GRAMSCI E AS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS

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Professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp.

 

Houve época em que o estudo das relações internacionais foi atividade privativa de uma comunidade muito especial, que se organizava, como as aldeias antigas, em "metades", definidas segundo princípios simples de oposição. "Idealistas" vs. "realistas"; "liberais" vs. "neo-realistas" – termos denotativos de uma dualidade básica, que se manifesta ao longo do tempo sob diferentes figuras, mas se repõe reiteradamente, índice que é de uma tensão cujo fundamento reside em outro lugar. Este, o antagonismo em torno do qual se constituíram as Relações Internacionais como campo diferenciado de atividade acadêmica, que se consolida no entre-guerras e, desde então, vem se reproduzindo nas ilhargas dos departamentos de Ciência Política e em múltiplos think-tanks, em conexão estreita com os órgãos encarregados da formulação e implementação da política internacional do Estado norte-americano.

Não é bem assim. Fora dos Estados Unidos, indivíduos e grupos trabalharam sistematicamente na área e afirmaram-se pela importância da contribuição que legaram. Bastaria citar, na França, o nome de Raymond Aron e, do outro lado do canal da Mancha, os de Martin Wight e Hedley Bull, luminares da "escola inglesa", à qual, aliás, devemos associar também E. H. Carr, grande percursor do realismo moderno.

É verdade que, não obstante a qualidade de sua produção e o reconhecimento que tenham podido alcançar, com exceção de Carr esses autores mantiveram-se sempre em posição mais ou menos marginal, completamente ofuscados que foram pela supremacia americana na área. Tal supremacia chegou a ser grande o bastante para permitir a um observador-participante de trajetória eminentemente cosmopolita referir-se a esta como uma disciplina nacional [1].

Contudo, mesmo no espaço acadêmico americano, o quadro é muito mais complexo do que o esquematismo da caracterização acima parece indicar. Para início de conversa, as rotulações acima referidas não são neutras. Elas surgem como meios e resultados do jogo de rivalidades que se trava no interior da comunidade. Nesse sentido, o que ocultam é muitas vezes mais importante do que revelam. Parece ser este o caso da noção de "idealismo". Cunhada nos anos 30 para caracterizar um conjunto de autores – publicistas, a maioria deles – que respondia aos horrores da I Guerra Munidal denunciando a velha "política de poder" e urgindo a mobilização dos recursos da razão esclarecida na busca de soluções institucionais capazes de garantir um futuro de paz sustentável – a expressão teve desde o primeiro instante uma função primordialmente polêmica. Com efeito, no ambiente de consternação e ceticismo que se seguiu à crise de 1930, ela permitia marcar como ingênuos incorrigíveis os autores intelectuais das experiências organizacionais fracassadas – entre elas, a Liga das Nações – e apontar razões plausíveis para os desastres que eles teriam preparado. Como se sabe, essa operação foi realizada com extraoridnário sucesso. Por mais de 50 anos, o termo "idealismo" funcionou no campo das relações internacionais como sinal de um interdito, apagando inteiramente da memória institucional os personagens reais a que ele aludia – estes homens precisos, suas idéias, suas razões definidas para sustentá-las. Apenas recentemente, o esquecimento a que esta geração de "reformadores internacionais" foi relegada começa a ser quebrado. E quando olhados de perto eles revelam em muitos aspectos uma desconcertante atualidade [2].

De outra parte, entre as diversas "figuras" assumidas por cada um dos lados daquela dualidade – "idealismo"/ "liberalismo" vs. "realismo clássico"/"neo-realismo", ou "realismo estrutural" –, as diferenças não são puramente formais. A oposição constitutiva se repõe continuamente, mas nesse processo cada elemento do par se transforma internamente. A passagem de um momento para o outro – do realismo clássico ao neo-realismo, por exemplo – é marcada por mudanças significativas que afetam o estilo intelectual, a linguagem teórica, as ferramentas analíticas privilegiadas e a própria definição do interesse cognitivo. Enquanto o velho realismo fundava-se em uma antropologia pessimista, fazia apelo sistemático à história e almejava indicar caminhos para a resolução de problemas prático-políticos, o neo-realismo dispensa considerações definidas sobre a natureza humana, mimetiza a economia neoclássica e em nome da dignidade acadêmica aceita o sacrifício da irrelevância política [3].

Com essas ressalvas em mente, creio seja possível reter a caracterização proposta no início deste artigo. Até algum tempo atrás, no conjunto das Ciências Sociais, a área das Relações Internacionais constituía um campo relativamente fechado, pouco permeável, no qual se encontravam em permanente confronto representantes distintos de duas grandes tradições.

Nas duas últimas décadas, porém, esse quadro vem sendo profundamente alterado. A tensão original continua existindo, mas os termos do debate na área não são mais ditados por ela. Neste último período as barreiras que cercavam o campo dos estudos internacionais foram aos poucos caindo, e ele passou a abrir-se para uma pluralidade de novas perspectivas, as quais, mantendo uma interlocução densa com o trabalho desenvolvido em outros domínios das Ciências Sociais, redefinem a agenda introduzindo outros critérios de relevância e novos blocos temáticos.

Vários fatores terão contribuído para tal deslocamento. Não caberia examiná-los neste lugar, mas convém dizer uma palavra sobre dois deles que no meu entender devem ter desempenhado papel de destaque.

O primeiro diz respeito às mudanças que vêm se processando desde o final dos anos 60 no universo da Ciência Política norte-americana, com o declínio da hegemonia behaviorista à qual estão associados nomes tão eminentes como os de David Easton e Robert Dahl. Sem que jamais tenha se exercido completamente (nos Departamentos de Ciência Política das melhores universidades americanas prevalecia uma espécie de armistício entre os estudiosos da "Teoria Política" – no sentido tradicional do termo, como cultivo da tradição multissecular do pensamento político ocidental – e os praticantes da investigação empírica, estes sim atraídos pelo projeto "revolucionário" de transformar a Política em uma "ciência fática", nos moldes oferecidos pela reconstrução neopositivista das ciências naturais), na atmosfera política e ideologicamente saturada da época a ascendência behaviorista passou a ser cada vez mais contestada. No ideal de ciência que propunha –valorativamente neutra; autônoma em relação aos imperativos da razão prática – e no modelo de explicação que consagrava – nomológico-dedutivo, fechada às exigências interpretativas inerentes à análise do social [4].

O tema da Ciência Política nos Estados Unidos – suas origens, sua trajetória, sua vocação – vem despertando crescente interesse [5]. Não poderia me estender na matéria. Para propósitos deste artigo basta dizer que, no decurso do processo de mudança a que me referi, a unidade da disciplina ficou comprometida, a tal ponto que um observador privilegiado – ele mesmo figura emblemática nessa história – pôde recorrer à imagem de um conjunto de seitas sentadas em mesas separadas para caracterizá-la [6]. Como subárea da Ciência Política, o campo das relações internacionais não poderia deixar de ser afetado por tal resultado.

O segundo fator vem de fora do espaço acadêmico: ele consiste na violento impacto teórico causado pelo fim da Guerra Fria e a derrocada do bloco soviético. A perplexidade provocada por esses fatos está bem expressa no comentário de Robert Tucker, importante autor realista e elo de ligação entre duas gerações dessa escola.

The sudden end of the conflict has /.../ given rise to a situation for which it is difficult to find a real precedent. Arguments to the contrary notwithstanding, there does not appear to be an instructive modern historical parallel of a hegemonic conflict simply being terminated by the default in time of peace of one side. Yet this is what has happened in the present instance /.../ the Soviet Union has largely withdrawn from the conflict that had come to be seen as almost interminable. In doing so, it has transformed the landscape of world politics almost beyond recognition. It has turned believers in the political truths of the postwar world into skeptics who sense, even when unwilling to acknowledge as such, that they lost their once secure moorings [7].

Donnelly tem razão quando observa que o choque maior foi recebido pelos neo-realistas, os quais desde então perderam a supremacia alcançada nos anos 70 com base nas inovações teóricas introduzidas por Kenneth Waltz [8]. Mas isto não elimina o fato de que nenhuma teoria concorrente foi capaz de prever o fim da Guerra Fria e de que ainda permanecemos sem uma boa explicação para esse fenômeno histórico [9].

Seja como for, na década de 90 assistimos ao surgimento de um sem número de formas de discurso e propostas teóricas novas, que nem sempre se comunicam facilmente entre si e com os ocupantes mais antigos da área, mas que convivem lado a lado com estes, sem enfrentar problemas mais graves de legitimidade. "Construcionismo", "Teoria Crítica", "Abordagens Interpretativistas", "Teorias Normativas", "Feminismo", "Marxismos vários" – esses e outros "ismos" passam a habitar o campo. Para retomar a metáfora empregada no início deste artigo, mais do que a uma pequena aldeia voltada sobre si mesma e cerrada aos estranhos pela barreira de sua expressão dialetal, o campo de estudos internacionais assemalha-se hoje a uma zona franca, um cruzamento, um lugar onde se encontram viajantes de variegada procedência, falando idiomas os mais diferentes e produzindo um burburinho que lembra a feira medieval [10].

A obra que a partir de agora passo a considerar é uma boa ilustração do pluralismo característico da situação presente na área. International Organization and Industrial Change, de Craig N. Murphy [11], inscreve-se no projeto formulado originalmente por Robert W. Cox de redefinir o conjunto da problemática das relações internacionais mobilizando sistematicamente para esse efeito as categorias centrais do pensamento de Antonio Gramsci. Antes de comentar o livro, talvez convenha dizer uma breve palavra sobre este programa de trabalho.

Como se sabe, na multiplicidade das anotações registradas em seus cadernos Gramsci reservou algumas ao tema da política internacional. Não é este, porém, o ponto de partida adotado pelos neogramscianos que trabalham no campo das relações internacionais. Embora algumas dessas notas sejam luminosas, o seu volume é reduzido e elas parecem ter ocupado uma posição secundária na agenda de seu autor. Salvo melhor juízo, o pensamento político de Gramsci tinha por referência básica as formações sociais capitalistas em sua dimensão nacional. Este é o marco de referência no interior do qual ganham significado seus conceitos básicos: "sociedade civil" e "sociedade política", "hegemonia", "bloco histórico", "crise orgânica", etc. – todos eles produzidos com a finalidade de fazer avançar a reflexão sobre os problemas históricos da unidade nacional italiana, da transição incompleta e conservadora do capitalismo neste país, da derrota da revolução e da vitória do fascismo como solução para a grande crise que estala no imediato pós-guerra.

Mesmo assim, o que sobretudo interessa aos neogramscianos são aquelas noções básicas, as quais eles acreditam poder empregar legitimamente em suas análises, em virtude das transformações recentes do capitalismo, que se somam para dar peso crescente a processos e forças transnacionais. O que Robert Cox, Stephen Gill e o próprio Craig Murphy, entre outros, se propõem fazer é ajustar semanticamente as categorias de Gramsci de forma a torná-las operativas no contexto das relações internacionais [12]. Extraída de uma nota do trabalho que dá a partida para esse exercício, a passagem a seguir apresenta de forma límpida o argumento que justifica este passo:

The term "hegemony" in Gramsci`s work is linked to debates in the international Communist movement /.../ and in this connection its application is specifically to classes. The form of the concept, however, draws upon his reading of Machiavelli and is not restricted to class relations; it has a broader potential applicability. Gramsci`s adjustment of Machiavellian ideas to the realities of the world he knews was an exercise in dialetics /.../ It is an appropriate continuation of his method to perceive the applicability of the concept to world order structures as suggested here [13].

Não vou apresentar aqui as reformulações conceituais que resultam de tal postulado. Nem vou discutir se a apropriação que Robert Cox e seus pares fazem da obra de Gramsci é mais ou menos legítima. Esta questão nos levaria ao debate sem fim sobre a correta interpretação do pensamento desse autor notavelmente criativo e tão pouco sistemático. O problema da fidelidade às fontes não interessa. Importa é saber o que o ensaio de aplicação dos velhos conceitos a esta matéria nova produz e qual a sua qualidade.

International Organization and Industrial Change. Global Governance since 1850. Como sugerido no subtítulo, a questão mais geral suscitada pela obra de Murphy diz respeito à "governança global" – conjunto de princípios, normas e práticas mais ou menos institucionalizadas que asseguram a reprodução relativamente pacífica da ordem capitalista mundial. Mas neste livro ela é considerada de um ângulo muito preciso: o das organizações intergovernamentais.

O mundo contemporâneo está povoado de tais organismos. Alguns têm alcance muito geral e são bem conhecidos do público: o FMI, o Banco Mundial e a OMC, por exemplo; outros são mais especializados, suas siglas pouco significando para o comum dos mortais. Mas – a pergunta ocorre ao leitor mais cético – será que o estudo dessas entidades constitui uma boa porta de entrada para a discussão daquele problema geral?

Por razões diferentes, realistas radicais e liberais fundamentalistas diriam que não. Assim, do ponto de vista lógico, o primeiro cuidado de Murphy deve ser o de responder a questões desta natureza: o que se propõem esses organismos? Eles são efetivos? Eles são necessários?

Murphy responde positivamente a cada uma dessas interrogações e, em dois lugares do livro, dedica-se à tarefa de refutar argumentos contrários. Eis aqui uma pequena amostra das objeções consideradas: "os capitalistas poderiam ter formado o mercado europeu por si mesmos"; "acordos bilaterais poderiam ter bastado"; "as grandes potências poderiam tê-lo feito elas próprias" [14] – todos reportados à discussão sobre o papel das Public Unions na constituição da infra-estrutura do capitalismo europeu no final do século XIX. "Os Estados Unidos fizeram sozinhos"; "Era tudo uma questão de mercado e de política interna nos países da OCDE" [15] – ambos referidos ao sistema institucional montado sob a regência dos Estados Unidos no imediato pós-guerra, o segundo deles, mais sofisticado, sendo endereçado apenas às "instituições de governança global" concebidas para atenuar conflitos sociais.

A escassez de tempo e espaço me impede de seguir o autor em sua réplica. Mas não é grave. Para efeitos da exposição que se faz aqui, importante é a proposição geral que os contra-argumentos avançados apóiam. Em suas palavras:

The scale of capitalism has changed with each new set of lead industries. Firms grew. Their markets grew. And the industrial world expanded. World organizations facilitated these changes in scale /.../ At the same time the world organizations, and the other systems of governance to which they point, have helped mitigate conflicts that go along with the expansion of the industrial system: they privileged some workers in the industrialized nations, insured investment in previously less developed countries /.../ The agencies have also helped perfect the state system itself by extending it to all parts of the globe /.../ In strengthening the nation-state and the state system, the global intergovernmental organizations (IGOs) of the UN era also helped encapsulate the major challenges to industrial capitalism, the Soviet and Chinese communist systems, for more than a generation. Today some of the same agencies have been charged with helping reincoporporate the postcommunist states into the capitalist world order [16].

Mas o argumento de Murphy não se atém a esse nível de generalidade. Especificando a indicação já avançada que relaciona organizações internacionais, mudança tecnológica e expansão de mercados, o autor vai enunciar explicitamente a versão mais forte de sua tese.

Instead of treating the nineteenth-century "Public International Unions", the League of Nations system, and the postwar UN system as the three successive generations of world organizations, we need to link their history to that of industry by saying that each new generation begins when an agency regulating a revolutionary new communication tecnology appears. In 1865 the agency was the International Telegraph Union (ITU), the first major Public International Union. In 1906 it was the Radiotelegraph Union (RTU), designed to regulate the airwaves. In 1964 it was Intelstat, the International Telecommunications Satelite Organization, a new kind of world organization, a global public utility, outside the UN system, providing part of the world communications infrastructure instead of just regulating services provided by others [17].

O argumento é claramente funcional. E isto fica bem visível no início e no fim do livro – quando o autor discute diferentes explicações para a relativa estabilidade do ordenamento internacional do pós-guerra, criticando realistas e marxistas por não reconhecerem a "eficácia" das instituições internacionais. Estas teriam suprido "déficits", suplementado os Estados e as forças do mercado no desempenho de três "tarefas" ("tasks") básicas: 1) "promover a indústria através da expansão dos mercados internacionais"; 2) "satisfazer/compensar potenciais oponentes das novas indústrias", e 3) "manter um equilíbrio estável do poder militar" (p. 42).

Tais funções comporiam a primeira dimensão a se ter em conta no estudo dos mecanismos regulatórios do "bloco histórico internacional liberal". As duas outras dimensões correspondem aos meios mobilizados para desempenhar aquelas funções, devendo ser analiticamente distinguidos uns dos outros de acordo com a sua natureza – predominantemente coercitiva ou consensual; e à esfera em que a ação regulatória se exerce: a) nível global (caso das associações transnacionais, p. ex.), b) grupo menor de Estados (ex. ajuda externa), c) âmbito de uma única soberania (governos coloniais), d) esfera de uma região, de setores, famílias, etc. dentro de cada país (p. 42).

Em consonância com esse esquema de análise, Murphy produz sucessivos quadros classificatórios de organizações internacionais em diferentes períodos históricos. Menciono alguns cabeçalhos para que se tenha idéia da amplitude do material organizado sob esses critérios e de seu grau de interesse. Assim: Tabela 2: World Organizations in 1914 (by main area of responsability and date of founding) (p. 47); Tabela 4: World organizations abolished before 1920 (with disposition of activities) (p. 83); Quadro 2: Task being carried out by Public International Unions in 1914 (p. 84); Tabela 6: New world organizations of the League and UN era (p. 154); A comparison of the tasks being carried out by world organizations in 1914 and 1970 (p. 190).

A análise é de corte funcional, repito, mas não inteiramente. A reprodução em escala ampliada da economia capitalista mundial "requer" a intervenção de organismos intergovernamentais. Mas nada assegura de antemão que tais entidades venham a surgir, consolidem-se e atendam efetivamente aquela exigência. As instituições internacionais – e as organizações em especial – não vêm à luz como emanações espontânea da operação dos mercados e dos dinamismos sociais que estes implicam. Elas resultam de ações de alcance estratégico informadas por visões de longo prazo e sustentadas por certa classe de agentes. Aqui a problemática gramsciana dos intelectuais.

Antes de abordar esse aspecto fundamental da obra de Murphy, convém recuperar o contexto em que ele se introduz. Com efeito, o problema dos agentes surge em conexão com o problema de explicar o padrão de emergência, desaparecimento e/ou persistência das organizações internacionais. Elas não existiram sempre nem se distribuem no tempo, segundo a data de nascimento, de forma retilínea. Pelo contrário, o movimento que descrevem é ondular. Como entendê-lo?

Murphy encontra no discurso de parte dos atores que estuda (representantes da versão crítica do liberalismo internacionalista) elementos de uma explicação aceitável.

If we follow the history of the critical tradition, we can see a process in which some liberals have learned about more and more of the conflicts that the larger liberal internationalist vision can obscure. /.../ The changing content of these critical theories suggests a broad, evolutionary explanation of both liberal internationalism and the world organizations that have been based on it. It is a theory consistent with E. Haas`s (1989) explanation of knowledge-driven changes whithin international institutions, and with Keohane`s (1984) explanation of international institutions in terms of their consequences for powerful states.

A teoria proposta por Keohane identifica atributos básicos do processo seletivo que dita quais inovações institucionais irão sobreviver. Este resultado se verifica quando uma coalizão suficientemente poderosa de governos nacionais reconhece que tem a ganhar com a cooperação interestatal propiciada pela instituição [18]. Murphy aceita o argumento, mas introduz uma qualificação importante:

Keohane`s work on international institutions concentrates only on the last twenty years. The longer history of world organizations demonstrates that it is not just national governments that must benefit, but also /.../ a sufficiently powerful coalition of social forces within and across national societies. From Kant`s day and throughout the nineteenth century the audience was almost always Europe`s aristocracy and also the cosmopolitan bourgeoisie whose interests were to be served by the proposed international institutions. After the turn of the century Hobson and Woolf addressed enlightened businessmen and the traditional state class, and also the newly powerful social democratic parties and the newer class of state functionaries responsible for bringing the masses into the new industrial state. Mary Parker Follet focused on another new class: professional managers operating within the giant industrial firms /.../

Coalitions of powerful states and social forces "select" international institutions to survive by remaining parties to agreements and by continuing to finance IGOs. The institutions that do not survive are those that key state members leave, stop financing, simply ignore, or fail to renew [19].

Como se vê, o caminho que leva da mudança tecnológica à constituição do quadro institucional "adequado" a elas não é direto. Até mesmo porque a integração internacional resultante causa deslocamentos e desequilíbrios econômicos e sociais nos países envolvidos, induzindo reações que muitas vezes se expressam em demandas de proteção e discursos isolacionistas. O surgimento e a persistência das organizações internacionais representam o somatório de vitórias das forças cosmopolitas numa seqüência de embates em que muitas vezes foram obrigadas a amargar dolorosas derrotas.

Um dos aspectos mais sugestivos do livro de Murphy são as indicações fenomenológicas que ele fornece sobre essas forças ... e seus opositores. É preciosa, por exemplo, a informação sobre o papel desempenhado por aliança de escritores de fama mundial, encabeçada por Victor Hugo, na defesa de normas mais estritas de copyright – fato que tem contrapartida na importância das indústrias de cinema e música popular no lobby pela redefinição do regime de propriedade intelectual no presente. Ou esta outra, a respeito das práticas monopolistas de Marconi, que prevented operators of its radios from communicating with sets using rival technologies – qualquer coincidência com Bill Gates não é mera coincidência – e motivou com isso a criação da Radiotelegraph Union [20].

Inovações nas técnicas de produção e nos meios de comunicação e transporte criam interesses na remoção dos obstáculos que impedem sua extensão ou – como no caso citado acima – permitem a apropriação monopolizada dos ganhos que elas proporcionam. Mas as organizações internacionais não são forjadas por essas forças. Elas são obras conscientes de uma classe especial de agentes: os intelectuais, no sentido gramsciano do termo.

Este é um dos temas centrais na análise de Murphy. Em todo o processo, os intelectuais desempenham papel protagônico, articulando iniciativas dispersas, concebendo planos grandiosos, soldando alianças sociais requeridas para o encaminhamento destes e, nesse sentido, operando como "arquitetos" de novos "blocos históricos" – outra noção gramsciana que lhe é muito cara.

Intellectual leaders do more than come up with ideas about the institutions of the next world order. To go back to the image of a historic bloc as a puzzle /.../ those who are trying reconstruct a historic bloc need to work on all the faces of the puzzle at once, putting together the ideology of the new order with its political institutions, defining its economic base, and, of course, the coalition of social forces that constitute the historic bloc qua alliance.

Como em Gramsci, o universo dos intelectuais é constitutivamente dividido, fragmentado. No caso, a oposição entre os agentes que se batem em torno do desenho institucional da ordem internacional é aquela que divide, de um lado, os "liberais internacionalistas" e, de outro, os "fundamentalistas liberais", que, como os seus pares hodiernos, apostam tudo nas "soluções de mercado". Na narrativa de Murphy, naturalmente, aos primeiros cabe o papel principal.

Initially the more successful liberal internationalist designers of world organizations have all focused on mobilizing the political leadership of national governments and powerful philantropists willing to act as sponsors and benefactors of new international institutions. The intellectual leaders have most often worked in the political space created within the institutions of international civil society established under the previous world order to push for the further developement of the same realm so that they can become an effective mechanism regulating the world economy in the next industrial epoch.

Throughout each of the world order crises, liberal internationalists have led transnational coalitions that pressed governments to call international conferences, establish international agreements, and create experimental IGOs to carry out two primary tasks essential to fulfilling the liberal vision.

The first has been to foster industry by creating and securing international markets for industrial goods. International agreements designed to link together the transportation and communication infrastucture needed as the physical base for an international market help complete this task, as do agreements defining tradable goods through industrial standards, rules protecting intellectual property, and rules directly governing international trade.

The second has been to manage potential conflicts with organized social forces which might oppose the further extension of the industrial system /.../ People tied to older industries, workers...

After convincing political leaders to establish institutions carrying out these tasks, liberal internationalists have relied on the institutions to develop powerful constituencies [21].

A consideração dos agentes e das relações que mantêm entre si permite qualificar a afirmação feita anteriormente sobre a natureza lógica do argumento de Murphy. Na realidade, ele combina explicação histórica e funcional.

É a conjugação sistemática desses dois elementos que organiza a parte mais rica de sua pesquisa, a saber: a reconstituição do processo histórico de formação dos organismos internacionais, o qual atravessa algumas fases claramente diferenciadas: a) conferências internacionais, convocadas tipicamente por reis, príncipes ou aristocratas poderosos – das quais resultavam comumente a constituição de grupos ad hoc para tratar dos temas em cada uma delas versados; b) organizações estáveis, mas de natureza privada; c) organizações intergovernamentais.

Digo que esta parte é a mais rica porque é nela que se expõe o essencial do material da pesquisa. Rica e sugestiva. Com efeito, Murphy mostra muito bem como iniciativas motivadas pelas preocupações privadas dos representantes maiores da "velha ordem" – prestígio, busca de reconhecimento, etc. – dão origem a organizações que, por atenderem a necessidades da ordem emergente, consolidam-se, institucionalizam-se, burocratizam-se e acabam sendo encampadas pelo poder estatal.

Nesse contexto, convém dizer uma palavra sobre o tratamento dado ao problema das orientações político-ideológicas nesse processo. Como já indiquei, elas são agrupadas em torno de duas grandes tendências: "liberais internacionalistas" e "fundamentalistas liberais" – os primeiros comportando ainda uma vertente crítica. Importaria agregar agora que, com o passar do tempo e com as mudanças já mencionadas no status das organizações (grupos de trabalho, num dos extremos; instituições intergovernamentais consolidadas, em outro), a natureza dos agentes que expressam as diferentes tendências se altera igualmente.

Para ficar no campo de onde saem os protagonistas dessa história (o liberalismo internacionalista), no início do processo a iniciativa é assumida por personalidades isoladas – intelectuais, técnicos, freqüentemente funcionários imaginativos –, que, percebendo antes e/ou mais agudamente que os demais a emergência de problemas novos em dada área da vida econômica e social, dedicavam-se a formular planos, muitas vezes quiméricos, para resolvê-los e a angariar apoio para as soluções que advogavam. Murphy refere-se a eles como "Construtores de Sistemas Públicos" ("Public System Builders"), tomando de empréstimo a noção cunhada por David Chandler, Jr. em seu estudo sobre a montagem da malha ferroviária nos Estados Unidos [22]. Bentham é um exemplo notório. Mas outros nomes menos conhecidos também representam dignamente a espécie: como John Wright, engenheiro anglo-irlandês, que trabalhou na construção da rede ferroviária em Illinois, EUA, e depois disso passou a defender a criação de um sistema ferroviário integrado em escala mundial como infra-estrutura para um mercado global de bens e receita certa para a edificação da paz universal em bases definitivas [23]. Ou James Lubin, empresário e filantropo americano, que defendia a introdução de um sistema de tarifa única para o aumentar o volume de bens transportados por trens ou navios a vapor. Ou ainda este alto funcionário do governo suíço, Emile Frey, que é um dos grandes precursores da Organização Internacional do Trabalho.

Na outra ponta da série histórica, vamos reencontrar os intelectuais e suas eternas rivalidades. Mas agora eles não serão tipicamente representados por personalidades individuais, agindo por conta própria. Eles se profissionalizaram e se converteram em agentes de organizações públicas ou privadas que se interligam numa rede complexa, cujo centro é ocupado pelas Organização das Nações Unidas.

In administering programs the UN relies on and supports private agencies, and it has a similar relationship to the intellectual communities that have provided most of the ideas for expanding or reforming the world organizations in the twentieth century. The IMF`s relationship to ortodox Anglo-American economics, Richard Stone`s role in creating national accounts statistics, and Raul Prebish`s connection to the critical economic traditions that focus on the Third World are far from unique. /.../

The UN system`s support of these communities, combined with its own capacity to provide the political leadership needed for reform /.../ accounts for the most striking difference between the work of global IGOs after the world wars and their prewar activities [24].

Como se pode depreender da leitura dessas passagens, o livro de Murphy reserva amplo espaço ao tema da incorporação das regiões periféricas, muitas das quais já lançadas, no final da II Guerra, em processos de lutas de libertação nacional, salientando o papel das organizações internacionais no fomento econômico e na assistência social ao Terceiro Mundo, e o significado estratégico mais amplo dessas atividades na luta contra o comunismo.

Na confluência desses dois temas – as orientações ideológicas que atravessam o campo das organizações internacionais e as relações "Norte/Sul" –, surge, por fim, a parte mais atual, mais "vibrante" do livro, a saber, alguns tópicos do sétimo capítulo ("Prosperity and Disappointment") e o último capítulo ("Toward the Next World Order"), no qual a questão do conflito de orientações reaparece em toda a sua centralidade e as "simpatias" do autor se revelam com maior nitidez.

No entanto, não vou me estender sobre nenhum desses assuntos. Em vez disso, usarei estas últimas páginas para um comentário que me reportará ao tema aflorado no início deste artigo.

Como se deu em outras partes, ao discutir as perspectivas de reordenamento internacional, no final do livro, Murphy põe em confronto os dois campos ideológicos já referidos: o liberalismo internacionalista e o fundamentalismo liberal. Para o leitor mais cuidadoso, esta polaridade pode se afigurar demasiadamente esquemática. Para ficar em um único exemplo, ele estranharia a ausência de intelectuais mais diretamente ligados às "comunidades de segurança" de distintos países – embora Murphy chame atenção para o fato de que, hoje como no passado, a indigência do pensamento liberal-internacionalista sobre esta dimensão seja o seu ponto mais vulnerável.

O silêncio relativo sobre questões de segurança e as organizações para elas voltadas, porém, não é casual. Com efeito, ao desenhar a pesquisa, Murphy concentrou-se propositalmente nas atividades civis das agências intergovernamentais, entre outras motivos por serem estas muito menos estudadas do que as suas congêneres de caráter militar. Quanto a este aspecto, não há muito que dizer. Não se pode falar de tudo, e o autor está plenamente justificado em sua decisão de limitar dessa forma o âmbito de seu estudo. Ainda assim, ele trabalha com um universo de 184 entidades, o que é, em si mesmo, um feito temerário.

O problema não está aí. O que me parece discutível na obra de Murphy é a maneira como ele emprega a noção de "sociedade civil internacional", restringindo-a quase que exclusivamente à rede de organizações oficiais ou oficiosas. É verdade, aqui e ali surgem referências a organizações e movimentos menos enquadrados na órbita dos Estados. Isto se dá, por exemplo, quando Murphy discute o "keynesianismo ecológico global", com sua bandeira de "desenvolvimento sustentado", que se apóia no trabalho rotineiro e nas mobilizações promovidas por atores tão pouco ortodoxos quanto o Greenpeace e o Interface Center on Responsability, do Conselho Mundial de Igrejas. Verifica-se também nas passagens sobre as primeiras propostas de regulação internacional das relações de trabalho e os antecedentes da organização que viria a ser criada para cuidar dessa questão (a OIT). Já aventado por socialistas utópicos, como Owen, e conservadores "humanitários", como Benjamin Disraeli, o tema da "legislação internacional do trabalho" só toma vulto quando é apropriado pelo movimento de trabalhadores. O relato de Murphy destaca a introdução desse ítem no programa aprovado pelo Congresso de Erfuhrt – que unificou a socialdemocracia alemã, em 1891 – e a elevada prioridade que imediatamente ele ganharia na agenda da Segunda Internacional [25].

Mas não há muito mais. A reconstrução é toda ela comandada pela decisão metodológica inicial de concentrar a sua análise nas organizações intergovernamentais [26]. Vale dizer, não há no estudo de Murphy nenhuma tentativa de abordar sistematicamente a questão das "organizações não-governamentais". Nem sequer em termos abstratos, na construção do argumento geral, como acontece no trabalho clássico de Keohane e Nye [27]. Esta decisão não parece muito congruente com a declarada inspiração gramsciana de seu trabalho, mas não vou me deter neste aspecto. O que desejo salientar é que, em conseqüência dela, o espaço internacional afigura-se muito mais disciplinado do que ele é hoje e foi no passado, a dimensão de luta e conflito sendo reconhecida quase exclusivamente sob o prisma dos Estados e dos interesses ligados ao capital.

Estado e capital: aí a raiz do problema. Como já pudemos ver, o argumento central de Murphy associa ondas de inovação tecnológicas, impossibilidade de os Estados atenderem aos requisitos de ampliação dos mercados agindo isoladamente, e as organizações intergovernamentais. Seu estudo cobre um amplo período histórico, mas ao longo de todo o percurso o mecanismo operante permanece o mesmo. Nesse esquema, Estado e mercado são tidos como dados. Suas respectivas configurações variam ao longo do tempo, por certo, mas o papel de um e de outro na explicação se mantém constante.

Aplicado à questão da origem das organizações intergovernamentais, esse esquema funciona bastante bem. Contudo, quando introduzimos o problema da "sociedade civil internacional" e nos interrogamos sobre a importância relativa das organizações não- governamentais nesse universo, especialmente das organizações "anti-sistêmicas", o fato de tomar o Estado como uma constante constitui uma barreira que nos impede de reconhecer fenômenos e possibilidades históricas que não mais existem, mas que tiveram vigência em passado não muito remoto. É o que sugere a passagem de Giddens transcrita a seguir:

/.../ it still tends to be assumed by sociological authors /.../ that /.../ the First World War merely accelerated trends that were bound to emerge in the long run in any case. But this view is not at all plausible and could scarcely be countenanced at all if it were not for the powerful grip that endogenous and evolutionary conceptions of change have had in the social sciences.

If the course of events in the Great War /.../ had not taken the shape they did, the nation-state in its current form might not have become the dominant political entity in the world system. /.../ it is by no means clear that in the absence of the War, the pre-existing international socialist organizations might not have emerged as of key influence in world politics. The War canalized the development of states` sovereignty, tying this to citizenship and to nationalism in such a profound way that any other scenarios subsequently came to appear little more than idle fantasy [28].

Em relação ao argumento de Giddens, há que distinguir três elementos: o enunciado metodológico sobre a indeterminação relativa das grandes mudanças históricas; a proposição sobre a importância decisiva da I Guerra Mundial na constituição dos Estados nacionais europeus; e a hipótese contrafactual que vem apoiá-la – "na ausência da Guerra as organizações internacionais do movimento socialista poderiam surgir como protagonistas da política internacional." Implícita nesta hipótese está uma resposta positiva à pergunta sobre a importância do internacionalismo no movimento socialista na dobra do século, em suas duas frentes de luta principais: a campanha pela regulamentação das relações de trabalho e a mobilização contra o militarismo, o esforço para evitar a eclosão de uma guerra global na Europa. No centro da discussão: os programas, a ação e o significado político da Segunda Internacional.

Trata-se, evidentemente, de questão controversa. Os historiadores divergem quanto ao impacto do movimento internacional pelos direitos do trabalho. G. D. H. Cole, por exemplo, classifica de "impressionante" o efeito produzido pelo simbolismo que envolvia o Primeiro de Maio dos Trabalhadores – criado em 1889 como data de comemorações e lutas simultâneas em todos os cantos do mundo –, afirmando existir uma conexão direta entre a rápida difusão de demandas de legislação social (jornada de 8 horas; proibição de trabalho em condições insalubres e perigosas) e dois eventos que marcaram a entrada do tema do trabalho na agenda internacional: a Conferência convocada pelo Kaiser Guilherme II, em 1890, para estudar o problema da "legislação internacional operária", e a encíclica papal Rerum Novarum, de maio de 1891 [29]. A versão apresentada por um historiador importante como James Joll é menos sangüínea: reconhecendo a grandiosidade da idéia do Dia de Maio, ele enfatiza as dificuldades de coordenação internacional das lutas – after 1892 it ceasead to be a large-scale co-ordinated international manifestation [30] – e atribui a convocação da Conferência Internacional de Berlim a fatores domésticos (a greve dos mineiros do Ruhr no verão de 1889 e o crescimento eleitoral da socialdemocracia alemã). No tocante à campanha antibelicista do socialismo internacional, as divergências talvez sejam menores. O episódio é reconstituído, em toda a sua dramaticidade, na obra de Haupt sobre a Grande Guerra e o colapso da Segunda Internacional [31]. Mas mesmo no livro de Joll podemos encontrar indicações eloqüentes sobre o impacto da articulação entre o socialismo francês e a socialdemocracia alemã em seu esforço conjunto para bloquear o caminho que levaria à catástrofe em 1914:

/.../ both governments were worried by the size and activity of the two parties and were anxious about their reaction in the case of war. The French Ministry of the Interior had drawn up a list – the notorious Carnet B – of militant Syndicalists and Socialists who were to be arrested immediately in the event of war. The Germans, too, were worried by the increased strength of the Socialists, and the government was already in touch with individual Social Democrats who they thought would be susceptible to patriotic appeals... [32]

Não importa. A despeito das diferenças de juízo sobre o peso relativo do componente internacionalista no socialismo europeu na virada do século, os dados gerais do problema são bastante claros. Centradas em valores eminentemente universalistas, as ideologias socialistas irradiam-se em meados do século XIX a partir de uma rede cosmopolita de intelectuais e exilados que se espalhavam pelas metrópoles liberais da Europa e se mantinham em permanente contato através de circuitos de cafés, clubes e jornais, e de intensa troca epistolar. A existência dessa "infra-estrutura de comunicação" e da comunidade transnacional por ela vertebrada conferia realidade social ao internacionalismo do movimento socialista em seus primórdios [33]. A partir do momento em que o socialismo, em suas diversas vertentes, logra implantar-se em movimentos organizados de trabalhadores em diferentes países, forçando os Estados a atender suas demandas, seja mediante a promulgação de leis de proteção ao trabalho, seja através da ampliação do sufrágio, ele, por assim dizer, nacionaliza-se. Em 1889, quando da fundação da Segunda Internacional, em vários países esse processo já havia avançado consideravelmente. Na Inglaterra, o terceiro quartel do século XIX assiste à produção de inúmeras leis sociais e à reforma eleitoral de 1867, que estende o direito de voto a amplas camadas das classes populares . Na Alemanha, tendo sido vítima de uma estratégia que combinava programas inovadores de proteção social e uma legislação política altamente repressiva (as "leis anti-socialistas" de Bismarck), o Partido Socialdemocrata podia agir desembaraçadamente, crescendo continuamente em eleições que se travavam agora sob a regra do sufrágio universal [34]. No que tange ao reconhecimento de direitos trabalhistas, a França fica atrás de seus grandes rivais, mas a presença dos socialistas se fazia pesadamente sentir na cena política: depois do affair Dreyfus, o socialista-independente Alexandre Millerand abre um precedente histórico ao aceitar o convite para assumir o posto de Ministro do Comércio no gabinete de Waldeck-Rousseau [35]. Nesse contexto, a generalização formulada por Mann me parece de todo justificada:

Mutualists, social democrats, and Marxists took their demands to the national state and so strengthened it. Every success they achieved strenghthened the national embrace. The national state was the only realistic context in which collective civil rights or redistribution of power, wealth, or security could occur. Labor was national because civil society became authoritatively regulated by the national state [36].

Esse fato reflete-se na própria estrutura da Segunda Internacional, que nasce como uma federação frouxa de partidos e grupamentos de base nacional e que nunca conseguiu superar esse estado, embora desde 1896 tenha se dotado de comitê e secretaria fixos, com sede em Londres.

Tudo isso é sabido. Mas nada disso invalida o argumento de Giddens, o qual demanda apenas dois pontos de apoio para se sustentar: 1) a existência, limitada que fosse, de um componente internacionalista importante no socialismo do pré-guerra (o que ninguém nega); e 2) a afirmativa de que a extraordinária mobilização de recursos materiais e simbólicos requerida pelas condições do conflito militar na Grande Guerra consagrou definitivamente o Estado nacional como ente regulador da vida econômica e social e como referência básica no processo de formação de identidades sociais, mesmo no caso das classes populares. Neste ponto, Giddens tem a companhia de alguns expoentes da Sociologia Histórica, bastando mencionar, além do citado Michael Mann, Charles Tilly e Martin Shaw [37].

Ora, se Giddens tem razão, podemos voltar ao tema de que falávamos e dirigir a Craig Murphy a crítica que se segue: talvez seja legítimo tomar a rede das organizações intergovernamentais como o tecido da "sociedade civil internacional"; mas apenas quando tratamos de um período hisstórico localizado, a saber: aquele compreendido entre o fim da Segunda Guerra e o fim da Guerra Fria. Não sei que uso fazer dessa categoria no tocante ao entre-guerras. E, se quisermos adotá-la para pensar a política internacional no época do capitalismo liberal e nos dias de hoje, devemos ampliar-lhe o alcance para incluir em seu universo movimentos anti-sistêmicos e organizações não (ou não inteiramente) governamentais.

Disse anteriormente que este comentário me remeteria ao começo do artigo. Parece que é hora de verificar se estava certo.

Como vimos, Murphy descreve o debate de propostas sobre a ordem internacional em termos de um confronto entre liberais fundamentalistas e internacionalistas liberais. Creio existir certa homologia entre essa caracterização e aquela que fiz da disciplina das relações internacionais. À primeira vista, esta afirmativa esbarra em duas dificuldades, mas elas podem ser facilmente contornadas.

1) Por um lado, o realismo clássico, com sua ênfase típica na anarquia, na ação egoísta e na insegurança constitutivas do sistema internacional, parece não ter lugar no quadro montado por Murphy. Isto se explica pelo fato de o autor ter voluntariamente restringido seu estudo às atividades militares das organizações internacionais, deixando de fora as questões relativas à segurança e, conseqüentemente, as "comunidades epistêmicas" que se estruturam em torno delas.

2) Por outro, o ponto de vista que informa o liberalismo fundamentalista parece estar ausente no "campo" das relações internacionais. Este traço também é facilmente compreensível. O liberalismo econômico funda-se na utopia do mercado auto-regulado. Nesse discurso, como sugere Rosanvalon, o papel do Estado permanece indeterminado [38]. Como nas famosas "exceções" de Adam Smith, sua presença é admitida para preencher condições necessárias mas não asseguradas pelo funcionamento espontâneo dos mecanismos de mercado. Mas esse reconhecimento é puramente negativo. O liberalismo econômico carece de uma teoria positiva do Estado. De seu ponto de vista próprio, isto não chega a ser um inconveniente. Afirmando por princípio a excelência do mercado idealizado, carente de – ou descomprometido com – qualquer definição positiva sobre o papel e os limites da ação estatal, o liberalismo econômico forjou para si um poderoso dispositivo retórico que lhe permite, em qualquer momento e em quaisquer circunstâncias, denunciar como excessiva e despótica a intervenção do Estado. É assim que ao criticar o Welfare State, no final do século vinte, Hayek, Friedman e cia. repetem argumentos formulados por Spencer contra os tímidos ensaios de assistência social da Inglaterra Vitoriana [39].

Mas os liberais fundamentalistas não habitam um mundo de sonhos. No terra-a-terra em que operam, os Estados existem e prestam serviços valiosos. Gramsci e Polanyi, entre outros, enfatizaram as dimensões políticas do liberalismo econômico; é desnecessário insistir neste ponto. Mas, ao fazerem-no, eles tinham em vista, predominantemente, a política interna. Quando consideramos a questão sob o prisma das relações internacionais, o liberalismo econômico aparece em posição ambivalente. Em capitalismos periféricos, ele estará associado a orientações e tendências que favoreçam sistematicamente a busca de acomodação e de soluções de compromisso com os Estados capitalistas centrais. Nos potências hegemônicas, por sua vez, ele aparecerá em aliança com falcões e realistas, denunciando em conjunto o "idealismo" do "internacionalismo liberal".

Com isso quero sugerir que existem relações de afinidade entre as orientações normativas em confronto no âmbito da "sociedade civil internacional" e as vertentes principais do debate que se trava no interior do "campo" das relações internacionais. Mas, sendo assim, é razoável supor que a abertura daquela, com a incorporação crescente de movimentos e organizações menos controladas pelos Estados nacionais, mantenha uma relação mais do que casual com a superação da dualidade "realismo" versus "liberalismo" que marca a disciplina na atualidade.

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Notas

[1] Cf. Stanley Hoffman. "An American Social Science: International Relations". Daedalus, 106 (3): 1977, p. 41-60.

[2] Cf. Andreas Oslander. "Rereading Early Twentieth-Century IR Theory: Idealism Revisited". International Studies Quarterly, v. 42, n. 3, 1998, p. 409-32, e Brian C. Schmidt. "Lessons from the Past: Reassessing the Interwar Disciplinary History of International Relations". Ib., p. 433-59.

[3] Cf. Jack Donnelly. "Realism and the Academic Study of International Relations". In: James Farr, John S. Dryzek e Sephen T. Leonard, eds. Political Science in History. Research Programs and Political Traditions. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 191 s.

[4] Testemunho autorizado das transformações em curso no campo da Ciência Política americana pode ser encontrado em David Easton. "The New Revolution in Political Science". American Political Science Review, 63, 1969, p. 1.051-61.

[5] Além da obra editada por James Farr et alli, já referida, cumpre mencionar, entre outros trabalhos recentes os livros de David Ricci. The Tragedy of Political Science: Politics, Scholarship, and Democracy. New Haven: Yale University Press, 1984; David Easton, John Gunnell e Luigi Graziano, eds. The Development of Political Science. Londres: Routledge, 1991; James Farr e Raymond Seidelman, eds. Discipline and History: Political Science in the United States. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1993. E ainda Erkki Berndtson. "The Rise and Fall of American Political Science: Personalities, Quotations, Speculations". International Political Science Review, 8, 1987, p. 85-100, e John S. Dryzek e Stephen T. Leonard. "History and Discipline in Political Science". American Political Science Review, v. 82, no. 4, 1988, p. 1.245-60.

[6] Gabriel A. Almond. A Discipline Divided. Schools and Sects in Political Science. Thousand Oaks: Sage Publications, 1990.

[7] Robert W. Tucker. "1989 and All That". Foreign Affairs, v. 69, n. 4, 1990, p. 95.

[8] Jack Donnelly, op. cit., p. 104.

[9] Discussões em torno do tema de um ponto de vista crítico ao neo-realismo podem ser encontradas em Richard Ned Lebow e Thomas Risse-Kappen, eds. International Relations Theory and the End of the Cold War. New York: Columbia University Press, 1995.

[10] Caracterização mais detalhada, mas compaatível com a que se faz aqui desse processo, aparece no artigo de Ole Waever. "The Rise and Fall of the Inter-Paradigm Debate". In: Steve Smith, Ken booth e Marysia Zalewski (eds.). International Theory. Positivism & Beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1996, p. 149-85.

[11] Craig N. Murphy. International Organization and Industrial Change. Global Governance since 1850. Cambridge: Polity Press, 1994.

[12] Publicado originalmente em 1981, o texto inaugural de Robert Cox, "Social Forces, States, and World Order: Beyond International Relations Theory", apareceu em edição revista no livro editado por R. O. Keohane. Neorealists and Its Critics. New York: Columbia University Press, 1986, p. 204-54. Outros textos do autor relevantes no quadro da presente discussão incluem o livro Production, Power and World Order: Social Forces in the Making of History. New York: Columbia University Press, 1987, e "Gramsci, Hegemony and International Relations: an Essay in Method", publicado pela primeira vez na revista Millennium: Journal of International Studies, v. 12, 1983, p. 162-75, e reeditado na coletânea organizada por Stephen Gill. Gramsci, Historical Materialism and International Relations. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 49-66.

[13] R. Cox. "Social Forces, States and World Order: Beyond International Relations Theory". In: R. O. Keohane (ed.), op. cit, p. 250.

[14] C. Murphy, op. cit., p. 130 s.

[15] Id., ib., p. 237 s.

(16) Id., ib., p. 2-4.

[17] Id., ib., p. 8.

[18] O argumento está desenvolvido em R. O. Keohane. After Hegemony. Cooperation and Discord in the World Political Economy. Princeton: Princeton University Press, 1984.

[19] Id., ib., p. 24-6.

[20] Id., ib., p. 73.

[21] Id., ib., p. 34.

[22] Cf. Alfred D. Chandler, Jr. The Visible Hand: The Managerial Revolution in American Business. Cambridge: Harvard University Press, 1977.

[23] Suas idéias foram expostas em panfleto publicado em 1851, com este título delicioso: Christianity and Commerce, the Natural Results of the Geographical Progression of the Railroad, or A Treatise on the Advantage of the Universal Extension of Railways in our Colonies and Other Countries, and the Probability of Increased National Intercommunication Leading to the Early Restoration of the Land of Promise to the Jews.

[24] C. Murphy, p. 223-4.

[25] Id., ib., 74-5.

[26] O autor (op. cit., p. 286-7) começa assim a descrição da metodologia utilizada em sua investigação: The method I chose for my study resembled that of this later generation of medievalists.By systematically colleting and categorizing much of the information about the regular, ongoing activities of world oganizations to be found in the many studies of global agencies, I would be in a position to provide an even stronger case for generalizations about world organizations /..../ I concentrated on their non-military ´civil’ activities. I began by making a comprehensive list of potentially universal intergovernamental agencies – that is, intergovernamental organizations that any state could join...

[27] Cf. Robert O. Keohane e Joseph S. Nye. Power and Interdependence. 2nd. ed. Harper Collins Publishers, 1989, p. 33-4.

[28] Anthony Giddens. A Contemporary Critique of Historical Materialism. II. The Nation-State and Violence. Cambridge: Polity Press, 1985, p.234-5.

[29] Cf. G. D. H. Cole. Historia del Pensamiento Socialista. V. III (1889-1914), p. 25.

[30] James Joll. The Second International. 1889-1914. New York: Harper & Row, 1966, p. 54.

[31] Georges Haupt. Socialism and the Great War. The Collapse of the Second International. Oxford: Clarendon Press, 1973.

[32] James Joll, op. cit., p. 150.

[33] Cf. Nesta parte, acompanho de perto a análise desenvolvida por Michael Mann. The Sources of Social Power. V. II: The Rise of Classe and Nation-States, 1760-1914. Cambridge: Cambridge University Press, 1993, p. 783 s.

[34] Sobre a trajetória da socialdemocracia alemã nesse período, além dos textos já mencionados, cf. Joseph Rovan. Histoire de la Social-Démocratie Allemande. Paris: Seuil, 1978; e Guenther Roth. The Social Democrats in Imperial Germany. Totowa, N.J.: The Bedminster Press, 1978.

[35] A participação de líderes socialistas, à frente do quais se postava Jaurès, na campanha em prol de Dreyfus, bem como o episódio Millerand desatariam forte celeuma nas hostes do socialismo francês e no seio da própria Internacional.

[36] M. Mann, op. cit., p.784.

[37] Cf. Charles Tilly. Coercion, Capital, and European States, AD 990-1992. Cambridge: Blackwell Publishers, 1994; e Martin Shaw. Global Society and International Relations. Sociological Concepts and Political Perspectives. Cambridge: Polity Press, 1994, especialmente o capítulo 6: "The New Politics of War", p. 141-67.

[38] Pierre Rosanvallon. Le Capitalisme Utopique. Critique de l`Idéologie économique. Paris: Éditions du Seuil, 1979.

[39] Cf. Herbert Spencer. The Man versus The State [1881]. Londres: Penguin Books, 1969.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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