991, mas não abarcou a maioria dos portadores do HIV/AIDS (Leite e Passman, 1992). Em 1995, a distribuição de antiretrovirais (AZT e ddI) passou a ser feita de acordo com critérios pré-estabelecidos pela Portaria Federal nº 21 de 21 de março de 1995, alcançando apenas os doentes de AIDS. Somente com promulgação da Lei Federal nº 9.313 de 13 de novembro de 1996, a distribuição gratuita de medicamentos antiretrovirais foi estendida aos portadores do HIV.

Vale ressaltar que o corte com gastos referentes ao setor saúde reduziu a compra de medicamentos antiretrovirais pelo Estado, fazendo com que muitos portadores do HIV e doentes de AIDS não tenham acesso a seu tratamento. Dessa forma, os indivíduos HIV/AIDS são obrigados a recorrer à justiça a fim de receberem seus medicamentos. Outra dificuldade que estas pessoas encontram diz respeito aos medicamentos que previnem/combatem as doenças oportunistas, que não são distribuídos pela rede pública.

Outros 142 (29,1%) requerentes solicitavam indenização por contaminação transfusional. No Brasil, muitos indivíduos soropositivos/AIDS foram contaminados devido ao comércio ilegal de sangue e de hemoderivados. Em 1987, com a Lei Estadual do Rio de Janeiro de n.º 1.215, de 23/10/87, que dispõe sobre a obrigatoriedade de realização do teste para detecção de anticorpos anti-HIV em todos os estabelecimentos hemoterápicos e sobre a responsabilidade destes pela qualidade do sangue que fornecem, houve uma redução deste comércio. E em 1988, foi promulgada a Lei Federal nº 7.649 de 25/10/88, que dispõe sobre a obrigatoriedade de testagem sorológica para doadores de sangue.

Por mais que essas leis tenham entrado em vigor, as mesmas não foram suficientes para garantir a qualidade do sangue. As informações fornecidas pelos doadores podem não ser verídicas e o baixo estoque de sangue na rede pública hospitalar brasileira impede que as bolsas fiquem estocadas por mais de 3 meses a fim de serem retestadas, garantindo assim a qualidade do sangue doado.

Do total dos processos, 114 (23,4%) requerentes entraram na justiça para recebimento de benefícios da Seguridade Social (isto é, garantidos por leis federais, estaduais e municipais), como o auxílio doença; a correção monetária do auxílio doença; retirada de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço; saque de PIS/PASEP e aposentadoria por HIV/AIDS.

23 (4,7%) requerentes buscaram a justiça por terem sido demitidos de seus empregos em decorrência de sua sorologia positiva. Em geral, a demissão ocorre devido ao estigma e preconceito que envolvem a doença. Somado a estes fatores, cada vez mais o mercado de trabalho exige mão-de-obra sã, excluindo os indivíduos com HIV/AIDS do acesso a esse mercado (Leite, 1999).

Mesmo havendo Projetos de Lei em tramitação que propõem a não demissão dos indivíduos com HIV/AIDS, uma das ações movidas data de 1999. Ou seja, mesmo após 20 anos de pandemia no Brasil, percebemos o quanto a continuidade do trabalho ainda é dificultada por causa do preconceito relacionado à doença.

No que diz respeito à garantia de assistência por plano de saúde privado, 16 (3,2%) requerentes apelaram para a justiça. A cobertura de plano de saúde está embasada na Resolução do CREMERJ nº 19/87, que, na alínea f, do seu artigo 1º, obriga as empresas de assistência à saúde a garantir o atendimento de todas as enfermidades relacionadas no Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde. Em 1998, o Estado promulgou a Lei nº 9.656, que disciplinou os serviços de medicina suplementar em todo o país, mas essa Lei não dá total garantia aos portadores de doenças pré-existentes. Se a empresa de saúde conseguir comprovar que o associado tinha conhecimento de sua enfermidade, ela fica isenta de fornecer qualquer tipo de tratamento.

Somente obtivemos dados sobre a escolaridade de 261 (53,5%) pessoas, das quais a cifra de 15 (5,7%) possuem nível superior. Isto só faz reafirmar a projeção de que a pandemia está cada vez mais atingindo pessoas com pouca instrução, o que, no Brasil, quer dizer: pobres. Quanto ao local de moradia, a insuficiência de informações não nos permitiu sequer a sua alocação.

Com relação à idade, apenas 200 (41%) pessoas possuíam esta informação anexada ao processo, sendo que em 77 (38,5%), a faixa etária é compreendida entre 31 e 40 anos, reforçando o perfil da pandemia que atinge pessoas em idade economicamente produtiva.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os profissionais que atendem aos indivíduos com HIV/AIDS (em sua totalidade, advogados e estudantes de Direito) desconsideram vários dados socioeconômicos e culturais, o que impossibilitou traçar um perfil desta população. Isto justifica também o baixo número de informações que totalizem 100%. Uma das questões inicialmente levantadas, que dizia respeito em saber se na época da concessão (ou não) do direito reclamado, o requerente ainda permanecia vivo, foi-nos impossível saber, pois os advogados não se preocupam com esta questão (o dado só existia quando o familiar do requerente comparecia à ONG para informar o óbito). Outro aspecto se refere ao período entre o início do processo e a sua resolução (estreitamente vinculado à primeira questão): não há registros sobre isto. Uma vez que a ficha de atendimento foi elaborada e é aplicada por advogados, percebemos que o tradicional "conservadorismo" e "pragmatismo" encontrados na profissão no país não os deixa avançar além do imediatamente dado. Talvez a instituição de uma equipe interdisciplinar com profissionais de diversas áreas (Psicologia, Serviço Social, Estatístico, etc.) pudesse trazer maiores benefícios aos indivíduos que necessitam de assistência jurídica, pois assim poder-se-ia realizar projeções de demandas futuras com base no presente.

O Brasil possui uma Legislação das mais modernas em termos de direitos sociais e a Legislação específica sobre DST e AIDS é tida como uma das mais progressistas do mundo, mas se observa na prática a violação e o não cumprimento das mesmas, notadamente para as pessoas com HIV/AIDS, deixando transparecer que a Lei é apenas na letra, sem possibilidades de sair do papel.

Não há investimento na assistência jurídica pública por parte do Estado. São poucos os defensores públicos existentes para dar conta de um excedente de processos acumulados. Dessa forma, a assistência jurídica pública no país é praticamente inacessível, fazendo com que as pessoas com HIV/AIDS recorram à assistência jurídica de ONGs e Universidades.

E a Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 2.187 de 01 de dezembro de 1993, determina que processos movidos pelas pessoas com HIV/AIDS devem ter despacho resolutório em 45 dias, mas 344 requerentes (70%) ainda estão com os processos em andamento. Destes, 6 (1,7%) datam de 1990, 1 (0,2%) de 1991 e 47 (13%) de 1992. Isto significa que muitas pessoas falecem antes de terem seus processos concluídos, mas não conseguimos comprovar este dado, devido à inexistência de correlação, conforme exposto acima.

Sendo assim, a cidadania no Brasil continua restrita, elitista e classista e as condições sociais da população são tratadas como dados secundários. Neste sentido, cabe ao Serviço Social enfrentar mais esta problemática, na garantia e defesa intransigente dos direitos dos cidadãos.

 

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