DIALÉTICA E ABSOLUTO EM HEGEL

archivo del portal de recursos para estudiantes
robertexto.com

ligação do origem
Prof. Dr. Bernard Bourgeois (França)
Tradução de Agemir Bavaresco e Sérgio Batista Christino

IMPRIMIR

 

 ISSN- 1980-8372

REVISTA ELETRÔNICA ESTUDOS HEGELIANOS

Revista Semestral do Sociedade Hegel Brasileira - SHB

Ano 2º - N.º 03 Dezembro de 2005

 

          No seu artigo Hegel e o problema da dialética do real publicado em 1931 na Revista de metafísica e moral, Nicolaï Hartmann, falando do método dialético hegeliano, escreve que Hegel dominava este método com maestria mas ele, também, não foi capaz de dizer em que ele [método] consiste [1]. Originária e profundamente filósofo do espírito, Hegel teria concebido a dialética a partir da experiência deste espírito, ou antes, teria transposto uma tal experiência numa prática dialética conceptual em que ele não teria querido, nem poderia, de início, fazer uma teoria propriamente lógica, o que Hartmann considera com efeito como um mérito, pois a seus olhos, somente, os epígonos se preocupam em teorizar o que praticam seus mestres: Toda reflexão excessiva sobre o método se fixa no acessório, passa ao lado do que é fundamental, é um sintoma de decadência [2]. O ancoragem da dialética hegeliana no seu objeto privilegiado, a vida experimentada do espírito, explicaria também o artificialismo construtivista no qual ela se degradaria no seu exercício puramente lógico. Breve, o hegelianismo não ofereceria nem uma prática lógica autêntica nem, “a fortiori”, uma teoria lógica explícita da dialética. Esta não teria lugar a princípio no sistema, na Lógica especulativa que, contudo, - e é isso que torna bem-aventurada a leitura hartmaniana – tem por conteúdo último de seu saber, então absoluto, seu próprio método, e isso, como alma dialética universal de qualquer vida real, natural e espiritual. Tratando-se da questão da dialética em todos os escritos e todos os cursos de Hegel, o lugar essencial do pensamento que ela toma é, certamente a Ciência da Lógica, e, nesta, o seu ponto de apoio, o seu último capítulo dedicado à Idéia absoluta, em que se recapitulam, em seu sentido realizado, todas as indicações relativas à dialética, presentes ao longo do texto. Ora, nesta concretização vivificante dela mesma – na Idéia mostrando-se sujeito – a dialética hegeliana se revela capaz de ultrapassar completamente o caráter ainda abstrato que a razão especulativa, aparecendo progressivamente a ela mesma e no seu objeto e no seu sujeito preparando diligentemente seu momento do entendimento, pode parecer corresponder a seu momento dialético, e ela afirma o sentido e o agir total deste. De maneira que, ao oposto de uma deslogização da dialética, a teoria, em verdade essencialmente lógica, que propõe Hegel desta dialética parece operar sua intensificação, e mesmo, a certos olhos, sua absolutização lógica. Para julga-la, convém, neste primeiro tempo, recordar três traços fundamentais, bem conhecidos, da dialética hegeliana; depois, numa segunda etapa, constatar e explicitar sua aplicação ao absoluto, através da idéia lógica deste aqui e enfim, em terceiro lugar, examinar de modo crítico a possibilidade de uma tal dialetização deste absoluto.

 

            Eis, em primeiro lugar, três lembranças, que concernem, sucessivamente, ao lugar, ao modo e ao estatuto da dialética no pensamento especulativo de Hegel. – A discursividade – o movimento ou processo – dialética tem seu lugar em tudo o que tem um sentido e/ou um ser marcado, determinado; ela não é somente aquela de uma subjetividade ou pensamento que, em seu exercício empírico contingente (a sofística antiga) ou no seu uso transcendental necessário (Kant), distanciaria, suscitando ilusão ou aparência, da objetividade, da realidade ou do ser em seu sentido inteligível idêntico a si, nem, tampouco, inversamente, aquela de um real flutuando, essencialmente, por seu caráter sensível, ao qual se oporia o pensamento em seu poder intelectual de identificação por si mesmo. Todo ser e todo pensamento são dialéticos, e, antes de tudo, esse ser que é pensamento ou este pensamento que é ser, e que se chama a experiência ou a vida. Hegel relativiza, sabe-se, fazendo-a provir da identidade da alma e reencontrar na identidade do espírito, a diferença conscientizada do ser e do pensamento, da objetividade e da subjetividade; para ele, o pensamento é, como pensamento de si que se faz ser (o lógico), o alfa [o princípio], e, como ser que se faz pensamento de si (a Lógica, como princípio da filosofia especulativa), o ômega [e o fim] de tudo o que é e que desenvolve sua discursividade dialética no jogo destes dois momentos intimamente misturados por ele mesmo e não ainda igualados um no outro, que são seu ser e seu sentido. Tudo o que se encontra por conseqüência determinado, limitado, é, deste modo, um exemplo do dialético.

            Quanto ao seu modo, a discursividade dialética é a discursividade realmente como tal, e não simplesmente formal, como forma de um conteúdo, permanecendo idêntico realmente a ele mesmo, somente transportado do mesmo ao mesmo como é o caso na discursividade dedutiva. A discursividade dialética, interiorização do afrontamento dialógico, altera, aliena o conteúdo que ela expressa nele e em relação a ele, ela o anula em seu ser, precipita-o no seu não-ser, colocando-o em contradição com ele mesmo. Tudo o que tem um sentido e/ou um ser marcado, determinado, é assim dialético pois contraditório nele mesmo, não sendo enquanto que é e, por conseguinte, não sendo, pois o que é contraditório não é. A contradição, dialeticamente mobilizada, toca toda realidade ou idealidade determinada, isto é, finita, na medida em que ela é absolutamente idêntica a si e se separa ou se abstrai assim do todo e, portanto do que neste, é outro que não ela: contrário a ela ou mesmo simplesmente diverso em relação a ela e por aí, pois que ela não tem ser e sentido senão no interior deste todo e em sua relação ao que aí se encontra outro que ela, perde seu ser e seu sentido, não é senão enquanto ela é, não idêntica a ela  mesma, enquanto é idêntica a ela mesma, breve é contraditória e, como tal, não é. Tem-se freqüentemente censurado Hegel, por generalizar a existência da contradição, amenizando sua significação estrita estendendo-a ao que é somente contrário, e mesmo simplesmente diverso; injustamente, pois, se, certamente, a contrariedade e a diversidade não são a contradição, o fato, para o que é finito, de estar essencialmente implicado numa relação de contrariedade ou de diversidade, e nisso não idêntico a sua identidade, torna-o contraditório e o submete à dialética como ao que ele tem de mais próprio, como a expressão lógica de seu destino.

            A generalização a tudo o que tem um sentido e um ser determinados da dialeticidade, como negação imanente necessária de si mesmo é, entretanto, para o que concerne o estatuto desta dialeticidade, uma relativização dela mesma, enquanto um momento particular do movimento total real, portanto também, para começar e para terminar, positivo, que esse momento anima, mobiliza, e o qual, em razão do papel motor que aí ele joga, tal sua alma, ele deu seu nome e fez designar como a dialética:  o dialético é, propriamente, somente o momento negativo motor do movimento do ser, do movimento nele mesmo, em seu ser, positivo, constituído pela dialética. Que seja, aqui, simplesmente lembrado que esse momento negativo da diferenciação do ser consigo mediatiza entre eles os dois momentos positivos da identidade a si pondo-se como tal fora de toda diferença ou determinação interna que faria eco e a ligaria a uma diferença exterior, e da identidade a si, compondo-se de todas as diferenças acolhidas nela e a concretizando numa totalidade, como tal, somente em relação com ela ou refletida nela mesma. O primeiro momento, que põe identificando a si ou universalizando um conteúdo separado ou abstraído de toda diferença ou particularidade – e tal é, inicialmente, o conteúdo absolutamente universal ou idêntico a si que é o ser – é aquele do entendimento. O terceiro e último momento que compõe num todo, concretizando a identidade positiva inicial, as diferenças de início dialeticamente suscitadas na mesma e negando-a em sua negação do todo, é aquele – pois Hegel, após Kant, define a razão pela totalização – da razão positiva; a “razão positiva” põe o todo do sentido ou do ser, isto é, - seguindo a própria herança moderna de Kant – o que pode ser designado como a Idéia. Entre a positividade absoluta imediata do ser puro e a positividade absoluta mediatizada da Idéia, a negatividade dialética que nega a negação do todo que é o ser abstrato, constitui a “razão negativa” pois antecipando a auto-posição da razão na negação de sua negação. – Este momento do dialético ou da diferenciação consigo do idêntico a si tomado na indeterminação posta do começo, se diferencia ele mesmo em dois momentos ou dois graus da negatividade. O primeiro negativo consiste na revelação ou posição do idêntico A=A como sendo antes o diferenciado, ele que, em si, já é diferenciado da diferença, determinado pela negação da determinação: A é posto como Não-A, que não é zero, pois a negação de A embora determinada é uma negação ela mesma determinada, uma negação que é também uma determinação, e uma determinação tendo um ser tanto como A, quanto B. Ora, a positividade de B, o primeiro negativo, sendo aquele de sua identidade e de A, que ele nega, contendo-o em seu interior, não pode ser assegurado senão se ele nega ele mesmo nesta auto-negação que é sua contradição interna; esta segunda negatividade atinge os dois termos A e B nos quais B se reflete como igual a ele mesmo e, portanto, esta reflexividade, forma [que está]  a espera de um novo conteúdo verdadeiramente positivo, isto é, de uma unidade nova C, autopondo-se em apropriando-se como seus momentos A e B concretamente negados. Assim, o segundo negativo ou o segundo tempo da atualização do dialético, em negando os dois primeiros momentos da dialética – o momento do entendimento e o momento da razão negativa, que é o momento do dialético ele mesmo -, tornado claro pela autoposição da razão positiva, totalidade do ser refletindo-se sem resto, especulativamente, nesta sua posição e por ela mesma que constitui o terceiro momento especulativo em que se completa a dialética hegeliana [3].

            Recapitulemos. A universalidade desta dialética, o primeiro aspecto sublinhado nela, é aquela da contradição motora; o segundo traço retido, de um desenvolvimento do ser e do sentido que ela constitui – terceiro, somente o momento médio, aquele da diferença consigo, momento não absoluto do absoluto, o qual é, fundamentalmente, a identidade a si, que é tomada em sua afirmação inicial – a universalidade – ou em sua afirmação terminal – a totalidade – dela mesma. É por isso, que parece, estritamente falando, a dialética  se vale apenas disso que, no absoluto, não é a absolutidade deste aqui. A universalidade da dialética parece bastante limitada, por seu modo e seu estatuto, a isso que, determinado, limitado ou finito, constitui o momento relativo do absoluto. – E, portanto, é necessário constatar que Hegel fala também da dialética como sendo igualmente aquela do próprio absoluto ele mesmo. Isso através de uma extensão do seu campo, de seu modo e de seu estatuto, permitindo-lhe aplicar não somente ao ser finito, mas também ao ser infinito.

 

Sem dúvida é necessário tomar, absolutamente, a razão motivadora do elogio excepcional que Hegel faz a Heráclito, em seus cursos sobre a história da Filosofia: Heráclito apreende [...] o próprio absoluto como [...] sendo a própria dialética [...]. Isso é um progresso necessário, e é o que Heráclito realizou. O ser é o Um, o que é primeiro; o que vem em segundo, é o devir, é a esta determinação que Heráclito chegou. Isso é o primeiro concreto, o absoluto, enquanto tendo nele a unidade de termos opostos. É, então, em Heráclito, que se deve encontrar pela primeira vez a Idéia filosófica sob a forma especulativa ... Aqui, encontramos terra à vista: não existe uma proposição de Heráclito que eu não tenha retomado em minha Lógica. [4] Assim, Heráclito é elogiado porque ele não se satisfez com apreender a dialética no absoluto, tomada no momento finito que sua infinitude concreta contém nela, mas afirmou a dialética do absoluto enquanto absoluto, que não é o Um verdadeiro senão como devir. Certamente, Xenófanes e sobretudo Parmênides são grandes por ter fixado o ser e o pensamento — fora da diferença sensível e representativa sempre diferente dela própria, fluxo desordenado impedindo todo discurso coerente e nisso verificável — absoluto a si em sua identidade, mas parece bem que o mérito dos dois pensadores, na perspectiva de Hegel, seja essencialmente de ter instituído o meio espiritual permitindo o desdobramento rigoroso, a discursividade científica, do pensamento que é a dialética: No que os Eleatas expõem como a essência absoluta, eles apreendem o próprio pensamento em sua pureza, e o movimento do pensamento em seus conceitos. Nós encontramos aqui o começo da dialética, ou seja, precisamente, do puro movimento do pensar em seus conceitos.[5] Hegel confessa-se certamente aqui parmenidiano, e ele o é certamente: então, mesmo que, na sua Lógica, ele diga idênticos um ao outro absolutamente, na sua origem, imediatamente, então sobre o modo do ser, o ser e o nada, ele escolhe bem, como determinação originária ou origem da determinação do absoluto, aquela, indeterminada, do ser e não do nada, da identidade a si e não da diferença consigo: o absoluto é fundamentalmente ser e não nada. Mas o conteúdo de um tal ser é sua identidade com o nada. A identidade sendo do ser e do não-ser que é o devir, ou seja a dialética em seu princípio. Para Hegel, o absoluto não é o nada no qual há uma posição, emergência espontânea de um ser não idêntico a si, mas o ser que nega e, em sua identidade a si, nega-se, e isto no domínio de sua atividade ou de sua negação. É por isso que o absoluto hegeliano não aloja somente nele a dialética, ele mesmo se faz dialética. A dialética não é nele somente a auto negação do finito, revelando in fine o infinito como auto posição dele mesmo, por que o absoluto assim autoposto deve apenas fazer-se dialético pondo seu negativo ou negando-se. O saber absoluto que se faz advir ao final da Fenomenologia do Espírito é certamente a alienação dele mesmo na certeza sensível, e, no sistema enciclopédico do ser, o absoluto realiza seu sentido, a Idéia lógica, alienando-se similarmente em uma natureza. Quanto a este absoluto tomado na realização completa, espiritual, de seu sentido, ele se expressa especulativamente pela inversão da dialética ascendente do espírito finito, elevando-se a seu princípio na dialética descendente do espírito infinito, repousando nele, mas, segundo o sentido verdadeiro de sua posição originária, todas as condições lógico-naturais de sua encarnação no espírito finito. A filosofia hegeliana, como promoção especulativa da teologia cristã, faz bem em fundamentar a dialética ascendente do homem que é divinizado na dialética descendente do Deus que se humaniza. Em uma palavra, a dialética em sua verdade absoluta consiste, exatamente, na dialetização do absoluto.

Uma tal dialética, cujo lugar assim potencializado é o absoluto, vê igualmente, tudo em um, seu modo, a contradição mobilizada e mobilizante, desenvolvida em toda sua força aplicando-se a ele mesmo como contradição da contradição, contradição refletida nela mesma enquanto predicado de si que é o todo absoluto. Se o absoluto é vida, atividade, e não o ser rígido da morte, é apesar disso que ele é nele a contradição dele mesmo. Até mesmo sua vida etérea e calma, aquela que se mantém no interior de sua identidade lógica consigo, está muito longe da insipidez de um simples jogo positivo consigo, animada pelo trabalho do negativo. Este se realiza na negação pela Idéia lógica, não de tal ou qual de suas determinações ainda inadequada a si própria, mas dela mesma como totalmente auto-suficiente, absoluta, de suas determinações, esta negação total, esta abnegação sem reserva fazendo-a criar, liberar dela, seu Outro, inicialmente a natureza. Por seu sentido, que a faz culminar na morte do vivente, a natureza assim auto-negadora manifesta como sua verdade o espírito que a nega em sua exterioridade a si e em sua contradição conseqüentemente não suscetível de se refletir nela mesma como em um Si onde, aplicando-se a ela, poderia resolver-se e dominar-se. Tal é assim o poder do espírito, cuja superabundância de ser se revela no sacrifício que faz de si para fazer ser seu outro. É assim desnecessário restituir aqui o tema trágico da morte de Deus que, como morte da morte, anuncia o triunfo de sua absoluta vitalidade. O que convém sublinhar, é que em se absolutizando, ou se infinitizando, a dialética passa de seu regime passivo ao seu regime ativo, de uma dialética sofrida pelo ser finito a uma dialética implementada pelo ser infinito, de uma dialética da necessidade à uma dialética da liberdade, de uma dialética objetiva do ser-contradito a uma dialética subjetiva do contradizer-se. Tudo é contraditório salvo o todo, que se contradiz nele mesmo, não podendo como tal ser refletido em sua atividade ou negatividade senão nele mesmo, ou seja, refletir-se em um Si. Vê-se que a extensão ou a infinitização da contradição dialeticamente atualizada repousa sobre uma intensificação ou interiorização dela mesma. Inicialmente, submete-se objetivamente, na Lógica objetiva do ser, como necessidade totalmente exterior da passagem do Mesmo ao Outro; depois, na Lógica sempre objetiva da essência, que é sua negação, pela interiorização, do ser, fixado em sua exterioridade a si, como necessidade refletida em si, mas não refletida nesta reflexão em um ter dela mesma onde ela se resolveria e se ultrapassaria, a contradição se domina enfim, na Lógica subjetiva do conceito, como um tal ter dela mesma pelo Si que o apropria, em se contradizendo, como mediação de sua liberdade. A contradição de si do absolutamente positivo que é o absoluto, realizado em seu sentido verdadeiro, que é efetiva e completamente positivo, a contradição da contradição, a negação da negação que se revela ser o segundo negativo ou a dialética realizada de que se falou até o momento. O absoluto mostra-se em toda sua positividade através da absolutização da negatividade realizada do dialético.

A apresentação que faz Hegel, então, do positivo plenamente concretizado, isto é do especulativo, como resultando da auto-negação do negativo ou como sendo a superação propriamente dialética da dialética parece expressar uma justificação mais essencial, por que mais interior, da designação, como a dialética, de todo o desenvolvimento racional movido, em seu centro, em seu momento mediano, pela dialética. Ela significa com efeito a idéia de uma presença ativa desta dialética, não somente no momento mediano do processo animado por ela, momento em que o dialético é posto como tal, mas também nos dois outros momentos, seus dois extremos afirmando-se como positivos. Certamente, os três lados de tudo o que tem sentido e ser: o lado do entendimento, o lado da razão negativa e o lado da razão positiva não constituem as partes do ser e do sentido, mas precisamente os momentos, quer dizer dos aspectos, sempre presentes e ativos em sua totalização constantemente reiterada sob a preponderância, a cada vez, de um dentre eles. Por exemplo, o entendimento é justamente o que faz de toda a dialética um percurso regrado, um discurso coerente, idêntico a si mesmo, bem como em seu momento dialético e seu momento especulativo. Mas Hegel parece ir mais longe estendendo a ação preponderante do momento mediano nos momentos extremos, da partida e da chegada, da dialética. Ele acentua que a posição inicial para o entendimento do idêntico à si ou do universal como tal, ainda não diferenciado ou particularizado, é o resultado de uma negação, aquela da identidade sincrética do dado imediato, de início sensível: [o espírito] é o negativo, o que constitui a qualidade tanto do entendimento quanto da razão dialética – ele nega o simples e assim ele põe a diferença determinada do entendimento[6]. A posição da identidade como tal, puro pensamento, procede assim de uma negação da identidade misturada à diferença oferecida pela consciência sensível ou representativa, e Hegel caracteriza bem o entendimento como poder de distinção e separação. É que toda atividade muda o que é, logo o nega, e a atividade que se põe inicial é uma negação. Igualmente, a atividade que se põe terminal, propriamente especulativa, é de forma literal apresentada como o efeito direto da negação do negativo, portanto do dialético realizado: Esta negatividade é, enquanto a contradição suprimindo-se, a restauração da primeira imediatidade, da universalidade simples; por que, imediatamente [nós destacamos], o Outro do Outro, o negativo do negativo, é o positivo, o idêntico, o universal.[7] Ao que seria necessário acrescentar que a totalidade onde se fecha positivamente o movimento dialético não é uma totalidade em repouso, mas o agir absoluto, ou, em outros termos, a negatividade mediatizando-se. O saber absoluto não tem sua verdade — como Kojève o afirmava estranhamente — no ser, fixando e imobilizando seu devenir, do Livro, mas na leitura incessantemente atualizada deste Livro, na qual o espírito interioriza seu cumprimento. O ser absoluto do espírito abriga seu agir infinito, agir sobre si então constantemente relançado e vivificado[8]. O especulativo, que não é, propriamente falando, como especulação, subjetividade ou personalidade, nem coisa ou objetividade, mesmo espiritual, se dialetiza assim de parte a parte, dado que a natureza da personalidade pura, perfeitamente refletida nela mesma porque ela realiza o sentido total, é  - como o escreve Hegel – a dialética absoluta?[9]

Os três [pontos] que acabam de ser examinados da dilatação hegeliana da dialética, enquanto, de uma parte, aquilo que é aplicado ao ser absoluto mesmo e que, de outra parte, ela é, em sua negatividade, erigida em princípio de todo o desenvolvimento deste ser, não correm o risco contudo de fazer-lhe perder o seu sentido estrito e seu caráter rigoroso? Tal é assim a questão que se põe então. Por que a dialética, entendida stricto sensu e modo necessário, é que mobiliza, não a negatividade simplesmente formal de todo o agir, enquanto tal, aí compreendido o agir expressando uma superabundância de ser e de positividade junto ao ser, por aí infinito, que se nega, e isto, livremente, mas a negatividade real, que traduzindo uma insuficiência de ser e significando o ser negado do ser nisso finito, torna necessária a afirmação do ser infinito em uma discursividade por aí científica. Ora, a livre síntese da dialética absolutizada não corre o risco de separar a identificação analítica necessitante, presente na dialética estrita do finito? Mas, então, a preocupação hegeliana de cientificidade que esta satisfez por sua discursividade ao mesmo tempo analítica, necessitante, e sintética, enriquecedora, não faz limitar ou determinar a abertura da dialética ascendente do finito e sobre a dialética descendente do infinito para a expressão da última através do único quadro da primeira? E por aí, indiretamente, liberar a auto-posição prioritária essencial ao absoluto tomado e considerado por si mesmo de todo imperialismo dialético, ao ponto mesmo de conduzir, inversamente, também à afirmação da dialética estrita do finito pela atualização desta livre auto-posição que é o absoluto?

 

A dialética descendente do absoluto não pode se desenvolver por ela mesma em um discurso científico. O absoluto em sua totalidade refletida em Si, isto é, em sua liberdade, não pode pôr suas determinações ou limitações em uma emanação ou uma criação, senão livremente. Se a posição do ser do abstrato ou do separado, como tal contraditório e portanto sem ser, requer necessariamente a posição, como ser capaz de o fazer ser, do Si concreto que o nega, ao contrário, a posição deste, como do ser absoluto, autosubsistente e suficiente, não exige por ela mesma nenhuma posição. Seguramente, a autoposição dele mesmo que é o Si absoluto é imediatamente aquela do qual ele é a totalização, mas esta auto-posição total do absoluto, em verdade imediata, idêntica a si, eterna, não pode se analisar na finitude de uma discursividade, e de uma discursividade necessária, que em explorando a virtude científica da dialética ascendente donde ela proveio em sua automanifestação precisamente finita. É certamente por uma tal exploração que os ensaios de leitura descendente da Enciclopédia hegeliana — pensemos, por exemplo, naquela de T. Litt — podem apresentar seu discurso como não arbitrário. A ausência de cientificidade é, certamente, o que leva Hegel a rejeitar toda exposição emanantista do auto-desenvolvimento do absoluto. Para ele, o saber absoluto não pode se compreender e justificar-se em sua atualização do absoluto senão dando-se por conteúdo teórico seu advir finito à sua eterna infinitude. O absoluto não é propriamente saber dele mesmo senão se expondo não numa emanação analisadora, mas numa evolução sintetisante de si mesmo. Para dizer a verdade, Hegel pensa elevar-se além do unilateralismo ao qual parece condenar uma tal oposição, entre os termos da qual o filósofo deveria escolher, impedindo assim à filosofia  científica de realizar sua tarefa reconciliadora imposta pela idéia de um saber absoluto. Se isto, com efeito, não pode se expressar senão na forma científica da dialética estritamente dialética que é a dialética ascendente, ele fundamenta nesta, e como seu conteúdo último, a afirmação do infinito fundador do finito, uma afirmação cuja dialética descendente quer ser a atualização discursiva, mesmo se sua atualização adequada não pode ser apenas intuitiva; quer dizer, propriamente falando, não verdadeiramente dialética.

Em verdade, a dialética hegeliana entrecruza-se certamente, em sua forma cientificamente ascendente, com a dialética ascendente ou evolutiva e com a dialética descendente ou emanantista: Cada uma dessas formas é unilateral; elas são simultâneas; o processo divino eterno [que é ele mesmo e seu Outro, temporal, humano, finito] é uma corrente escoando-se segundo duas direções opostas que se reencontram e penetram sem reserva para tornar-se apenas um.[10] O processo dialético hegeliano funda sobre a auto-negação do finito a autoposição do infinito como do que se funda ele mesmo, fundando o finito e sua negação:  O resultado se nega como resultado, está nele mesmo o contragolpe consistindo para ele em pressupor-se [como ser, etc] e em suprimir esta pressuposição – por que ela está em si posta pelo resultado – como pressuposição, e em coloca-la como um ser- posto.[11] Assim, o imediato se suprime não somente pela marcha ou método do saber absoluto, que se desenvolve e mediatisa ele mesmo em suas implicações, mas sobretudo pelo conteúdo verdadeiro, no qual aquela se desenvolve finalmente, e que é o infinito pondo-se como princípio primeiro de tudo: Esta marcha bem como sua supressão são, cada uma, um momento, uma determinação no próprio conteúdo absoluto: todas duas juntas constituem a atividade de Deus nele mesmo.[12] É o que a Filosofia da Religião exprime colocando em Deus, a Ciência da lógica o formula como a verdade do sentido absoluto do ser, de o ser o saber absoluto: o método dialético onde este se completa entrelaça-se no círculo da fundação progressiva, a partir do começo, de um resultado que, fundado como o fundamento deste começo e de sua determinação crescente progressiva, designa aquela bem antes como a fundação regressiva deduzida de início[13]. Esta implicação do princípio da dialética descendente, do próprio absoluto, na atualização concreta da dialética ascendente impede de absolutizar esta como esgotando o método especulativo e requer, bem antes, fixar o papel nela, através de toda sua cientificidade reconhecida, da autoposição do absoluto. Merece particular consideração que se rejubile ou se lamente uma tal relativização do alcance da negatividade dialética, assim como se pode fazer ou tentar-se fazê-lo nas diversas interpretações do empreendimento hegeliano, que a autoposição do absoluto, então somente pretendida, se reduzia nela à auto-negação do finito, ou, em outros termos, o especulativo ao dialético. Por exemplo, não se saberia ver, na fundação necessária da afirmação do absoluto, a negação daquela como auto-afirmação ou livre afirmação dele próprio, argumentando, num discurso confundindo os lugares dos conteúdos afirmados, que tal afirmação da necessidade da existência da liberdade negava o exercício. Hegel estabeleceu dialeticamente que o ser apenas pode ser arrancado de sua contradição se ele no fundo é liberdade: se ele não era tal, mas, somente necessidade, ele não seria. A dialética não destrói a liberdade, mas a fundamenta como o que somente pode fundar todo o resto, aqui compreendido o ser e o pensamento em sua necessidade, e in fine a necessidade ainda presente no cume dialético da assunção pensante do ser.

Se a dialética, como momento mediano da diferença ou da negatividade no pensamento de si do absoluto, é a expressão, no elemento de sua diferença consigo ou através de sua finitude, da identidade absoluta ou infinita da identidade consigo, infinitude ou positividade, e da diferença consigo, negatividade ou finitude, que é o absoluto, ela deve deixar aquele se manifestar como absoluto ainda no coração dela própria e, então fazer-se levar, em toda sua negatividade, pela autoposição da razão. Em seu início, a dialética repousa sobre uma tal autoposição da razão em seu ser. Já tenho feito observar que Hegel, que sublinha que o ser e o nada sempre passados imediatamente um no outro, ou são de início e de resto, tomados neles mesmos, idênticos, escolhe, decide portanto, sem razão objetiva, tendo um conteúdo aqui ausente, de pôr sua identidade como sendo no seu fundo ser e não nada: a autoposição pura, imediata, carrega a autonegação então mediatizada. Decisão confirmada no fim da autoposição do ser em seu sentido, a Idéia lógica, pois aquele, re-põe imediatamente sua totalidade refletida em um Si no e como um novo ser, e isso mesmo se o conteúdo deste ser é a negatividade natural. Mas é ao longo de todo o processo dialético que a autoposição da razão em seu ser positivo, isto é como identificação, fixa a negatividade dialética que a faz progredir através de si própria. Tenho tentado outrora mostrar que o sentido positivo da autonegação do negativo, que é sempre transcendente em relação a este conteúdo, é descoberto, ou, mais fortemente, inventado, enquanto unidade concreta nova, dando, ao reconciliá-los, um sentido novo aos momentos contraditórios nos quais explodiu o sentido precedente do ser. É sobre a base de um positivo livremente afirmado e reafirmado que a negatividade pode desdobrar sua necessidade. Bem longe, portanto, de a negatividade esgotar o absoluto, é este que, enquanto sua autoposição excede sua autonegação, intervém para assegurar esta última no coração mesmo da dialética. Para Hegel, a liberdade absoluta carrega a necessidade em toda a sua negatividade. Certamente, o absoluto não é espírito senão por sua negatividade absoluta, mas o espírito não é absoluto, ou seja absolutamente espírito, senão por sua auto-posição. A negatividade infinita ou subjetividade onde culmina a dialética não pode por em causa a afirmação infinita ou substancial do absoluto. A especulação não pode se reduzir à implementação de seu momento dialético, por importante que seja este, a subjetividade relativa do absoluto não deve ocultar a absolutidade substancial do sujeito.

 

            De maneira alguma se tratou, nestas observações, sobre o sentido da dialética na atualização do absoluto hegeliano, de moderar a insistência de Hegel sobre a virtude científica – e o absoluto é saber de si – daquela, cuja ignorância por Espinosa o fez absolutizar ou substancializar, sob o nome de Deus, a necessidade natural puramente positiva da identificação a si, ou seja, uma simples abstração da necessidade. Contra a voga dos neo-spinosismos, pelo menos pretendidos, da identidade, mesmo das afirmações infra-especulativas do saber imediato, Hegel incessantemente reclamou que fosse levada em conta a negação verdadeiramente como tal, refletida em si, constitutiva da subjetividade. Pensar o absoluto como sujeito – o que exige a dialetização do pensamento – foi certamente sua palavra de ordem constante. Mas sua condenação, intensificada do subjetivismo, afirmação truncada de um sujeito que não realiza positivamente sua infinita negatividade na universalização de sua particularidade, foi junto com a lembrança igualmente reforçado que o absoluto ou o espírito absoluto é inicialmente sua autoposição substancial. É em sua substancialidade ou positividade universal que este espírito absoluto deve fazer-se sujeito, assumindo toda sua negatividade singularizante, por que Deus permanece substância absoluta e o permanece em todo desenvolvimento [de si].[14] Certamente, ele deve determinar-se como sujeito – é isto o que não faz o Deus de Espinosa - mas permanecendo substância. Uma  tal exigência já era contida, certamente, também na injunção endereçada por Hegel ao saber de si absoluto, no mais forte de seu combate contra a filosofia da identidade, em uma célebre passagem do Prefácio da Fenomenologia do Espírito. Aí se apresentava como tarefa, aos seus olhos, então prioritária, não a de pensar a verdade como substância, mas aquela de pensá-la também e igualmente como sujeito, o que pressupunha que não era de forma alguma questão de não pensá-la como substância. Ser Heráclito sim, mas sendo antes de tudo Parmênides! Breve, inscrever o negativo no positivo, a autonegação na autoposição, a dialética na especulação, satisfazendo de início, à exigência de identidade, para começar: abstrata e para terminar: concreta, do entendimento e da razão positiva, eis aí o que foi a palavra de ordem concreta de Hegel.

 

Notas

[1] . N. Hartmann, “Hegel e o problema da dialética do real”, Revue de métaphysique et de morale, número especial dedicado a Hgel, julho-setembro 1931, A. Colin, p. 14.

[2] . Ibid., p. 16.

[3] . Sobre a distinção e a relação dos dois graus da dialética mediatizando a positividade universal e a positividade total de todo desenvolvimento do sentido e do ser, nos reportamos ao último capítulo da Ciência da Lógica, dedicado a “Idéia absoluta”: “Porque o termo primeiro ou imediato é o conceito em si, que é pois também somente em si o negativo, o momento dialético nele consiste nisso que a diferença, que ele contém em si, é posta nele. O segundo termo, pelo contrário, é ele mesmo, o determinado, a diferença ou a Relação; é porque o momento dialético consiste na posição da unidade que é contida nele [...]. O segundo negativo, o negativo do negativo, o qual nós chegamos, é esta supressão da contradição” (Hegel, Wissenschaft der Logik WL -, III, ed. Lasson, II Hambourg, reed., 1963, p. 496 ss).

[4] . Hegel, Leçons sur l’histoire de la philosophie, tradução Robert Garniron, I, Paris, Vrin, 1971, p. 151.

[5] . Ibid., p. 112.

[6]. Id. Wissenschaft der Logik WL -. Prefácio da 1ª edição, ed. G. Lasson, I, reedição de 1963, Hamburgo, F. Meiner Verlag, p. 6.

[7]. Ibid., II, p. 497.

[8] . Cf. Ibid., p. 499

[9] Ibid., p. 502

[10] . Id., Encyclopédie des sciences philosophiques,  II. Philosophie de la Nature, ed..1830, Addition § 252, tradução Bernard Bourgeois, Paris Vrin, 2004, p. 356.

[11] Id., Vorlesungen über die Philosophie der Religion – Ph R -, ed. G. Lasson, I 1, reed. 1996, Hamburgo, F. Meiner Verlag, p. 174.

[12] Ibid., p. 175.

[13] . Id., WL, II, p. 503

[14] . Id., PhR, I, 1, p. 194.

voltar   |     topo