A IDÉIA DE GÊNESE NA ESTÉTICA DE KANT (DL)

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Gilles Deleuze [1963]

 

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tomado de

GILLES DELEUZE

A ILHA DESERTA E OUTROS TEXTOS

Textos e entrevistas

(1953-1974)

Edição preparada por David Lapoujade

Tradução brasileira

Editora Iluminuras

2004

 

As dificuldades da estética kantiana, na primeira parte da Crítica da faculdade de julgarNT, estão ligadas a uma diversidade de pontos de vista. Kant nos propõe tanto uma estética do espectador, como na teoria do juízo de gosto, quanto uma estética, ou, mais ainda, uma meta-estética do criador, como na teoria do gênio. Tanto uma estética do belo na natureza quanto uma estética do belo na arte. Tanto uma estética da forma, de inspiração "clássica", quanto uma meta-estética da matéria e da Idéia, próxima do romantismo. Só a compreensão dos pontos de vista diversos, e da passagem necessária de um ao outro, determina a unidade sistemática da Crítica da faculdade de julgar. Esta compreensão deve explicar as dificuldades aparentes do plano, ou seja, de um lado, o lugar da Analítica do sublime (entre a Analítica do belo e a dedução dos juízos de gosto) e, de outro lado, o lugar da teoria da arte e do gênio (no final da dedução).

O juízo de gosto "é belo" exprime no espectador um acordo, uma harmonia de duas faculdades: imaginação e entendimento. Com efeito, se o juízo de gosto se distingue do juízo de preferência, é por que ele pretende uma certa necessidade, uma certa universalidade a priori. Ele toma do entendimento, portanto, sua legalidade. Mas esta legalidade não aparece aqui em conceitos determinados. A universalidade no juízo de gosto é aquela de um prazer; a coisa bela é singular, e permanece sem conceito. O entendimento intervém como a faculdade dos conceitos em geral, mas feita abstração de todo conceito determinado. A imaginação, por sua vez, exerce-se livremente, já que ela não está submetida a tal ou qual conceito. Que a imaginação entre em acordo com o entendimento no juízo de gosto significa, então, o seguinte; exercendo-se como livre, a imaginação entra em acordo com o entendimento tomado como indeterminado. O próprio do juízo de gosto é exprimir um acordo, ele mesmo livre e indeterminado, entre a imaginação e o entendimento. De modo que o prazer estético, longe de ser primeiro em relação ao juízo, depende dele, ao contrário: o prazer é o acordo das próprias faculdades, na medida em que este acordo, fazendo-se sem conceito, só pode ser sentido. Dir-se-á que o juízo de gosto só começa com o prazer, mas não deriva dele.

Devemos refletir sobre este primeiro ponto: tema de um acordo entre várias faculdades. A idéia de um tal acordo é uma constante da Crítica kantiana. Nossas faculdades diferem por natureza e, contudo, exercem-se harmoniosamente. Na Crítica da razão pura, o entendimento, a imaginação e a razão entram numa relação harmoniosa, em conformidade com o interesse especulativo. Igualmente, a razão e o entendimento, na Crítica da razão prática (deixamos de lado o exame de um papel possível da imaginação neste interesse prático). Mas vemos que, nesses casos, uma das faculdades desempenha sempre um papel predominante. "Predominante" quer dizer aqui três coisas: determinado em relação a um interesse, determinante em relação a objetos, determinante em relação às outras faculdades. Assim, na Crítica da razão pura, o entendimento dispõe de conceitos a priori perfeitamente determinados no interesse especulativo; ele aplica seus conceitos a objetos (fenômenos) que lhe são necessariamente submetidos; ele induz as outras faculdades (imaginação e razão) a preencher tal ou qual função neste interesse de conhecer e em relação a esses objetos de conhecimento. Na Crítica da razão prática: as Idéias da razão, e inicialmente a Idéia de liberdade, encontram-se determinadas pela lei moral; por intermédio desta lei, a razão determina objetos supra-sensíveis que lhe são necessariamente submetidos; enfim, ela induz o entendimento a um certo exercício, em função do interesse prático. Nas duas primeiras Críticas, já nos encontramos diante do princípio de uma harmonia das faculdades entre si. Mas esta harmonia é sempre proporcionada, constrangida e determinada: há sempre uma faculdade determinante que legisla, seja o entendimento no interesse especulativo, seja a razão no interesse prático.

Voltemos ao exemplo da Crítica da razão pura. É bem conhecido que o esquematismo é um ato da imaginação, original e irredutível: só a imaginação pode e sabe esquematizar. Porém, a imaginação não esquematiza por si mesma, em nome de sua liberdade. Ela só o faz na medida em que o entendimento a determina, a induz a fazê-lo. Ela só esquematiza no interesse especulativo, em função de conceitos determinados do entendimento, quando o próprio entendimento tem o papel legislador. É por isto que seria errado perscrutar os mistérios do esquematismo, como se eles encerrassem a última palavra da imaginação na sua essência ou na sua livre espontaneidade. O esquematismo é um segredo, mas não o mais profundo segredo da imaginação. Abandonada a si mesma, a imaginação faria outra coisa que esquematizar. O mesmo vale para a razão: o raciocínio é um ato original da razão, mas a razão só raciocina no interesse especulativo, no sentido em que o entendimento a determina a fazê-lo, quer dizer, a induz a procurar um meio termo para a atribuição de um dos seus conceitos aos objetos que ele subsume. Por si mesma, a razão faria outra coisa que raciocinar; vê-se bem isto na Crítica da razão prática.

 

No interesse prático, a razão se torna legisladora. Por sua vez, então, ela determina o entendimento a um exercício original conforme ao novo interesse. Eis que o entendimento extrai da lei natural sensível um "tipo" para uma natureza supra-sensível: só ele pode cumprir esta tarefa, mas ele não a cumpriria se não fosse determinado pela razão no interesse prático. Assim, as faculdades entram em relações ou proporções harmoniosas segundo a faculdade que legisla em tal ou qual interesse. Concebem-se, pois, diversas proporções, ou permutações na relação de faculdades. O entendimento legisla no interesse especulativo; a razão, no interesse prático. Em cada um desses casos, um acordo surge entre as faculdades, mas este acordo é determinado por aquela que vem a legislar. Ora, uma tal teoria das permutações deveria conduzir Kant a um problema extremo. Jamais as faculdades entrariam em um acordo determinado ou fixado por uma dentre elas se, de início, elas não fossem capazes em si mesmas e espontaneamente de um acordo indeterminado, de uma livre harmonia, de uma harmonia sem proporção fixa[1]. Seria vão invocar aqui a superioridade do interesse prático sobre o interesse especulativo; o problema não seria resolvido, seria mais adiado e acentuado. Como uma faculdade, legisladora em um interesse qualquer, poderia induzir as outras faculdades a tarefas complementares indispensáveis, se todas as faculdades juntas não fossem antes capazes de um livre acordo espontâneo, sem legislação, sem interesse nem predominância?

Isto quer dizer que a Crítica da faculdade de julgar, em sua parte estética, não vem simplesmente completar as duas outras: na realidade, ela as funda. Ela descobre um livre acordo entre as faculdades como o fundo suposto pelas duas outras Críticas. Todo acordo determinado remete ao livre acordo indeterminado que o torna possível em geral. Mas por que é precisamente o juízo estético que revela esse fundo, escondido nas duas críticas precedentes? No juízo estético, a imaginação encontra-se liberada tanto da dominação do entendimento quanto daquela da razão. Com efeito, o prazer estético é ele mesmo um prazer desinteressado: ele não é somente independente do interesse empírico, mas também do interesse especulativo e do interesse prático. Por isso mesmo, o juízo estético não legisla, não implica faculdade alguma que legisle sobre objetos. Além disso, como seria de outro modo, já que há apenas dois tipos de objetos, os fenômenos e as coisas em si, uns remetendo à legislação do entendimento no interesse especulativo, os outros, à legislação da razão no interesse prático? Kant pode então dizer de pleno direito que a Crítica da faculdade de julgar, contrariamente às duas outras, não tem "domínio" que lhe seja próprio; e que o juízo não é legislativo nem autônomo, mas somente heautônomo (ele só legisla sobre si mesmo)[2]. As duas primeiras Críticas desenvolviam o seguinte tema: a idéia de uma submissão necessária de um tipo de objetos em relação a uma faculdade dominante ou determinante. Mas não há objetos que sejam necessariamente submetidos ao juízo estético. As belas coisas na Natureza encontram-se somente em acordo contingente com o juízo, quer dizer, com as faculdades que se exercem juntas no juízo estético enquanto tal. Vê-se a que ponto seria inexato conceber a Crítica da faculdade de julgar como completando as duas outras. Pois, no juízo estético, a imaginação não acede de modo algum a um papel comparável ao que tinham o entendimento no juízo especulativo e a razão no juízo prático. A imaginação se libera da tutela do entendimento e daquela da razão. Mas ela não se torna legisladora por sua vez: mais profundamente, ela dá o sinal para um exercício das faculdades tal que cada uma deve se tornar capaz de jogar livremente por sua conta. De dois pontos de vista, a Crítica da faculdade de julgar nos introduz num elemento novo, que é como o elemento de fundo: acordo contingente dos objetos sensíveis com todas as nossas faculdades juntas, em lugar de uma submissão necessária a uma das faculdades; harmonia livre indeterminada das faculdades entre si, em lugar de uma harmonia determinada sob a presidência de uma delas.

 

Kant chega a dizer que a imaginação, no juízo estético, "esquematiza sem conceito” [3]. Esta fórmula é mais brilhante do que exata. O esquematismo é um ato original da imaginação, mas com relação a um conceito determinado do entendimento. Sem conceito do entendimento, a imaginação faz outra coisa que esquematizar. Com efeito, ela reflete. É este o verdadeiro papel da imaginação no juízo estético: ela reflete a forma do objeto. Por forma, aqui, não se deve entender forma da intuição (sensibilidade). Pois as formas da intuição se reportam ainda a objetos existentes que constituem nelas uma matéria sensível; e elas mesmas fazem parte do conhecimento desses objetos. A forma estética ao contrário, confunde-se com a reflexão do objeto na imaginação. Ela é indiferente à existência do objeto refletido; é por isso que o prazer estético é desinteressado. Ela não é menos indiferente à matéria sensível do objeto; e Kant chegará a dizer que uma cor ou um som não podem ser belos por si mesmos, visto serem excessivamente materiais, demasiadamente entranhados em nossos sentidos para se refletir livremente na imaginação. Só o desenho conta, só a composição conta. Estes são os elementos constituintes da forma estética, ao passo que as cores e os sons são apenas coadjuvantes[4]. De todo modo, devemos distinguir, portanto, a forma intuitiva da sensibilidade e a forma refletida da imaginação.

Todo acordo das faculdades define um senso comum. O que Kant reprova no empirismo é somente ter ele concebido o senso comum como uma faculdade empírica particular, ao passo que ele é a manifestação de um acordo a priori das faculdades em conjunto[5]. A Crítica da razão pura também invoca um senso comum lógico, "sensus communis logicus", sem o qual o conhecimento não seria comunicável de direito. Do mesmo modo, a Crítica da razão prática invoca freqüentemente um senso comum propriamente moral, que exprime o acordo das faculdades sob a legislação da razão. Mas a livre harmonia devia levar Kant a reconhecer um terceiro senso comum: "sensus communis aestheticus", que estabelece de direito a comunicabilidade do sentimento ou a universalidade do prazer estético[6]. "Este senso comum não pode ser fundado na experiência, pois ele pretende autorizar juízos que contêm uma obrigação; ele não diz que cada um admitirá nosso juízo, mas que cada um deve admiti-lo"[7]. Nós não queremos mal àquele que diz: eu não gosto de limonada, eu não gosto de queijo. Mas julgamos severamente aquele que diz: eu não gosto de Bach, prefiro Massenet a Mozart. O juízo estético reclama, portanto, uma universalidade e uma necessidade de direito, representadas num senso comum. É aqui que começa a verdadeira dificuldade da Crítica da faculdade de julgar. Com efeito: qual é a natureza do senso comum estético?

Nós não podemos afirmar categoricamente este senso comum. Uma tal afirmação implicaria conceitos determinados do entendimento, que só podem intervir no senso lógico. Nós não podemos, ademais, postulá-lo: os postulados implicam, com efeito, conhecimentos que se deixem determinar praticamente. Parece, então, que um senso comum puramente estético pode ser apenas presumido, suposto[8]. Mas é fácil ver a insuficiência desta solução. O acordo livre indeterminado das faculdades é o fundo, a condição de qualquer outro acordo; o senso comum estético é o fundo, a condição de qualquer outro senso comum. Como seria suficiente supô-lo, dar-lhe somente uma existência hipotética, a ele que deve servir de fundamento para todas as relações determinadas entre nossas faculdades? Como poderíamos escapar à questão: de onde vem o acordo livre e indeterminado das faculdades entre si? Como explicar que nossas faculdades, diferindo por natureza, entrem espontaneamente em uma relação harmoniosa? Não podemos nos contentar em presumir um tal acordo. Devemos engendrá-lo na alma. É esta a única saída: fazer a gênese do senso comum estético, mostrar como o acordo livre das faculdades é necessariamente engendrado.

 

Se esta interpretação é exata, o conjunto da analítica do belo tem um objeto bem preciso: analisando o juízo estético do espectador, Kant descobre o livre acordo da imaginação e do entendimento como um fundo da alma, pressuposto pelas duas outras Críticas. Esse fundo da alma aparece na idéia de um senso comum mais profundo que qualquer outro. Mas é suficiente presumir esse fundo, "supô-lo" simplesmente? Como exposição, a Analítica do belo não pode ir mais longe. Ela só pode terminar fazendo-nos sentir a necessidade de uma gênese do senso do belo: há um princípio que nos prescreva produzir em nós o senso comum estético? "O gosto é uma faculdade primordial e natural, ou somente a idéia de uma faculdade que precisamos adquirir"?. Uma gênese do senso do belo não pode pertencer à Analítica como exposição ("é suficiente para nós, no momento, decompor a faculdade do gosto em seus elementos e reuni-los na idéia de um senso comum"[9]). A gênese só pode ser objeto de uma dedução, dedução dos juízos estéticos. Na Crítica da razão pura, a dedução se propõe mostrar como objetos são necessariamente submetidos ao interesse especulativo e ao entendimento que preside à sua realização. Mas no juízo de gosto, o problema de uma tal submissão necessária não se coloca mais. Propõe-se, em contrapartida, um problema de dedução para a gênese do acordo entre faculdades, problema que não aparecia enquanto as faculdades eram consideradas como já tomadas numa relação determinada pela legislação de uma dentre elas.

Os pós-kantianos, notadamente Maïmon e Fichte, dirigiam a Kant uma objeção fundamental: Kant teria ignorado as exigências de um método genético. Esta objeção tem dois sentidos, objetivo e subjetivo: Kant apóia-se em fatos, dos quais ele procura somente as condições; mas, também, invoca faculdades já prontas, das quais ele determina tal relação ou tal proporção, já supondo que elas são capazes de uma harmonia qualquer. Se se considera que a Filosofia transcendental de Maïmon é de 1790, é preciso reconhecer que Kant, em parte, previa as objeções de seus discípulos. As duas primeiras Críticas invocavam fatos, procuravam condições para esses fatos, encontravam-nos em faculdades já formadas. Por isso mesmo, remetiam a uma gênese que elas eram incapazes de assegurar por sua conta. Mas na Crítica da faculdade de julgar estética, Kant levanta o problema de uma gênese das faculdades em seu livre acordo primeiro. Ele descobre, então, o fundamento último, que faltava ainda às outras críticas. A Critica em geral deixa de ser um simples condicionamento, para devir uma Formação transcendental, uma Cultura transcendental, uma Gênese transcendental.

A questão que nos ficava da Analítica do belo era esta: de onde vem o acordo livre indeterminado das faculdades entre si, qual é a gênese das faculdades neste acordo? A Analítica do belo não vai adiante, precisamente, porque ela não tem os meios para responder à questão; nota-se, ao mesmo tempo, que o juízo "é belo" coloca em jogo apenas o entendimento e a imaginação (sem lugar para a razão). A Analítica do belo é sucedida pela Analítica do sublime; esta faz apelo à razão. Mas o que Kant espera disso, para a solução de um problema de gênese relativo ao próprio senso do belo?

O juízo "é sublime" não mais exprime um acordo da imaginação e do entendimento, mas da razão e da imaginação. Ora, esta harmonia do sublime é bastante paradoxal. Razão e imaginação só entram em acordo no seio de uma tensão, de uma contradição, de uma dilaceração dolorosa. Há acordo, mas acordo discordante, harmonia na dor. E é somente a dor que torna possível um prazer. Kant insiste neste ponto: a imaginação sofre uma violência, ela parece mesmo perder sua liberdade. Sendo o sentimento do sublime experimentado diante do informe ou disforme da natureza (imensidade ou potência), a imaginação não pode mais refletir a forma de um objeto. Mas longe de descobrir para si uma outra atividade, ela acede a sua própria Paixão. Com efeito, a imaginação tem duas dimensões essenciais, a apreensão sucessiva e a compreensão simultânea. Se a apreensão vai sem dificuldade ao infinito, a compreensão (como compreensão estética independente de todo conceito numérico) tem sempre um máximo. Eis que o sublime coloca a imaginação em face desse máximo, força-a a atingir seu próprio limite, confronta-a com suas limitações. A imaginação é empurrada até o limite do seu poder[10].. Mas o que é que empurra e constrange assim a imaginação? É somente em aparência, ou por projeção, que o sublime se reporta à natureza sensível. Na verdade, somente a razão nos obriga a reunir em um todo o infinito do mundo sensível; nada mais força a imaginação a enfrentar seu limite. A imaginação descobre, então, a desproporção da razão, ela é forçada a confessar que toda sua potência nada é nada em relação a uma Idéia racional[11].

 

E, contudo, um acordo nasce no seio deste desacordo. Jamais Kant esteve tão próximo de uma concepção dialética das faculdades. A razão coloca a imaginação em presença de seu limite no sensível; mas, inversamente, a imaginação desperta a razão como faculdade capaz de pensar um substrato supra-sensível para a infinidade deste mundo sensível. Sofrendo uma violência, a imaginação parece perder sua liberdade; mas ela também se eleva a um exercício transcendente, tomando por objeto seu próprio limite. Ultrapassada por todos os lados, ela própria ultrapassa suas limitações, é verdade que de maneira negativa, representando-se a inacessibilidade da Idéia racional e fazendo dessa inacessibilidade alguma coisa de presente na natureza sensível. "A imaginação, que fora do sensível não encontra nada em que se apegar, sente-se, entretanto, ilimitada graças ao desaparecimento de suas limitações; e essa abstração é uma apresentação do infinito que, por essa razão, só pode ser negativa, mas que, no entanto, alarga a alma"[12]. No mesmo momento em que ela crê perder sua liberdade, sob a violência da razão, ela se libera de todas as constrições do entendimento, ela entra em acordo com a razão para descobrir aquilo que o entendimento lhe ocultava, quer dizer, sua destinação supra-sensível, que é também como que sua origem transcendental. Na sua própria Paixão, a imaginação descobre a origem e a destinação de todas as suas atividades. É esta a lição da Analítica do sublime: mesmo a imaginação tem uma destinação supra-sensível[13]. O acordo da imaginação e da razão encontra-se efetivamente engendrado no desacordo. O prazer é engendrado na dor. Mais ainda, tudo se passa como se as duas faculdades se fecundassem reciprocamente e reencontrassem o princípio de sua gênese, uma na vizinhança de seu limite, a outra, para além do sensível, ambas em um "ponto de concentração" que define o mais profundo da alma como unidade supra-sensível de todas as faculdades.

A Analítica do sublime nos dá um resultado que a Analítica do belo era incapaz de conceber: no caso do sublime, o acordo das faculdades em presença é o objeto de uma verdadeira gênese. Eis porque Kant reconhece que, contrariamente ao senso do belo, o senso do sublime é inseparável de uma Cultura: "nas provas da força da natureza, nas suas devastações... o homem grosseiro só percebe as penas, os perigos, as misérias"[14]. O homem grosseiro permanece no "desacordo". Não que o sublime seja assunto de uma cultura empírica e convencional; mas as faculdades que ele coloca em jogo remetem a uma gênese do seu acordo no seio do desacordo imediato. Trata-se de uma gênese transcendental, não de uma formação empírica. A partir daí, a Analítica do sublime tem dois sentidos. Ela tem, em primeiro lugar, um sentido por si mesma, do ponto de vista da razão e da imaginação. Mas ela também tem o valor de modelo: como estender ou adaptar ao senso do belo esta descoberta que vale para o sublime? Quer dizer: o acordo da imaginação e do entendimento, que define o senso do belo, não deve ser, ele também, objeto de uma gênese da qual a Analítica do sublime nos mostrou o exemplo?

O problema de uma dedução transcendental é sempre objetivo. Por exemplo, na Crítica da razão pura, depois de ter mostrado que as categorias eram representações a priori do entendimento, Kant pergunta por que e como objetos são necessariamente submetidos às categorias, quer dizer, ao entendimento legislador ou ao interesse especulativo. Mas se nós consideramos o juízo do sublime, vemos que nenhum problema objetivo de dedução se coloca a seu respeito. O sublime se relaciona certamente a objetos, mas somente por projeção de nosso estado de alma; e esta projeção é possível imediatamente, porque ela se faz sobre aquilo que há de informe ou de disforme no objeto[15]. Ora, à primeira vista, parece ser o caso também para o juízo de gosto ou de beleza: nosso prazer é desinteressado, nós fazemos abstração da existência e até da matéria do objeto. Nenhuma faculdade é legisladora; nenhum objeto é necessariamente submetido ao juízo de gosto. É por isso que Kant sugere que o problema do juízo de gosto é apenas subjetivo[16].

 

Contudo, a grande diferença entre o sublime e o belo é que o prazer do belo resulta da forma de um objeto: Kant diz que este caráter é suficiente para fundar a necessidade de uma "dedução" do juízo de gosto[17]. Por mais indiferentes que sejamos à existência do objeto, não deixa de haver um objeto a propósito do qual, por ocasião do qual nós experimentamos a livre harmonia do nosso entendimento e de nossa imaginação. Em outros termos, a natureza é apta a produzir objetos que se refletem formalmente na imaginação: contrariamente ao que se passa no sublime, a natureza manifesta aqui uma propriedade positiva "que nos fornece a ocasião de alcançar a finalidade interna da relação de nossas faculdades mentais por meio do juízo incidente sobre algumas de suas produções"[18]. Eis então que o acordo interno de nossas faculdades entre si implica um acordo exterior entre a natureza e essas mesmas faculdades. Este segundo acordo é muito especial. Ele não deve ser confundido com uma submissão necessária dos objetos da natureza; mas, do mesmo modo, não deve ser tomado por um acordo final ou teleológico. Se houvesse submissão necessária, o juízo de gosto seria autônomo e legislador; se houvesse finalidade real objetiva, o juízo de gosto deixaria de ser heautônomo ("precisaríamos aprender da natureza o que deveríamos achar belo, de modo que o juízo estaria submetido a princípios empíricos")[19]. O acordo é, portanto, sem alvo: a natureza só obedece a suas próprias leis mecânicas, enquanto que nossas faculdades obedecem a suas leis específicas. "Acordo apresentando-se sem alvo, por si mesmo, como apropriado por acaso à necessidade do juízo relativamente à natureza e a suas formas"[20]. Como diz Kant, não é a natureza que nos faz um favor, nós é que somos organizados de tal maneira que a recebemos favoravelmente.

Retornemos ao que víamos. O senso do belo, como senso comum, define-se pela universalidade suposta do prazer estético. O prazer estético, ele mesmo, resulta do livre acordo da imaginação e do entendimento, livre acordo que só pode ser sentido. Mas não basta supor, por sua vez, a universalidade e a necessidade do acordo. É preciso que ele seja engendrado a priori de tal maneira que sua pretensão seja fundada. O verdadeiro problema da dedução começa aqui: é preciso explicar "porque, no juízo de gosto, se atribui o sentimento a todos, de certo modo como um de dever"[21]. Ora, o juízo de gosto nos pareceu ligado a uma determinação objetiva. Trata-se de saber se, ao lado dessa determinação, não encontraremos um princípio para a gênese do acordo das faculdades no próprio juízo. Um tal ponto de vista teria a vantagem de dar conta da ordem das idéias: 1º a Analítica do belo descobre um acordo livre do entendimento e da imaginação, mas só pode estabelece-lo como presumido; 2º a Analítica do sublime descobre um acordo livre da imaginação e da razão, mas em condições internas tais que traça ao mesmo tempo sua gênese; 3º a dedução do juízo de gosto descobre um princípio exterior a partir do qual o acordo entendimento-imaginação é, por sua vez, engendrado a priori, de modo que essa dedução se serve, portanto, do modelo fornecido pelo sublime, mas com meios originais, e sem que o sublime, por sua vez, tenha necessidade de dedução.

 

Como se faz essa gênese do senso do belo? É que a idéia do acordo sem alvo entre a natureza e nossas faculdades define um interesse da razão, interesse racional ligado ao belo. É claro que esse interesse não é um interesse pelo belo como tal, e que ele totalmente diferente do juízo estético. Senão, toda a Critica da faculdade de julgar seria contraditória: com efeito, o prazer do belo é inteiramente desinteressado, e o juízo estético exprime o acordo da imaginação e do entendimento sem intervenção da razão. Trata-se de um interesse sinteticamente ligado ao juízo. Ele não incide sobre o belo como tal, mas sobre a aptidão da natureza para produzir coisas belas. Ele é concernente à natureza, na medida em que esta apresenta um acordo sem alvo com nossas faculdades. Mais precisamente, como esse acordo é exterior ao acordo das faculdades entre si, como ele define somente a ocasião na qual nossas faculdades concordam entre si, o interesse ligado ao belo não faz parte do juízo estético. Assim sendo, ele pode, sem contradição, servir de princípio de gênese para o acordo a priori das faculdades nesse juízo. Em outros termos, o prazer estético é desinteressado, mas nós experimentamos um interesse racional pelo acordo das produções da natureza com nosso prazer desinteressado. "Como é do interesse da razão que as idéias tenham uma realidade objetiva..., quer dizer, que a natureza indique,  ao menos por um traço ou por um signo, que ela encerra um princípio que permite admitir um acordo legítimo de suas produções com nossa satisfação, independentemente de todo interesse..., é preciso que a razão se interesse por toda manifestação natural de um semelhante acordo"[22]. Não é de espantar, portanto, que o interesse ligado ao belo incida sobre determinações às quais o senso do belo permanecia indiferente. No senso do belo desinteressado, a imaginação reflete a forma. Escapa-lhe o que se deixa dificilmente refletir, cores, sons, matérias. Ao contrário, o interesse ligado ao belo incide sobre sons e cores, a cor das flores e o canto dos pássaros[23]. Também nisso não se verá contradição alguma. O interesse é concernente às matérias, pois é com matérias que a natureza, conforme suas leis mecânicas, produz objetos que se encontram aptos para serem refletidos formalmente. Kant chega a definir assim a matéria prima que intervém na produção natural do belo: matéria fluida, da qual uma parte se separa ou se evapora, e cujo resto se solidifica bruscamente (formação de cristais)[24].

Desse interesse ligado ao belo, ou ao juízo de beleza, dizemos que ele é meta-estético. Como esse interesse da razão assegura a gênese do acordo entendimento-imaginação no próprio juízo de beleza? Nos sons, cores e livres matérias, a Razão descobre outras tantas apresentações de suas idéias. Por exemplo, nós não nos contentamos em subsumir a cor sob um conceito do entendimento nós a relacionamos ainda a um conceito totalmente distinto (Idéia da razão), que não tem, por sua vez, um objeto de intuição, mas que determina seu objeto por analogia com o objeto de intuição correspondente ao primeiro conceito. Assim, transportamos "a reflexão sobre um objeto da intuição para um conceito totalmente distinto, ao qual, talvez, jamais possa corresponder diretamente uma intuição"[25]. O lírio branco não é mais simplesmente reportado aos conceitos de cor e de flor, mas desperta a Idéia de pura inocência, cujo objeto, jamais dado, é um análogo reflexivo do branco na flor-de-lis[26]. Mas, assim, o interesse meta-estético da razão tem duas conseqüências: de um lado, os conceitos do entendimento encontram-se alargados ao infinito, de maneira ilimitada; de outro lado, a imaginação encontra-se liberada da sujeição aos conceitos determinados do entendimento, que ela ainda sofria no esquematismo. Como exposição, a Analítica do belo permitia-nos somente dizer: no juízo estético, a imaginação torna-se livre ao mesmo tempo em que o entendimento torna-se indeterminado. Mas como ela se liberava? Como o entendimento se tornava indeterminado? É a razão que o diz, e que, por esse meio, assegura a gênese do acordo livre indeterminado das duas faculdades no juízo. A dedução NT e NRT do juízo estético dá conta do que a Analítica do belo não podia explicar: ela encontra na razão o princípio de uma gênese transcendental. Mas era preciso passar antes pelo modelo genético do Sublime.

 

O tema de uma apresentação das Idéias na natureza sensível é, em Kant, um tema fundamental. É que há vários modos de apresentação. O Sublime é o primeiro modo: apresentação direta que se faz por projeção, mas que permanece negativa, incidindo sobre a inacessibilidade da Idéia. O segundo modo é definido pelo interesse racional ligado ao belo: trata-se de uma apresentação indireta, mas positiva, que se faz por símbolo. O terceiro modo aparece no Gênio: apresentação ainda positiva, mas segunda, fazendo-se por criação de uma "outra" natureza. Enfim, um quarto modo é teleológico: apresentação positiva, primária e direta, que se faz sob conceitos de fim e de acordo final. Não nos cabe analisar este último modelo. Em contrapartida, do ponto de vista que nos ocupa, o modo do gênio levanta um problema essencial na estética de Kant.

O interesse racional nos deu a chave de uma gênese do acordo a priori das faculdades no juízo de gosto. Mas sob que condição? À condição de que se junte à experiência particular do belo "o pensamento de que a natureza produziu essa beleza"[27]. Nesse nível, portanto, aparece uma disjunção: aquela do belo na natureza e do belo na arte. Nada na Analítica do belo como exposição autorizava uma tal distinção: é somente a dedução que a introduz, quer dizer, o ponto de vista meta-estético do interesse ligado ao belo. Este interesse diz respeito exclusivamente à beleza natural; a gênese, portanto, tem por objeto, o acordo da imaginação e do entendimento, mas somente enquanto ele se produz na alma do espectador da natureza. Face à obra de arte, o acordo das faculdades permanece ainda sem princípio ou fundamento.

A última tarefa da estética kantiana é encontrar para a arte um princípio análogo àquele do belo na natureza. Este princípio é o Gênio. Do mesmo modo que o interesse racional é a instância pela qual a natureza dá uma regra ao juízo, o gênio é a disposição subjetiva pela qual a natureza dá regras à arte (é nesse sentido que ele é "dom da natureza")[28]. Do mesmo modo que o interesse racional incide sobre as matérias com as quais a natureza produz belas coisas, o Gênio traz matérias com as quais o sujeito que ele inspira produz belas obras: "o gênio fornece essencialmente uma rica matéria às belas artes"[29]. O Gênio é um princípio meta-estético do mesmo modo que o interesse racional. Com efeito, ele se define como um modo de apresentação das Idéias. É verdade que Kant fala aqui de Idéias estéticas, e as distingue das Idéias da razão: estas seriam conceitos sem intuição; aquelas seriam intuições sem conceito. Mas essa oposição é apenas uma aparência; não há dois  tipos de Idéias. Se a Idéia estética ultrapassa todo conceito, é porque ela produz a intuição de uma outra natureza que não aquela que nos é dada: ela cria uma natureza na qual os fenômenos são imediatamente acontecimentos do espírito e os acontecimentos do espírito são fenômenos da natureza. Assim, os seres invisíveis, o reino dos bem-aventurados, o inferno, tomam um corpo; e o amor, a morte, tomam uma dimensão que os torna adequados a seu sentido espiritual[30]. A partir daí, se pensará que a intuição do gênio é precisamente a intuição que faltava às Idéias da razão. A intuição sem conceito é a que faltava ao conceito sem intuição. De modo que, na primeira fórmula, são os conceitos do entendimento que se encontram transbordados e desqualificados; na segunda, são as intuições da sensibilidade. Mas no gênio, a intuição criadora, como intuição de uma outra natureza, e os conceitos da razão, como Idéias racionais, unem-se adequadamente[31]. A Idéia racional contém algo de inexprimível; mas a Idéia estética exprime o inexprimível, por criação de uma outra natureza. Também a Idéia estética é verdadeiramente um modo de apresentação das Idéias, próximo do simbolismo, ainda que procedendo diferentemente. E ela tem um efeito análogo: ela "dá o que pensar", ela alarga os conceitos do entendimento de maneira ilimitada, ela libera a imaginação das constrições do entendimento. O Gênio "anima", "vivifica". Princípio meta-estético, ele torna possível, engendra o acordo estético da imaginação e do entendimento. Ele engendra cada uma das faculdades nesse acordo: a imaginação como livre, o entendimento como ilimitado. Então, a teoria do Gênio vem preencher o fosso que, do ponto de vista meta-estético, se tinha escavado entre o belo na natureza e o belo na arte. O Gênio dá um princípio genético às faculdades em relação à obra de arte. É por isso que, depois que o parágrafo 42 da Crítica da faculdade de julgar disjungiu as duas espécies do belo, os parágrafos 58 e 59 podem restaurar a unidade sob a idéia de uma gênese das faculdades que lhes são comuns.

 

Não seria preciso, contudo, levar muito longe o paralelo entre o interesse ligado ao belo na natureza e o gênio relativo ao belo na arte. É que, com o gênio, entramos numa gênese muito mais complexa. Para engendrar o acordo da imaginação e do entendimento, foi-nos preciso, aqui, deixar o ponto de vista do espectador. O gênio é o dom do criador artista. E é no artista, de início, que a imaginação se libera e que o entendimento se alarga. A dificuldade é esta: como pode a gênese ter um alcance universal, já que ela tem por regra a singularidade do gênio? Parece bem que, no gênio, não encontramos uma subjetividade universal, mas bem mais uma intersubjetividade excepcional. Com efeito, o Gênio é sempre um apelo lançado para o nascimento de outros gênios. Mas que desertos é preciso atravessar antes que o gênio responda ao gênio. "O gênio é a originalidade exemplar dos dons naturais de um sujeito no livre uso de suas faculdades de conhecimento. Assim, a obra do gênio é um exemplo, não para ser imitado, mas para fazer nascer na sua seqüência um outro gênio, despertando nele o sentimento de sua originalidade própria e excitando-o a exercer sua arte com total independência das regras... O gênio é um favorito da natureza, e aparece raramente"[32]. Contudo, essa última dificuldade se resolve, se se considera que o artista de gênio tem duas atividades. De um lado, ele cria NT NRT. Vale dizer: ele produz a matéria de sua obra, ele leva sua imaginação a uma função livre criadora, pela invenção de uma outra natureza adequada às Idéias. Mas, de outro lado, o artista forma: ele ajusta sua imaginação liberada a seu entendimento indeterminado, de modo que ele próprio dá à sua obra a forma de um objeto de gosto ("para dar essa forma à obra de arte, o gosto basta")[33]. Precisamente, o que é inimitável no gênio é o primeiro aspecto: a enormidade da Idéia, a espantosa matéria, a deformidade genial. Mas, sob o segundo aspecto, a obra de gênio pode se tornar um exemplo para todos: ela inspira imitadores, suscita espectadores, engendra por toda parte o acordo livre indeterminado da imaginação e do entendimento que constitui o gosto. E enquanto um outro gênio não tiver responde ao gênio, não estamos, todavia, em um simples deserto: os homens de gosto, alunos e admiradores povoam o intervalo entre dois gênios, e permitem aguardar[34]. Desse modo, a gênese que parte do gênio ganha efetivamente um valor universal (o gênio criador engendra o acordo das faculdades no próprio espectador): "O gosto, como o juízo em geral, é a disciplina do gênio... Ele coloca, assim, clareza e ordem na massa de pensamentos e dá consistência às idéias, ele também as torna suscetíveis de um sucesso durável tanto quanto universal, próprias para servirem de exemplo aos outros e a se adaptarem a uma cultura sempre em progresso"[35].

A estética de Kant nos coloca, portanto, em presença de três gêneses paralelas: a partir do sublime, gênese do acordo razão-imaginação; a partir do interesse ligado ao belo, gênese do acordo imaginação-entendimento em função do belo na natureza; a partir do gênio, gênese do acordo imaginação-entendimento em função do belo na arte. Mais ainda, para cada caso, são as faculdades consideradas que são engendradas em seu estado livre original e em seu acordo recíproco. Assim, a Crítica da faculdade de julgar revela-nos um domínio totalmente diferente do das duas outras Críticas. As duas Críticas precedentes partiam de faculdades já formadas, entrando em relações determinadas, assumindo tarefas organizadas sob a presidência de uma dentre ela: o entendimento legislava no interesse racional especulativo, a razão legislava em seu próprio interesse prático. Quando Kant se esforça para definir a novidade da Crítica da faculdade de julgar, ele diz o seguinte: ela assegura de uma só vez a passagem do interesse especulativo ao interesse prático, e a subordinação do primeiro ao segundo[36]. Por exemplo, o sublime já mostra que a destinação supra-sensível de nossas faculdades só se explica como a predestinação de um ser moral; e o interesse ligado ao belo na natureza dá testemunho de uma alma que se destine à moralidade; enfim, o gênio, ele próprio, permite integrar o belo artístico ao mundo moral, e ultrapassar, a esse respeito, a disjunção das duas espécies do belo (é o belo na arte, não menos que o belo na natureza, que é finalmente dito "símbolo da moralidade")[37].

 

Mas se a Crítica da faculdade de julgar nos abre uma passagem, isso ocorre, de início, porque ela desvela um fundo que permanecia escondido nas duas outras Críticas. Tomando literalmente a idéia de passagem, faríamos da Critica da faculdade de julgar um simples complemento, uma arrumação: de fato, ela constitui o fundo originário de onde derivam as duas outras Críticas. Sem dúvida, ela mostra como o interesse especulativo pode ser subordinado ao interesse prático, como a Natureza pode estar em acordo com a liberdade, como nossa destinação é uma predestinação moral. Mas ela só mostra isso por relacionar o juízo, no sujeito e fora dele, " a alguma coisa que não é nem a natureza nem a liberdade"[38]. E o interesse ligado ao belo não é em si mesmo nem moral nem especulativo. E se nós temos o destino de um ser moral, é porque este destino desenvolve, explica uma destinação supra-sensível de todas as nossas faculdades; esta destinação não permanece menos envolvida como o verdadeiro núcleo de nosso ser, como um princípio mais profundo do que todo destino formal. Com efeito, é este o sentido da Crítica da faculdade de julgar: sob as relações determinadas e condicionadas das faculdades, ela descobre o livre acordo indeterminado, incondicionado. Ora, jamais uma relação determinada de faculdades, condicionada por uma dentre elas, seria possível se não fosse primeiro tornado possível por este livre acordo incondicionado. Igualmente, a Crítica da faculdade de julgar não se atém ao ponto de vista do condicionamento tal como aparecia nas duas outras Críticas: ela nos faz entrar na Gênese. As três gêneses da Crítica da faculdade de julgar não são somente paralelas, elas convergem para um mesmo princípio: a descoberta do que Kant chama de Alma, ou seja, a unidade supra-sensível de todas as nossas faculdades, "o ponto de concentração", o princípio vivificante a partir do qual cada faculdade se encontra "animada", engendrada em seu livre exercício como em seu livre acordo com as outras[39]. Uma imaginação livre original, que não se contenta em esquematizar sob a constrição do entendimento; um entendimento ilimitado original, que não se dobra ainda sob o peso especulativo de seus conceitos determinados, assim como já não está submetido aos fins da razão prática; uma razão original que não tomou ainda o gosto por comandar, mas que se libera a si mesma liberando as outras faculdades - tais são as descobertas extremas da Crítica da faculdade de julgar, onde cada faculdade reencontra o princípio de sua gênese ao convergir em direção ao ponto focal, "ponto de concentração no supra-sensível" do qual todas as nossas faculdades tiram, de uma só vez, sua força e sua vida

 

Nosso problema era duplo. Como explicar que o liame entre a exposição e a dedução do juízo de beleza seja interrompido pela análise do sublime sem que o sublime tenha dedução correspondente? E como explicar que a dedução do juízo de beleza se prolongue nas teorias do interesse, da arte e do gênio, que parecem responder a preocupações bem diferentes? Acreditamos que o sistema da Crítica da faculdade de julgar, na sua primeira parte, pode ser reconstituído da seguinte maneira:

1º Analítica do belo como exposição: estética formal do belo em geral, do ponto de vista do espectador. Os diferentes momentos dessa Analítica mostram que o entendimento e a imaginação entram em um livre acordo, e que este livre acordo é constitutivo do juízo de gosto. Define-se, assim, o ponto de vista estético de um espectador do belo em geral. Este ponto de vista é formal, posto que o espectador reflete a forma do objeto. Mas o último momento da Analítica, o da modalidade, levanta um problema essencial. O acordo livre indeterminado deve ser a priori. Mais ainda, ele é o mais profundo da alma; toda proporção determinada das faculdades supõe a possibilidade de sua harmonia livre e espontânea. Neste sentido, a Crítica da faculdade de julgar deve ser o verdadeiro fundamento das duas outras Críticas. Portanto, é evidente que não podemos nos contentar em presumir o acordo a priori do entendimento e da imaginação no juízo de gosto. Esse acordo deve constituir o objeto de uma gênese transcendental. Mas a Analítica do belo é incapaz de assegurar essa gênese  : ela assinala a necessidade dela, mas não pode, por sua conta, ultrapassar uma simples "presunção".

2º Analítica do sublime, ao mesmo tempo como exposição e dedução: estética informal do sublime do ponto de vista do espectador. O gosto não colocava em jogo a razão. O sublime, ao contrário, explica-se pelo livre acordo da razão e da imaginação. Mas este novo acordo "espontâneo" ocorre em condições muito especiais: na dor, na oposição, no constrangimento, no desacordo. Aqui, a liberdade ou a espontaneidade são experimentadas em regiões-limites, face ao informe e ao disforme. Mais ainda, a Analítica do sublime nos dá um princípio genético para o acordo das faculdades que ela coloca em jogo. Por isso mesmo, ela vai mais longe que a Analítica do belo.

3º) Analítica do belo como dedução: meta-estética material do belo na natureza do ponto de vista do espectador. Se o juízo de gosto reclama por uma dedução particular, é porque ele se reporta pelo menos à forma do objeto; de outro lado, ele tem, por sua vez, necessidade de um princípio genético para o acordo das faculdades que ele exprime, entendimento e imaginação. O Sublime nos dá um modelo genético; é preciso encontrar um equivalente dele para o belo, com outros meios. Procuramos uma regra sob a qual estamos no direito de supor a universalidade do prazer estético. Enquanto nos contentamos em invocar o acordo da imaginação e do entendimento como um acordo presumido, a dedução permanece fácil. O difícil é fazer a gênese desse acordo a priori. Ora, precisamente porque a razão não intervém no juízo de gosto, ela pode nos dar um princípio a partir do qual é engendrado o acordo das faculdades nesse juízo. Existe um interesse racional ligado ao belo: esse interesse meta-estético incide sobre a aptidão da natureza em produzir belas coisas, sobre as matérias que ela emprega para tais "formações". Graças a esse interesse, que não é nem prático nem especulativo, a razão nasce para si mesma, alarga o entendimento, libera a imaginação. Ela assegura a gênese de um acordo livre indeterminado da imaginação e do entendimento. Reúnem-se os dois aspectos da dedução: referência objetiva a uma natureza capaz de produzir coisas belas; referência subjetiva a um princípio capaz de engendrar o acordo das faculdades.

4º Seqüência da dedução na teoria do Gênio: meta-estética ideal do belo na arte do ponto de vista do artista criador. O interesse ligado ao belo só assegura a gênese excluindo o caso do belo artístico. O Gênio intervém, então, como princípio meta-estético próprio às faculdades que se exercem em arte. Ele tem propriedades análogas às do interesse: ele traz uma matéria, ele encarna as Idéias, faz com que a razão nasça para si, libera a imaginação e alarga o entendimento. Mas todas essas propriedades, ele as exerce primeiro do ponto de vista da criação de uma obra de arte. É preciso, enfim, que o gênio, sem nada perder de seu caráter excepcional e singular, dê um valor universal ao acordo que ele engendra, e comunique às faculdades do espectador um pouco de sua vida própria e de sua animação: assim, a estética de Kant forma um todo sistemático em que se reúnem as três gêneses.

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Tradução de

Cíntia Vieira da Silva


Notas

DL Revue d'esthétique, v. XVI, nº 2, abril-junho, Paris, PUF, 1963, pp. 113-136. No mesmo ano, Deleuze publica pela PUF La philosophie critique de Kant (A filosofia crítica de Kant).

NT [Traduzimos assim Critique du jugement para melhor correspondermos ao original alemão (Critik der Urteilskraft)].

[1] Crítica da faculdade de julgar, introdução, §§ 2, 3, 4, 5. [DL: Todas as referências deste artigo remetem à Critique du jugement, trad. Gibelin, Paris, Vrin, 1960.]

[2] § 35.

[3] Sobre esta teoria das proporções, cf. § 21.

[4] §§ 14 e 51. Nesses dois textos, o argumento de Kant é o seguinte: as cores e os sons só seriam verdadeiramente elementos estéticos se a imaginação fosse capaz de refletir as vibrações que os compõem: ora, isto é duvidoso, porque a velocidade das vibrações produz divisões de tempo que nos escapam. O § 51, contudo, reserva para certas pessoas a possibilidade de uma tal reflexão.

[5] § 40.

[6] Ibid.

[7] § 22.

[8] §§ 20-22.

[9] . § 22.

[10] § 26.

[11] Ibid.

[12] Nota geral.

[13] Ibid.

[14] § 29.

[15] §30.

[16] § 38. "O que torna essa dedução tão fácil, é que ela não tem que justificar a realidade objetiva de um conceito..."

[17] § 30.

[18] § 58.

[19] Ibid.

[20] Ibid.

[21] § 10. É este parágrafo que relança o problema da dedução.

[22] § 42.

[23] Ibid.

[24] § 58.

[25] § 39.

[26] § 12.

NT e NRT [Há uma evidente falha tipográfica na transcrição francesa: em vez de traduzirmos “séduction du jugement”, traduzimos pensando em “déduction du jugement”, que é, aliás, a expressão presente na p.128 da primeira publicação do presente texto em 1963 na Révue d’esthétique, op. cit.].

[27] § 42

[28] § 46.

[29] § 47.

[30] § 49.

[31] Nota I da Dialética.

[32] § 49.

NT NRT [Em itálico, tal como aparece na p. 131 da edição de 1963 (Révue d’Esthétique, op. cit.].

[33] § 48.

[34] § 49.

[35] § 50.

[36] Intodução, §§ 3 e 9.

[37] § 59.

[38] Ibidem.

[39] §§ 49 e 57. 

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