DESCARTES E O GÊNIO MALIGNO

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Voltaire Schilling

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O que faz com que inúmeras vezes gente muito inteligente, até de gênio, cometa erros tão evidentes? Como era possível esse tipo de coisa ocorrer? Descartes deu então para imaginar, na sua rimeira meditação, a existência de um gênio maligno, um enganador, enviado por Deus, de propósito, para nos fazer cometer desatinos, para mostrar a nossa falibilidade. Evitando assim que a soberba e a arrogância do ser humano tente emparelhar com a do Todo-Poderoso.

 

Atrás de um Cargo

"Suporei que...certo gênio maligno de enorme poder e astúcia tenha empregado todas as suas energias para enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores são meras ilusões de sonhos por ele concebidos com a finalidade de enlear-me o juízo".

Descartes - Meditações, 1641

 

Era um tempo em que seguramente os fundamentalistas liberais de hoje adorariam viver. No século XVII, os cargos públicos eram colocados à venda. Compravam-nos ao preço do mercado. Por volta de junho de 1625, sabendo da disponibilidade de um desses, o de oficial de justiça da região de Châtelleraut, sua terra natal, o jovem René Descartes tentou arrumar o dinheiro necessário para sacramentar-lhe a compra. Faltaram-lhe porém uma seis mil coroas para integralizar o montante. Não foi problema, pois um amigo da família prontamente ofereceu-lhe uma soma sem nenhuma exigência de juros. Entretanto, não foram os dinheiros faltantes que o preocuparam. Descartes sentiu-se com poucas condições para assumir a empreitada devido a não sentir-se seguro dos seus conhecimentos jurídicos. A carta que enviou ao pai, que estava em Paris, pedindo conselhos, certamente teve uma resposta negativa. Nem o velho Joaquim Descartes tinha lá essas confianças nas habilitações do filho. Desde então, ele desistiu de qualquer carreira jurídica e passou a viver dos bens herdados da sua mãe, dedicando-se ao ócio produtivo.

 

Em Paris dos Livres-pensadores

Fixou-se em Paris, no Fauborg Saint-Germain, num hotelzinho chamado Les Trois Chappelets. Precedido pela fama de cientista e matemático inteligentíssimo, as portas dos homens de luzes não demoraram a abrir-se para ele. Em pouco tempo tout Paris marchava pela Rue du Four, onde ele morava, para conversar com aquele gênio vindo da província (nascera em La Haya, próximo a Tours, em 1596). O mundo das idéias estava um tumulto, um caos.

 

Reformadores e Céticos

A reforma religiosa, que já celebrava um século, provocara um terremoto de proporções impressionantes. O velho edifício teológico-filosófico medieval, assentado na ciência de Aristóteles, defendido por uma legião de sacerdotes e de escolásticos, protegidos pelo papado, rangia por toda parte. Ninguém tinha mais firmeza em nada. Para acalorar ainda mais as coisas, o maior escrito da França, o filósofo Montaigne, o autor dos Ensaios (1580), ao retirar-se para o seu castelo, tornando moda entre os gentilshommes o cultivo do ócio solitário, pregara na porta da sua biblioteca a enigmática pergunta Que sai-je?, que sei eu? Justamente isso é o que Descartes passou a dedicar-se a responder. O que estava em moda entre os libertinos eruditos que o cercavam era dizer que "não se pode conhecer nada". Haviam ressuscitado o pensamento de um tal de Enesidemo, um filósofo cético que vivera entre 100 a 40 a.C., um seguidor de Pirro de Élis, um daqueles gregos excêntricos que suspeitava que ele mesmo estivesse vivo.

 

Exageros da Desconfiança

Como conseqüência dessa extrema desconfiança, recomendava Pirro (365-275 a.C.), devemos nos abster de ter crenças ou opiniões firmes, pois nunca se chega de fato à verdade. Para que então embarcar nos tormentos da inquietação intelectual? O melhor a fazer, para ter-se o direito à mais autêntica das felicidades, é retirar-se para uma posição silenciosa, contemplativa, em busca da ataraxia, a plenitude da inanição, de ficar-se impassível perante o que passa a nossa volta, tal como um guru nirvânico.

Os neopirrônicos do tempo de Descartes propunham então que se suspendesse o juízo sobre qualquer questão conflitiva, porque afinal de contas, insistiam eles, dificilmente podemos conhecer algum coisa.

 

Restabelecer a confiança e a certeza

Descartes não se conformou com esse quadro de "incredulidade extravagante". Era impossível, pensou, estruturar-se qualquer saber, conhecimento ou ciência, se tudo era irreal ou fantasia criada pelos sentidos. Aquele tipo de ceticismo conduzia à autodestruição. As certezas passadas haviam sido transformadas em probabilidades, em opiniões, não em verdades. Entrevistou-se então com o todo-poderoso cardeal Bérulle, um totem da contra-reforma francesa, que ficou impressionado com aquele homem mirrado, feio e falante, de pouco mais de trinta anos, que o visitou em 1628. Não se sabe se ele sondou sobre o seu plano. Iria retirar-se para algum lugar e devolver a confiança e a certeza aos homens.

 

Mudando-se para a Holanda

Descartes, deixando Paris, mudou-se para a Holanda, um oásis da liberdade de pensamento numa Europa assediada pelos fanatismos, onde aliás ele já estivera dez anos antes para aprender o ofício militar, e onde ele se instalaria praticamente o restante dos vinte anos seguintes da sua vida. Outras razões talvez pesaram nesta decisão. Como viver seriamente como filósofo em meio às delícias e às extravagância de Paris? Não era bem a gente de batina quem poderia perturbá-lo, mas as de saias. Não era o incenso que o atrapalhava, mas os perfumes perigosos. Então foi lá nas terras baixas, úmidas e frias da Holanda, que ele começou a especular na possibilidade da existência de um gênio maligno, colocado por Deus bem perto de nós para nos levar ao engano. Não eram só as nossa crenças e antigas convicções que estavam erradas, até a nossa aparelhagem de pensar poderia ser facilmente enganada.

 

Penso logo existo

O homem assim deixava de ter qualquer segurança, transformado num eterno poço de incertezas e receios mil, muito mais inclinado ao erro do que ao acerto. Porém, meditou ele, por maiores que sejam as descrenças, uma coisa sim todos nós podemos estar certos e firmes: nós existimos, nós pensamos (Cogito ergo sum). E sobre isso, esta única e inabalável certeza, era possível erguer-se o novo edifício da filosofia moderna. A dúvida levada aos extremos gerava a verdade. No entanto, a suspeita de haver um gênio maligno rondando ao nosso redor, nos levando aos desatinos, nunca se dissipou de todo. Quando uma potência como Descartes não se reconheceu competente para sequer assumir as modestas atribuições de um oficial de justiça de um pequena província da França, o que dizer desses que hoje nos governam, desta ignorância pomposa, engravatada e arrogante, que, em toda a parte, toma foros de autoridade? Certamente tudo isso, diria ele se vivo ainda fosse, é seguramente obra do tal gênio maligno!

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